I.          Introdução

Nesse trabalho, buscamos rediscutir a matéria tratada no caso Roe vs. Wade sob uma perspectiva favorável à liberdade da mulher de decidir ou não pelo aborto, à luz dos direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988. É certo que abordaremos os argumentos utilizados no caso Roe, mas sempre fazendo uma associação com a Constituição e a realidade brasileira.

Primeiramente, traçamos algumas premissas para a defesa do nosso ponto de vista. O objetivo disto é ter uma base teórica que irá possibilitar a discussão sobre a legalização do aborto. A primeira premissa, e a mais importante, aborda a questão da laicização do Estado. Isso porque não consideramos o caso sob uma perspectiva metafísica, a qual esta seja a pressuposição de uma entidade substancial necessária, seja ela uma ideia, uma divindade ou uma substância. Menos ainda de uma elevação dessa entidade a um caráter necessário e, assim, a caracterização de uma metafísica dogmática. Se assim fosse, obstaria, desde logo, qualquer discussão sobre o assunto em tela e o que buscamos, ao contrário, é abrir o leitor à possibilidade de convencimento.

A segunda premissa diz respeito à interpretação constitucional, trazendo à baila a relação entre hermenêutica e direito. Partimos de uma visão de que a Constituição deve ser interpretada segundo o contexto social contemporâneo. Isso será fundamental para desenvolvermos a ideia de que a legislação repressiva ao aborto não está em consonância com a situação social das mulheres modernas e, por isso, ela é retrógrada, ineficaz e ajuda a perpetuar a desigualdade de gênero.

Ainda, assentamos como premissa a possibilidade da resolução da controvérsia pelo Judiciário. Trata-se da discussão sobre função ativa desenvolvida pela Corte Constitucional, muito criticada pelos conservadores no caso Roe. No nosso trabalho, iremos sustentar que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, tem o dever de entregar a prestação jurisdicional, bem como de exercer sua função contra-majoritária na garantia de direitos fundamentais.

Após colocarmos as bases para a nossa discussão, iremos, enfim, aos argumentos pró-legalização do aborto. É importante ressaltar que quando utilizamos, por uma questão de natureza prática, a expressão “defesa do aborto”, estamos a falar da descriminalização do aborto e não na prática do aborto em si. Entendemos que são duas coisas distintas: estamos defendendo que a mulher tem que exercer seu direito à liberdade e, por suas próprias convicções pessoais e íntimas, fazer uma escolha sobre os rumos da sua própria vida. Melhor dizendo, não estamos a defender que é certo abortar, mas que é certo dar à mulher a escolha de abortar ou não.

Devemos salientar, também, que, apesar do esforço depositado neste projeto, não foi possível esgotar o tema, por demais complexo. Nossa intenção, portanto, é de apresentar somente as principais questões suscitadas pelos teóricos acerca da legalização do aborto.

Os argumentos pela legalização do aborto que utilizamos partiram do que foi sustentado no caso Roe. Excluímos as teses que se ligavam exclusivamente ao texto constitucional americano, que não nos é útil. Dessa forma, fizemos a associação entre esses argumentos escolhidos e o nosso ordenamento jurídico bem como a realidade social brasileira, apresentando dados e pesquisas sobre o tema.

O fundamento teórico que encontramos para embasar nossa tese foi, primeiramente, de considerar a questão do aborto como um caso de saúde pública. Depois, passamos à análise de que a proibição do aborto viola diversos direitos fundamentais da mulher: igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Consideramos, porém, que esses direitos não são absolutos e que devem coexistir com o direito do feto à vida.

Por isso, a partir daí, nos indagamos: onde começa a vida? O feto é um ser humano? Ele é um ser humano em potencial? Ele tem direito à vida? Esse direito é absoluto? Esse direito se sobrepõe ao direito da mulher? Podemos, desde já, dizer que sustentamos que não. Partindo de uma discussão jurídica, e não existencial, consideramos que o feto não é pessoa e que, apesar de ser pessoa em potencial, não tem os mesmos direitos que uma pessoa.

Por fim, tendo em vista o emblemático conflito entre direitos fundamentais: direito à vida vs. direito à liberdade, como fazemos para resolver esse problema? Definimos que é a partir da ponderação que esse conflito será dirimido.

Como anteriormente ressaltado, o nosso objetivo é defender que a proibição do aborto não encontra guarida no nosso ordenamento jurídico, mormente tendo em vista que o papel social desempenhado pela mulher hoje é diametralmente oposto ao da mulher da década de 40, quando o Código Penal foi editado. Nesse contexto, a revisão da legislação sobre o aborto, elaborada sem qualquer atenção aos direitos da mulher, torna-se um verdadeiro imperativo constitucional.

          II.          O Caso Roe vs. Wade

A partir da década de 60, o processo de emancipação da mulher e o avanço na laicização dos Estados, dentre outros fatores, desencadearam uma forte tendência à liberalização da legislação sobre o aborto.

N. E. Hull e Peter Charles Hoffer afirmam que o início dos anos 70, especificamente nos Estados Unidos, foi um tempo encabeçado pela liberalização feminina: a percentagem de mulheres atendendo à faculdade crescia mais rapidamente que a dos homens, as mulheres estavam mais interessadas e envolvidas na política e em questões políticas, o número de mulheres que votavam se aproximava muito do número de homens, havia sido aprovada, em 1971, (com maioria expressiva) a Equal Rights Amendment, que proibia a discriminação sexual pelo Governo Federal e Estados da Federação. E foi nesse cenário que, em 1973, que a Suprema Corte dos Estados Unidos discutiu a constitucionalidade da proibição do aborto voluntário, no caso Roe vs. Wade.

Roe, uma mulher, solteira e grávida, em uma class action, desafiou a constitucionalidade da legislação criminal do Estado do Texas que proibia o aborto, exceto nos casos em que recomendado medicamente ou com o propósito de salvar a vida da mãe. Um médico, Hallford, interveio no processo, pois tinha duas acusações de prática de aborto contra ele. Também um casal, os Does, apesar de não terem filhos, também questionavam a constitucionalidade da lei, afirmando serem prejudicados pela possibilidade de falha dos métodos contraceptivos de prevenção da gravidez, pelo despreparo da paternidade (paternidade irresponsável), e pelo prejuízo que a legislação trazia à saúde da mulher.

O Estado do Texas alegou que suas leis protegiam o direito ao devido processo como uma “pessoa”, nos termos da 14ª emenda[1]. Alternativamente, sustentou que o Estado tinha o interesse (compelling interest) em proteger a vida, e considerava que esta começava com a concepção. Afirmaram que o direito à privacidade tinha limites, e não cobria o infanticídio, incesto ou, no caso, o aborto[2]. Consoante explica N. E. Hull e Peter Charles Hoffer:

The state’s case rested squarely on the notion that the fetus was always a human being. Indeed, the state labeled the key section of its brief  “the human-ness of the fetus”. But the religious foundation for the fetal-life argument in Tolle’s brief had been replaced by references to modern science. The state claimed that the most recent medical findings proved that the fetus was alive from conception; its cells reproduced on their own, and in time would form an uniquely human shape. It only needed “time and nutrition” to become “a developing human being”. In the womb, the fetus was an “unborn child”.

(…)

Although the state had dropped from its brief the references to religious concepts such as the vesting of the soul at conception, the implication of its scientific evidence was the same as the religion reasoning in Rosen: the mother was the trustee, the carryall, for the little person, and it followed, as it had in Rosen, that the fetus has Fifth and Fourteenth Amendment rights to life and liberty that outweighed the mother’s right to privacy[3].

O Juízo de 2ª instância, que consolidou as ações, decidiu que Roe e Hallford, e os outros membros do seu processo, tinham legitimidade para processar e apresentado controvérsias “justiciáveis”. Afirmaram que as leis contra o aborto eram vagas e infringiam os direitos garantidos pela 9ª [4] e 14ª Emenda.

Assim sendo, a Corte estadual declarou que o interesse do Estado na vida do feto se tornava convincente (compelling) no final do primeiro trimestre. Isso porque, segundo a decisão: “until the end of the first trimester mortality in abortion may be less than mortality in normal childbirth”. Ademais, assentou-se que o interesse do Estado na vida se tornava legítimo quando o feto se tornava viável. A Corte também aduziu que: “the infant was not a ‘person’ before birth because ancient attitudes and early English and American common Law did not treat unborn as ‘persons in the whole sense’ and because the use of ‘pearson’ elsewhere in the Constitution did not appear to include the unborn[5].

No entanto, entenderam que o pedido do casal Doe não era judiciável. Isso porque, a esposa, Mary Doe, não estava grávida quando a ação foi trazida a julgamento, levando o Tribunal a entender que, por isso, não havia um caso ou controvérsia a ser resolvido pela Corte. Dessa forma, o caso chegou a Suprema Corte americana, por recurso das autoridades do Estado do Texas.

A Suprema Corte entendeu que o direito à privacidade, reconhecido por aquele Tribunal no julgamento do caso Griswold v. Connecticut, de 1965, envolveria o direito da mulher de decidir sobre a continuidade ou não da sua gestação. Isso porque, o direito de decidir sobre terminar ou continuar uma gestação seria meramente uma continuação do direito de prevenir uma gravidez ou concepção, pelo uso de contraceptivos[6]. Com base nesta orientação, a Suprema Corte, por 7 votos a 2, declarou a inconstitucionalidade da lei do Estado do Texas.

Da decisão, redigida pelo Juiz Harry Blackmun, vale reproduzir o seguinte trecho:

O direito de privacidade (...) é amplo o suficiente para compreender a decisão da mulher sobre interromper ou não sua gravidez. A restrição que o Estado imporia sobre a gestante ao negar-lhe esta escolha é manifesta. Danos específicos e diretos, medicamente diagnosticáveis até no início da gestação, podem estar envolvidos. A maternidade ou a prole adicional podem impor à mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano psicológico pode ser iminente. A saúde física e metal podem ser penalizadas pelo cuidado com o filho. Há também a angústia, para todos os envolvidos, associada à criança indesejada e também o problema de trazer uma criança para uma família inapta, psicologicamente ou por qualquer outra razão, para criá-la. Em outros casos, como no presente, a dificuldade adicional e o estigma permanente da maternidade fora do casamento podem estar envolvidos (...).

O Estado pode corretamente defender interesses importantes na salvaguarda da saúde, na manutenção de padrões médicos e na proteção da vida potencial. Em algum ponto da gravidez, estes interesses tornam-se suficientemente fortes para sustentar a regulação dos fatores que governam a decisão sobre o aborto (...). Nós assim concluímos que o direito de privacidade inclui a decisão sobre o aborto, mas que este direito não é incondicionado e deve ser sopesado em face daqueles importantes interesses estatais[7].

No julgamento em questão, a Suprema Corte definiu os parâmetros que os Estados deveriam necessariamente seguir ao legislarem sobre aborto. Conforme explica Dworkin:

O que Roe fez foram três coisas. Em primeiro lugar, reafirmou o direito constitucional da mulher grávida à autonomia na procriação e declarou que os estados não têm o poder de simplesmente proibir o aborto segundo o seu arbítrio. Em segundo lugar, reconheceu que, apesar disso, os estados têm um interesse legítimo em disciplinar o aborto. Em terceiro lugar, elaborou um regime detalhado para equilibrar aquele direito e esse interesse: declarou, grosso modo, que os estados não poderiam proibir o aborto por motivo nenhum no primeiro trimestre da gestação, só poderiam regular o aborto no segundo trimestre movidos por uma preocupação pela saúda da mãe e, por fim, poderiam proibir completamente o aborto depois do momento em que o feto se torna capaz de sobreviver fora do útero, ou seja, aproximadamente depois do início do terceiro trimestre[8].

A partir desse caso histórico americano, iremos construir nossos argumentos favoráveis à legalização do aborto. No entanto, abordaremos a questão sob a perspectiva da Constituição Federal de 1988, da nossa legislação infraconstitucional e da realidade social brasileira.

      III.          Premissas Básicas Para a Defesa da Legalização do Aborto

 

i.              Estado Laico

Primeiramente, como premissa básica de todo argumento que iremos construir nesse trabalho, devemos tecer considerações sobre a laicidade do Estado. Isso porque, o tema do aborto desperta discussões apaixonadas que não se resumem às opiniões racionais-científicas sobre o tema, mas também ganha dimensões religiosas e, nesse aspecto, não se pode olvidar da influência exercida pela religião na nossa sociedade.

Sem dúvida, o ranço retrógrado da legislação brasileira que criminaliza o aborto tem forte aceitação popular, população esta que é fortemente influenciada pelos ditames religiosos (especialmente o catolicismo, que é a religião majoritária no país). O exemplo disso, e objeto do presente estudo, é a proibição do aborto desde a concepção, que, apesar de ter também certo fundamento científico (hoje em dia quase tudo tem), é determinantemente defendida pela igreja católica, que difunde a ideia de que, desde aquele momento, já existe um ser humano dotado de uma “alma”.

Sendo assim, observamos que, pela predominância do pensamento católico na sociedade brasileira, o Estado acaba por transferir esse pensamento coletivo à legislação. Ou seja, é fato que o Estado adota medidas legislativas que endossam as concepções morais cristãs. Poderíamos dizer, tal como Rousseau, que as maiorias transformam sua força em direito e a obediência em dever. É certo que o discurso religioso é absolutamente recorrente e visível nas eleições (que é, precipuamente, uma manifestação de vontade das maiorias), e nas discussões realizadas no âmbito do Poder Legislativo. No entanto, não é razoável incluir as visões religiosas sobre o tema na nossa discussão, tendo em vista a laicidade do Estado brasileiro. Aliás, o propósito do Estado laico, ao não possuir uma religião oficial, é manter-se neutro e imparcial no que se refere aos temas religiosos.

A nossa Constituição Federal proclama como direito fundamental a liberdade de religião (art. 5º, inciso VI). Além disso, no art. 19, I, consagra o princípio da laicidade do Estado, que impõe aos poderes públicos neutralidade em relação aos diferentes pensamentos religiosos. A laicidade não se resume, conforme já dito, a não adoção de uma religião oficial, mas é também primado da República e a oficialização constitucional da pretensão de delimitar os espaços que são próprios para o poder político e os que são próprios para exercer o direito à crença.

Ademais, dentro da nossa sociedade existe o pluralismo religioso: pessoas que seguem religiões diferentes, que não seguem religião alguma, ou que seguem parcialmente uma religião (chamados de “não praticantes”), etc. Todas essas pessoas têm concepções morais e filosóficas diferentes e, em muitos casos, até mesmo antagônicas. Sendo assim, em respeito à própria Democracia, o Estado deve respeitar essas escolhas, sendo inadmissível a utilização de um aparato repressivo, ou até mesmo do seu poder simbólico[9], para impor ao cidadão que siga as condutas da maioria ou para estigmatizar que os não sigam. Conforme ressaltam Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade:

(...) Sempre que o direito criminal invade as esferas da moralidade ou do bem estar social, ultrapassa os seus próprios limites em detrimento das suas tarefas primordiais (...). Pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem ao direto alheio[10].

Nesse sentido, a Corte Constitucional alemã, na decisão em que considerou inconstitucional a colocação de crucifixos em salas de aula de escolas públicas, decidiu que: “um Estado no qual membros de várias ou até conflituosas convicções religiosas ou ideológicas devam viver juntos só pode garantir a coexistência pacífica se se mantiver neutro em matéria de crença religiosa (...). A força numérica ou importância social da comunidade religiosa não tem qualquer relevância”[11]. Ainda, segundo Jürgen Habermas:

En el debate normativo de la esfera pública democrática solo cuentan, al fin y al cabo, los enunciados Morales en sentido estricto. Solo los enunciados cosmovisivamente neutrales sobre lo que es por igual bueno para todos y cada uno pueden tener la pretensión de ser aceptables por todos por buenas razones. La pretensión de aceptabilidad racional diferencia los enunciados sobre La solución ‘justa’ de los conflictos de acción de los enunciados sobre lo que es ‘bueno’ para mí o para ‘nosotros’ en el contexto de una biografia o de una forma de vida compartida[12].

Isso porque, entendemos, tal como Dworkin, que “a questão principal do debate em torno de Roe vs. Wade não é uma questão metafísica sobre o conceito de pessoa nem uma questão teológica sobre a existência da alma do feto, mas sim uma questão jurídica acerca da correta interpretação da Constituição”[13]. É claro, uma pessoa pode defender a proibição do aborto desde a concepção sem utilizar-se das imposições religiosas. É contra esses argumentos, e, enfatizamos, não os metafísicos, que vamos nos insurgir durante todo esse trabalho.

Dessa forma, devemos ter em consideração que a fé é uma questão eminentemente privada. Nossa discussão, ao contrário, é de interesse público e, portanto, deve ser baseada em razões que independam de convicções religiosas ou metafísicas particulares.

ii.            Interpretação Constitucional e Hermenêutica

A nossa Constituição não aborda expressamente a temática do aborto voluntário, ou seja, não o autoriza e nem o proíbe. No entanto, não encontra guarida o entendimento de que essa omissão tenha sido um “indiferente constitucional”. Consoante explicam Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra:

Naturalmente, as necessidades humanas são variadas, e, a cada uma delas, corresponde uma esfera jurídica de proteção. Isso indica que, se algumas necessidades encontram sua correspondente liberdade tratada em nível constitucional pelos incisos deste artigo 5º ou por vários outros preceitos constitucionais (liberdade religiosa, liberdade física, liberdade de expressão, etc.), aquelas liberdades não mencionadas expressamente encontram guarida na referência do caput à liberdade como um gênero[14].

Sendo assim, podemos encontrar diversos dispositivos constitucionais que dão base à argumentação pró-legalização do aborto desenvolvida neste trabalho. E é justamente sobre isso que trataremos a seguir: da interpretação correta da constituição, de modo a aplicar seus enunciados normativos, abstratos e gerais, na situação posta por todo o trabalho, particular e concreta, que é a da legalização do aborto.

Sobre o método de interpretação constitucional, vale lembrar o seguinte ensinamento de Carlos Cossio:

(...) Enquanto a explicação prossegue, sem cessar, na mesma direção assinalada pelo seu momento de partida (por exemplo: dos efeitos às suas causas e destas às respectivas causas, e assim cada vez mais longe; ou do todo às suas partes e assim cada vez a algo mais simples), a compreensão, ao contrário, ao avançar depois da primeira referência, retorna ao ponto de partida e daqui, outra vez, ao antes referido, num círculo infinito que vai do substrato ao seu sentido e vice-versa. No conhecimento por explicação, qualquer retrocesso na direção seguida pelo espírito cognoscente é um recomeço e não aumenta o conhecimento, pois o que já foi explicado ficou totalmente conhecido. Diversamente, tal como ao se avançar numa circunferência volta-se, sem parar, de uma antípoda à outra – verificamos que todo retorno em direção à etapa precedente aumenta o conhecimento por compreensão, levando-o mais adiante[15].

É esse ir e vir compreensivo que possibilita a renovação do entendimento constitucional: ele “vai progressivamente enriquecendo e ampliando os objetos com novas interpretações, abordagens que nem pelo fato de serem diferentes invalidam as interpretações anteriores” [16]. Conforme prelecionam Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:

Por isso é que juristas do porte de Radbruch – nisso distinguindo-a da interpretação filológica -, afirmam que “a interpretação jurídica não é pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo contrário, um saber pensar até ao fim aquilo que já começou a ser pensado por um outro”. Noutros termos, não é uma estéril e circular repetição do que já foi dito, mas um dialético levar adiante – preservado, transformado e, por essa forma, enriquecido -, um pensamento que apenas se iniciou e que, por sua natureza não impõe limites para novas leituras, como é próprio das coisas de espírito[17].

As “coisas de espírito” são fenômenos culturais ou realidades significativas, dentre as quais se inclui o direito. Trata-se de uma visão do Direito como objeto cultural[18]. Sendo assim,

(...) o nó górdio da compreensão normativa reside nessa antinomia entre o abstrato e o concreto e que, por isso mesmo, o maior problema para o intérprete aplicador do direito consiste, precisamente, em traduzir – na verdade, em trazer – para a sua situação histórica e para a sua condição de sujeito por ela afetado, uma norma que é enunciada sempre em termos genéricos e a partir de supostos típicos[19].

Isso porque, a norma, em seu processo de formação, seja por lentidão do processo legislativo, por inércia voluntária ou imperfeição técnica do legislador, não acompanha a dinâmica social decorrente das várias possibilidades sociais que podem advir daquele fato valorado. Daí a necessidade de se explicar o sentido do texto normativo, ou seja, é preciso interpretar a norma, e esta interpretação é parte integrante da hermenêutica jurídica.

Dessa forma, os fatos sociais não podem ser visto apenas como base para a elaboração de normas, mas também como fator determinante para a renovação dos modelos jurídicos. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, “as exigências sociais são imediatamente absorvidas e racionalizadas pelo aplicador do direito, sob a forma de novas leituras dos mesmos enunciados normativos, leituras tão inovadoras que chegam a criar modelos jurídicos inteiramente novos”[20]. É o que a doutrina denomina de “mutação constitucional”.

A interpretação constitucional deve estar sempre atrelada à realidade social. Hesse “nos adverte que as possibilidades e os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (sein) e dever ser (sollen), porque a sua pretensão de eficácia está condicionada pelas condições históricas da sua realização” [21].

Trata-se, portanto, de assegurar a eficácia da Constituição e de todas as normas do ordenamento jurídico “como condição indispensável para que sua normatividade se converta em energia normalizadora, conformando a realidade social segundo os parâmetros de normalidade juridicamente estabelecidos” [22]. Isso porque as normas desprovidas de efetividade, tal como a que criminaliza o aborto, perdem a sua dimensão essencial da juridicidade. Segundo Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco: “isso é tão verdadeiro que até mesmo um normativista radical, como Hans Kelsen, viu-se na contingência de reconhecer, mesmo a contragosto, que uma ordem jurídica como um todo, tal como uma norma jurídica singular, perde sua validade quando deixa de ser eficaz”[23].

Ao tratar dessa questão, Kelsen afirma que deve haver distinção entre vigência da norma e sua eficácia. Segundo ele, quando dizemos que uma norma é vigente é algo diferente de dizer que ela é efetivamente respeitada. No entanto, Kelsen admite que “uma norma que (...) não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição de sua vigência”[24].

Portanto, o intérprete não pode desprezar a situação hermenêutica em que se encontra, pois toda a norma jurídica se encontra no presente, e não quando foi idealizada:

Se é verdade – como diz Larenz – que as palavras da lei devem revelar o Direito àqueles a quem se dirigem no presente, impõe-se concluir que, embora o legislador histórico as tenha usado a partir do contexto lingüístico do tempo em que as editou, o seu sentido literal só poderá ser determinado segundo a compreensão lingüística das pessoas a quem elas falam agora e não daquelas a quem falaram no passado[25].

Tendo em consideração todo o exposto, não podemos deixar de observar que a legislação proibitiva do aborto (art. 124 do Código Penal) é do ano de 1940! No caso em questão, que discute a afirmação da liberdade da mulher em dispor do próprio corpo, em decidir sobre a continuidade de um processo que a afeta fisicamente e psicologicamente de maneira direta, apresenta-se como uma discussão eminentemente contemporânea, considerando, principalmente, o processo de emancipação da mulher, que vem ocorrendo desde a década de 60.

Não nos parece aceitável, então, nos prendermos a categorias metafísicas dogmáticas superadas de uma visão do papel da mulher na sociedade que, notadamente, não se aplica ao período em que vivemos. Tal atitude seria deixar de se valer da possibilidade de observar o fluxo da história e a diferença das características do papel das mulheres nas sociedades em que se inserem.

Dessa forma, entendemos que essa mulher que existia na época em que foi pensado o nosso Código Penal, não existe mais no mundo contemporâneo. Sendo assim, é fundamental nos atermos à interpretação constitucional levando em consideração o modelo histórico em que vivemos.

iii.          Resolução da Controvérsia Pelo Judiciário

A problemática que surge nesse ponto é se a possibilidade do Supremo Tribunal Federal (STF) decidir sobre os termos em que o aborto deve ser feito configura uma usurpação a competência do poder legislativo. Posição contrária a essa possibilidade afirma se tratar de um ativismo jurisdicional.

Segundo Inocêncio Mártires Coelho, o ativismo seria uma espécie de arbitrariedade ou ditadura dos juízes, uma vez que configura uma extrapolação no exercício da função jurisdicional dos limites impostos pelo próprio ordenamento jurídico. Segundo nosso entendimento, o caso de se estipular regras que determinem a prática do aborto não configura algo nesse sentido, e sim uma função ativa do Tribunal a fim de se obter a efetividade da prestação jurisdicional.

Atualmente, é sabido que a jurisdição constitucional envolve muito mais que uma interpretação pura e simples, mas uma concretização do direito. Conforme entendimento do já citado constitucionalista Mártires Coelho na obra Da Hermenêutica filosófica à Hermenêutica jurídica: Fragmentos: “a lei não esgota o Direito, antes exige, quando necessário, concretizá-lo para além do sentido literal dos enunciados normativos”[26]. Assim, “a função do juiz não se resumirá a dizer um direito previamente posto e sobreposto, e tampouco a servir de mero porta-voz do legislador, como preconizava Montesquieu, que reduzia o juiz à condição de boca que pronuncia as palavras da lei, e a função de julgar, a uma espécie de prerrogativa de certo modo nula”[27].

Recentemente tivemos um exemplo dessa função ativa do STF no julgamento da ADI 4277/DF, que trata sobre o reconhecimento dos efeitos jurídicos das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo. O Ministro Celso de Mello defendeu, em seu voto, um papel institucional pró-ativo do STF, porém não arbitrário. Dessa forma, houve uma típica atuação positiva da Suprema Corte, promovendo a criação judicial do Direito. Contudo, o exercício dessa atividade deu-se nos limites da Lei Maior:

 

Nem se alegue, finalmente, no caso ora em exame, a ocorrência de eventual ativismo judicial exercido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada, como na espécie, por pura e simples omissão dos poderes públicos.

 

Outrossim, o Judiciário possui um aparato que possibilita a formação de um entendimento concreto e imbuído de segurança jurídica em casos tão complexos como o ora estudado. Nesse aspecto, é clara a influência da proposta de Peter Häberle no Supremo Tribunal Federal, verificada, por exemplo, com a realização de audiências públicas e da participação de amicus curie.

O ponto chave da teoria de Häberle reside na afirmação que não existe um monopólio de interpretação constitucional. Segundo Gilmar Mendes, “o reconhecimento da pluralidade e da complexidade da interpretação constitucional traduz não apenas uma concretização do princípio democrático, mas também uma conseqüência metodológica da abertura material da Constituição”[28]. Isso porque, segundo Häberle:

A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma “sociedade fechada”. Ela reduz, ainda, seu  âmbito de investigação, na medida de que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados.

(...)

Nesse sentido, permite-se colocar a questão sobre os participantes do processo da interpretação: de uma sociedade fechada dos intérpretes da Constituição para uma interpretação constitucional pela e para uma sociedade aberta (...).

Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.

Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos “vinculados às corporações” e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade (...). Os critérios de interpretação constitucional há de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade[29].

Dessa forma, com a abertura do Supremo à sociedade, trazendo a discussão de questões constitucionais à participação popular, o argumento de que o Legislativo seria o único Poder que realmente leva em consideração os interesses sociais perde força. Ainda segundo Gilmar Mendes:

Em plena compatibilidade com essa orientação, Häberle não só defende a existência de instrumentos de defesa da minoria, como também propõe uma abertura hermenêutica que possibilite a esta minoria o oferecimento de “alternativas” para a interpretação constitucional. Häberle esforça-se por demonstrar que a interpretação constitucional não é – nem deve ser – um evento exclusivamente estatal. Tanto o cidadão que interpõe um recurso constitucional, quanto o partido político que impugna uma decisão legislativa são intérpretes da Constituição. Por outro lado, é a inserção da Corte no espaço pluralista – ressalta Häberle  – que evita distorções que poderiam  advir da independência do juiz e de sua estrita vinculação à lei[30].

Ademais, conflitos, como o tratado neste trabalho, convertem-se facilmente em confrontos que extrapolam o âmbito político, conforme já ressaltado. Sendo assim, imperioso reconhecer que o Supremo Tribunal Federal “permite o tratamento relativamente imparcial e ordenado da constitucionalidade dos projetos políticos” [31].

Devemos ressaltar, também, que a Corte Constitucional exerce um importante papel jurídico-social levando em consideração sua função contra-majoritária. Isso porque a jurisdição constitucional está diretamente ligada ao sistema democrático “que imponha limites aos ímpetos da maioria e discipline o exercício da vontade majoritária” [32]. Dessa forma, o Supremo tem a função “de reforçar as condições normativas da democracia e atenuar a possibilidade de conflitos básicos que afetem o próprio sistema”[33].

Essa função contra-majoritária da Corte Constitucional foi defendida por Kelsen, que considerava um aspecto importante da democracia a proteção das minorias por meio da jurisdição:

Contra as muitas censuras que se fazem ao sistema democrático  − muitas delas corretas e adequadas −, não há melhor defesa senão a da instituição de garantias que assegurem a plena legitimidade do exercício das funções do Estado. Na medida em que a amplia o processo de democratização, deve-se desenvolver também o sistema de controle. É dessa perspectiva que se deve avaliar aqui a jurisdição constitucional. Se a jurisdição constitucional assegura um processo escorreito de elaboração legislativa, inclusive no que se refere ao conteúdo da lei, então ela desempenha uma importante função na proteção da minoria contra os avanços da maioria, cuja predominância somente há de ser aceita e tolerada se exercida dentro do quadro de legalidade. A exigência de um quorum qualificado para a mudança da Constituição traduz a idéia de que determinadas questões fundamentais devem ser decididas com a participação da minoria. A maioria simples não tem o direito de impor a sua vontade − pelo menos em algumas questões  − à minoria. Nesse ponto, apenas mediante a aprovação de uma lei inconstitucional poderia a maioria afetar os interesses da minoria constitucionalmente protegidos. Por isso, a minoria, qualquer que seja a sua natureza − de classe, de nacionalidade ou de religião − tem um interesse eminente na constitucionalidade da lei.

Isto se aplica sobretudo em caso de mudança das relações entre  maioria e minoria, se uma eventual maioria passa a ser minoria, mas ainda suficientemente forte para obstar uma decisão qualificada relativa à reforma constitucional. Se se considera que a essência da democracia reside não no império absoluto da minoria, mas exatamente no permanente compromisso entre maioria e minoria dos grupos populares representados no Parlamento, então representa a jurisdição constitucional um instrumento adequado para a concretização dessa idéia. A simples possibilidade de impugnação perante a Corte Constitucional parece configurar instrumento adequado para preservar os interesses da minoria contra lesões, evitando a configuração de uma ditadura da maioria, que, tanto quanto a ditadura da minoria, se revela perigosa para a paz social[34].

Assim sendo, essa atuação jurisdicional não configura uma extrapolação dos limites impostos ao Judiciário no exercício de suas atividades, mas constitui uma indispensável e efetiva participação na função de construir o direito junto ao legislador. Isso porque, diante da complexidade e da demanda cada vez maior dos casos, nem sempre o Legislativo satisfaz os anseios da sociedade, diante da protelação da implementação de regras, gerando uma sensação de não eficácia do direito.

VI.               Argumentos pela Legalização do Aborto Voluntário

i.     O Risco à Saúde Mulher

A criminalização do aborto tem dois efeitos nefastos à saúde da mulher. Primeiro, em um aspecto particularizado, a lesão ao direito à liberdade da mulher, que é obrigada a levar a gestação, sem se levar em conta os transtornos psicológicos que isso lhe causa (essa questão será melhor tratada posteriormente). Segundo, a interrupção da gravidez é um fato social e também uma questão de saúde pública.

É indiscutível que a existência da legislação repressiva à prática do aborto não impede a realização destes, mas deixa-os serem realizados na clandestinidade. É, portanto, uma norma ineficaz porque não evita que o aborto seja cometido. Segundo Dworkin:

Não podemos esquecer jamais que, antes de Roe vs. Wade, ocorriam muitos abortos nos estados em que o aborto era proibido. Esses abortos eram ilegais e muitos eram extremamente perigosos. Quando a mulher desesperada para fazer um aborto transgride o direito penal, pode pôr em risco sua própria vida. Por outro lado, se a mulher não transgride a lei, pode ter sua vida destruída e perder todo o respeito por si mesma[35].

A ilegalidade do aborto tem um efeito amplamente negativo à saúde da mulher, sobretudo as mais pobres, que se submetem a procedimentos clandestinos, com especialistas de profissionalismo duvidoso, em condições precárias de higiene, podendo ocasionar graves riscos à sua saúde e até mesmo à sua vida. Essa questão não pode ser ignorada pelo Poder Público, mas, no entanto, é.

Peter Singer afirma, na sua obra “Ética Prática”, que:

Em geral, as mulheres que pretendem abortar estão desesperadas e procurarão um abortador de fundo de quintal ou usarão remédios populares. O aborto feito por um médico qualificado é uma operação tão segura quanto qualquer outra, mas as tentativas de procurar fazer aborto com profissionais desqualificados geralmente resulta em graves complicações médicas e, às vezes, até mesmo na morte. Portanto, o resultado da proibição do aborto não é tanto a redução dos abortos realizados, mas, sim, o aumento das dificuldades e dos perigos para as mulheres com uma gravidez indesejada.

(...)

É um erro pressupor que a legislação deve sempre reforçar a moralidade. Pode acontecer que, como se alega no caso do aborto, as tentativas de reforçar a conduta levem a conseqüências não desejadas por ninguém e não produzam um decréscimos de erros.

O “Painel Temático: Saúde da Mulher”, elaborado pelo Ministério da Saúde, analisando a quantidade de procedimentos médicos de cuidado contra alguma complicação resultada de um aborto, concluiu que: a) 686 mulheres são internadas pelo SUS a cada dia, em decorrência de complicações relacionadas ao aborto (é a terceira maior causa de internação feminina!); b) Os abortos contribuem com 15% da mortalidade materna; c) ocorreram cerca de um milhão de abortos no Brasil, em 2005[36]. Ainda, segundo os dados do Ministério da Saúde, “em 2005, ocorreram 1.619 mortes de mulheres por causas ligadas a gravidez, parto, puerpério e aborto. Essas mortes, em sua quase totalidade, são evitáveis”[37]. Em dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde, estima-se que 1 mulher morre a cada 2 dias devido a abortos inseguros no Brasil[38].

Além disso, “há uma verdadeira indústria do aborto ilegal sustentada na base desta proibição estatal. Calcula-se que os custos para um abortamento clandestino girem em torno de R$ 1.500 a R$ 3.500”[39]. Estes valores implicam, obviamente, na exclusão da absoluta maioria da população feminina brasileira, que se vê forçada a recorrer a métodos muito mais precários, que vão da ingestão de substâncias venenosas até a introdução de objetos cortantes no útero. Esse fato foi mencionado no estudo realizado pelo Ministério da Saúde, ao afirmar que “a prática do aborto inseguro evidencia diferenças socioeconômicas, culturais, étnico-raciais e regionais: mulheres com mais recursos econômicos realizam aborto com mais segurança, em melhores condições de higiene” [40].

Ademais, com relação à saúde da mulher, no caso Roe, por exemplo, foi exposto um estudo que apontava que: a) o aborto era mais seguro que dar à luz uma criança; b) a legalização do aborto não aumentava o número de abortos, mas somente substituía os abortos ilegais e inseguros por abortos legais e seguros; c) clínicas de aborto são tão seguras quanto hospitais; d) a maior parte das mulheres que não conseguem realizar o aborto, não o fazem por causa de suas condições financeiras. Aliás, essa não é uma realidade somente dos Estados Unidos. O Comitê da Organização das Nações Unidas pela Eliminação da Discriminação da Mulher mostra que, conforme já afirmado, a tipificação do aborto como delito ou crime não reduz sua incidência. Ao contrário, isso tem contribuído para aumentar a prática em situação de risco, com impactos graves para a saúde e a vida das mulheres.

Além disso, não podemos ignorar o impacto que uma gravidez indesejada tem na saúde psicológica da mulher. De acordo com Ana Noya e Isabel Pereira Leal:

Para algumas mulheres, a gravidez é um estado altamente desejado, que contém gratificações, como por exemplo, a promessa de um filho para criar e educar, uma identificação positiva com a sua mãe ou ainda a construção da sua própria família. No entanto, para outras mulheres, ou ainda para as mesmas, mas num outro “timing”, a gravidez pode ser vista como algo extremamente penoso. Pode ser experienciada como uma invasão do corpo, ou pode trazer à tona conflitos e sentimentos relativos a uma mãe desvalorizada e odiada. A gravidez surge muitas vezes como resposta inconsciente a perdas ou a situações estressantes[41].

Por isso, a interrupção da gravidez significa, para muitas mulheres, uma solução. Estudos psicológicos recentes mostram que, ao contrário do que se pensava, a interrupção voluntária da gravidez pode se tornar em experiência de crescimento, que traz consigo sentimentos tais como o alívio e o bem-estar[42]. Os estudos revelam, também, que a reação ao aborto é diferente em cada mulher, principalmente considerando a religião que adotam, se são casadas ou se têm apoio familiar. No entanto, “a maior parte dos estudos levados a cabo nos últimos 20 anos evidencia o fato de que o aborto por si só não é indutor de distúrbios psicológicos graves, na mulher que o pratica” [43]:

Adler et al. (1990) fizeram a mais recente revisão na literatura científica no que diz respeito às respostas emocionais que se seguem a uma i.v.g.[44] Os resultados permitiram concluir que a maior parte das mulheres que optava por abortar, apresentava uma maior intensidade de emoções positivas. O alívio e bem-estar, aparecem como os sentimentos predominantes após o aborto. Contudo, uma minoria de mulheres, aproximadamente um terço, apresentava emoções negativas tais como culpa, tristeza, mágoa e angústia.

A partir destes dados pode inferir-se que não há uma relação de causalidade entre i.v.g. e consequências psicológicas negativas. Analisar as respostas pós-aborto implica uma árdua e holística reflexão acerca do fenômeno em causa, na medida em que é uma questão que se dispersa pelos múltiplos níveis da pessoa, nomeadamente o sócio-cultural e esferas políticas, que parecem ter um impacto na resposta do individual. Significa, no fundo, olhar para a i.v.g. de forma mais aberta e ampla e ter em conta toda uma complexidade de dimensões, que resultam, de certo modo, da qualidade de ser um fenômeno indissociável da realidade pessoal[45].

Portanto, percebemos que a lei repressiva ao aborto é completamente ineficaz. A legislação brasileira, tal como é hoje, além de não salvar a vida dos fetos, põe em sério risco a vida da gestante. Nesse cenário, e levando em consideração o medo político de defender o aborto como questão de saúde pública, a mulher brasileira está correndo riscos desnecessários.

ii.   Servidão Involuntária/ Tratamento Desumano ou Degradante

 

O próximo tópico a ser abordado tem uma relação muito próxima com o item anterior. Vimos que o aborto, por si só, não representa um trauma insuperável ou psicologicamente muito grave à mulher. No entanto, não sabemos ao certo os efeitos de uma gestação levada a contragosto, de uma mulher que foi obrigada a dar à luz um filho que não desejava.

Essa questão veio à tona no caso Roe. O California Committee to Legalize Abortion, amicus curie, argumentou que leis como a do Estado do Texas impunham uma servidão involuntária[46] às mulheres. Isso porque a legislação estava forçando as mulheres a terem filhos, em detrimento de sua liberdade. N. E. H. Hull e Peter Charles Hoffer descreveram o episódio:

NOW joined the amici for the appellants. The South Bay, San Francisco, chapter joined with the California Committee to Legalize Abortion to argue that laws like Texa’s imposed an involuntary servitude on woman, forcing them to bear children in violation of the Thirteenth Amendment against slavery. An unwanted pregnancy in addition was dangerous to women’s health and well-being[47].

De fato, uma gravidez representa um cerceamento da liberdade da mulher, entendida não só como liberdade no sentido abstrato de que a mulher tem o direito à escolha, mas também uma restrição física à liberdade. A mulher grávida não possui a mesma vida que antes da gestação: ela tem que abandonar alguns hobbies e, em determinado momento, seu trabalho, não pode viajar a qualquer lugar que queira, não pode fazer exercícios puxados, sente enjôo, dores, dificuldade para dormir, não pode consumir bebida alcoólica, tem que seguir uma dieta apropriada, tomar determinados remédios, constantemente fazer exames, etc. Quando a gravidez é involuntária, ou seja, quando a mulher não quer continuar com a gestação, perde o controle do próprio corpo. Segundo Dworkin:

Se a comunidade obriga uma mulher a ter um filho que ela não quer, a mulher já não tem domínio sobre seu próprio corpo. O corpo lhe foi tomado e está sendo usado para fins com os quais ela não concorda. Trata-se de uma escravidão parcial, uma privação da liberdade (...). A escravidão parcial de uma gravidez forçada (...) é só o começo do preço a ser pago pela mulher a quem se nega o aborto. O ato de ter um filho destrói a vida de muitas mulheres, que já não podem trabalhar, estudar ou viver segundo suas preferências ou que não serão capazes de sustentar a criança. A adoção, mesmo quando é possível, pode não diminuir os danos. Para muitas mulheres, seria quase intolerável dar seu filho para que outros o amem e cuidem dele[48].

 

No Brasil, isso representa uma afronta ao direito à liberdade, disposto no caput do art. 5º. Ademais, também pode ser visto como uma violação ao inciso III do art. 5º, que dispõe que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. O “tratamento degradante” ocorre quando há humilhação de alguém perante si mesmo e perante os outros, ou leva a pessoa a agir contra sua vontade ou consciência. Segundo Bonavides, Miranda e Agra:

No inciso terceiro, a vedação da tortura conecta-se diretamente à idéia de liberdade, e a vedação de tratamentos desumanos e degradantes remete-se diretamente à dignidade da pessoa humana. (...) Os tratamentos desumanos e degradantes apresentam-se de mais difícil conceituação. São conceitos jurídicos indeterminados e se remetem sempre a situações que produzem como efeitos distinguir negativamente o indivíduo do restante da coletividade. Podem chegar a afetar a própria condição humana da vítima, ou, sem chegar a tal limite, podem simplesmente afetar-lhe a dignidade[49].

Portanto, esse argumento utilizado no caso Roe é completamente compatível com o nosso ordenamento jurídico. A tese, sustentada perante a Corte Constitucional americana, de que a lei restritiva ao aborto impõe uma servidão involuntária, pode ser entendida, no ordenamento jurídico brasileiro, como a imposição de um tratamento desumano ou degradante, ajudando a esclarecer a inconstitucionalidade da proibição do aborto.

iii.  Violação ao Princípio da Igualdade

O argumento apresentado anteriormente conduz a outro: da perspectiva feminina única sobre o aborto. A mulher é a única a ter que suportar o fardo de uma gravidez indesejada e da imposição de ir até o fim com ela. Essa questão do insight exclusivamente feminino face ao aborto foi outro ponto abordado na defesa da legalização do aborto em Roe:

From their perspective, the women lawyers claimed to see what men missed about women’s experience, that “despite the fact that both man and woman are responsible for any pregnancy, it is the woman who bears the disproportionate share of the jure and the facto burden and penalties of pregnancy”[50].

A mulher pertence à minoria representativa no País. Conforme já ressaltado, temos que considerar, também, que a nossa sociedade é machista e muito influenciada pelo pensamento religioso, o que se mostra na legislação retrógada que adotamos. Essa vedação ao aborto voluntário viola a igualdade entre os gêneros na medida em que subjuga as mulheres, impondo a elas um ônus que em nenhum contexto se exigiria que os homens suportassem.

Nesse aspecto, a nossa Constituição Federal foi taxativa ao anunciar, no art. 5º, inciso I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. No entanto, vivemos numa ilusão de que, de fato, existe igualdade. Isso é completamente perceptível com relação à nossa temática, tendo em vista a legislação repressiva ao aborto. O artigo 124 do Código Penal, que tipifica o aborto provocado, é de 1940, elaborada por um legislativo composto quase exclusivamente por homens, sem nenhuma preocupação com os interesses das mulheres e, certamente, influenciado pela dogmática religiosa.

Dessa forma, não se pode negar que as leis que penalizam o aborto têm um impacto desigual e discrepante nas mulheres. Foi argumentado em Roe que pela ofensa a ficar grávida acidentalmente, ou ficar grávida contra sua vontade ou ficar grávida antes de ter condições de cuidar de uma criança, as leis condenavam as mulheres a uma punição que os homens nunca enfrentaram: compartilhar seu corpo com um organismo, de parir e criar uma criança contra sua vontade. Segundo um brief enviado pelo “New Women Lawyers” no caso Roe:

Pregnant woman faced obstacles that men never faced. (…) Women lost jobs as teachers and nurses because school boards and hospitals did not want pregnant women to work. Men were not at risk to lose such jobs. High schools asked pregnant women to delay completion of their education until the end of their pregnancies and discriminated against young women with children. Men did not face this problem. A pregnant woman was often denied employment opportunities, on the assumption that she was supposed to be at home. Men with children were expected to find jobs outside the home and take part in public life. The unmarried woman with children faced even higher hurdles in the marketplace. Unmarried men with children did not have to clear these hurdles. The Texas and Georgia statutes denied woman to equal protection of the laws simply because they were women[51].

Sempre que esse argumento é suscitado, enfrentamos também o contra-argumento, bastante machista, por sinal, de que somente as mulheres são capazes de engravidar. No entanto, a lei, em nenhum caso, impõe tamanho ônus ao homem. A lei não obriga, por exemplo, que um pai doe um órgão ou nem mesmo sangue ao filho, ainda que a vida dele dependa disso. Laurence Tribe afirma que:

Uma mulher forçada pela lei a submeter-se à dor e à ansiedade de carregar, manter e alimentar um feto que ela não deseja ter está legitimada a acreditar que mais que um jogo de palavras liga o seu trabalho forçado ao conceito de servidão involuntária. Dar à sociedade – especialmente a uma sociedade dominada pelo sexo masculino – o poder de condenar a mulher a manter a gestação contra sua vontade é delegar a alguns uma autoridade ampla e incontrolável sobre a vida de outros. Qualquer alocação de poder como esta opera em sério detrimento das mulheres com classe, dada a miríade de formas pelas quais a gravidez indesejada e a maternidade indesejada oneram a participação das mulheres como iguais na sociedade[52].

E se a questão do aborto envolve a igualdade entre gêneros, o mesmo acontece com a igualdade social, já que são as mulheres pobres as maiores vítimas do modelo legislativo hoje adotado. São elas as que mais freqüentemente recorrem ao aborto, seja pela falta de condições financeiras para criar futuros filhos, seja pela maior dificuldade de acesso à educação sexual e aos meios contraceptivos. As gestantes de nível social mais elevado, quando decidem pelo aborto, têm como realizá-lo, apesar da sua ilicitude, com acompanhento médico e em melhores condições de higiene e segurança ou então de viajarem para que o aborto seja realizado em um país onde a prática seja legalizada. Já as mulheres carentes acabam se submetendo a expedientes muito mais precários e perigosos para pôr fim às suas gestações.

Se, por um lado, um filho pode significar uma coisa boa, por outro, pode significar o fim de projetos de vida e inviabilizar planos já traçados pela mãe. Portanto, a gravidez pode ser um fardo que nenhuma mulher tem a obrigação de tolerar. Sendo assim, a imposição, por meio da sanção criminal, de que a mulher tem que levar a gestação ao fim, sem se ater à sua convicção íntima, seus pensamentos próprios sobre sua vida, prioridades e aspirações, é, sem dúvida, uma violação sem medidas à liberdade e dignidade da mulher.

iv.          Direito da Mulher à Liberdade e à Dignidade

 

Canotilho, afirma que a dignidade da pessoa humana baseia-se no “princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-homini (Pico della Mirandola), ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu projeto espiritual”. Continua, afirmando que “a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico”[53].

Sem dúvida, o princípio da dignidade da pessoa humana prima pelo respeito à esfera de autodeterminação da pessoa, que tem o poder de tomar as decisões sobre sua própria vida, sem a interferência do Estado ou de terceiros. Isso porque “cada pessoa humana é um agente dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, de traçar planos de vida e de fazer escolhas existenciais, e que deve ter, em princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua vontade” [54].

A Ministra Cármen Lúcia, na decisão que conferiu a equiparação das uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas, afirmou que:

A escolha é individual, íntima e, nos termos da Constituição brasileira, manifestação da liberdade individual. Talvez explicasse isso melhor Guimarães Rosa, na descrição de Riobaldo, ao encontrar Reinaldo/Diadorim: “enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. ...o real roda e põe diante. Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos...amor desse, cresce primeiro; brota é depois. ... a vida não é entendível” (Grande sertão: veredas).

É certo, nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se entender, pode-se não adotar a mesma escolha do outro, só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito.

Apesar de a decisão ser de um tema diverso do tratado aqui, naquele caso se relacionava à orientação sexual e, nesse, diz respeito à escolha de realizar ou não o aborto, esse trecho da decisão proferida pela Ministra Cármen Lúcia se encaixa na nossa discussão com muita propriedade. Trata-se, em ambos os casos, do respeito ao direito de escolha da forma como se quer viver, o direito à liberdade e à privacidade.

O direito à privacidade “limita do poder do estado de atingir a liberdade pessoal”[55]. Especificamente, estamos falando do princípio da autonomia na procriação, “compreendido como uma aplicação do princípio mais geral da privacidade” [56]. De acordo com a decisão do juiz Brennan, no caso Eisenstadt vs. Baird: “se o direito à privacidade significa algo, é o direito do indivíduo, casado ou não, a estar livre da intromissão do Estado em assuntos que afetam fundamentalmente sua pessoa, como, por exemplo, a decisão de conceber ou dar à luz um filho”[57].

Isso porque, o sentido dado à vida passa por uma concepção individual do que é a existência humana. Para algumas mulheres, pode ser plenamente justificável um aborto, para outras não, dependendo de suas crenças, convicções pessoais, situação financeira, planos de vida, etc. A decisão de ter ou não um filho é íntima, não pode ser imposta. Cecília Meirelles, poeticamente, sintetizou:

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; (...)

Somos, pois criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre – como diria o famoso conselheiro… – é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo que partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho… Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autônomo e de teleguiado – é proclamar o triunfo luminoso do espírito.

Dworkin afirma que “a tolerância é o preço que temos que pagar pela nossa aventura de liberdade”[58]. E essa tolerância passa, necessariamente pelo respeito à escolha da mulher que, por suas convicções particulares, resolva optar pelo aborto. Porque “se for verdadeiro nosso respeito pela vida alheia, teremos de admitir também que não pode ser boa a vida que é vivida contra as convicções da pessoa que a vive” [59].

A mulher tem o poder individual sobre seu próprio corpo e tem a liberdade de determinar os rumos da própria vida. Conforme diz o poeta Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Álvaro de Campos: “Quero respirar o ar sozinho, / Não tenho pulsações em conjunto, / Não sinto em sociedade por quotas,/ Não sou senão eu (...).

Dessa forma, defendemos que a mulher tem o direito de escolher entre interromper ou não uma gestação, tem o direito de tomar essa decisão, por si só, sem estar “a ferros”, em consonância com o princípio da autonomia. Não cremos, no entanto, que esse direito seja absoluto. Mais adiante iremos admitir que o feto também tem algum direito. Trata-se de um verdadeiro conflito entre direitos fundamentais: direito à liberdade x direito à vida.

V.  Conflito entre direitos fundamentais

 

  1. Onde começa a vida?

Existem diversas teorias científicas que tentam definir onde começa a vida. Aqui, analisaremos apenas algumas delas, que consideramos as mais importantes.

Primeiramente, existe a teoria conceptualista, que defende que a vida inicia-se com a fecundação, isto é, quando os pró-núcleos maternos e paternos se aproximam, perdem as suas membranas e se fundem, compondo o complemento diplóide ou 2n (46 cromossomos) do zigoto. Este zigoto é considerado o primórdio de uma nova vida humana, que manifesta desde então seus próprios desdobramentos vitais.

Porém, para muitos, tal teoria sofre um abalo quando se leva em consideração que após a fecundação numa das trompas, o embrião precisa chegar ao útero e lá se fixar. Estima-se que mais de 50% dos óvulos fertilizados não tenham sucesso nessa missão e sejam abortados espontaneamente, expelidos com a menstruação.

Por sua vez, segundo a teoria da nidação, a vida começaria no momento da implantação do embrião no útero materno, sendo este o momento em que, em tese, se inicia a gestação, que se finda com o nascimento. Somente ao se implantar no útero o embrião poderá se desenvolver. Somente neste momento seria, pois, merecedor de tutela jurídica.

É amparado nesta teoria que diversos ativistas e médicos defendem o uso da chamada “pílula do dia seguinte”, pois ela pode evitar a fecundação (se administrada antes de 24 horas após a relação sexual, período no qual poderia ocorrer a concepção), ou, ainda que ocorrendo a fecundação, impedir a nidação (que ocorre após cerca de duas semanas). Sendo assim, tal medicamento não poderia ser considerado ilícito por não ofender a vida humana, nesta fase ainda inexistente. Aliás, no caso Roe, a maior dificuldade no discurso defendido pelo pólo antiaborto seria diferenciar o por que, neste estágio, haveria vida e no estágio da fecundação não[60].

Outra é a teoria a do início da atividade neurológica, que segue a lógica da contraposição com a morte: se a morte é quando cessa a atividade elétrica no cérebro, a vida inicia-se quando o feto apresenta atividade cerebral. Ocorre, aproximadamente, apenas na 20ª semana, que é quando a mãe consegue sentir os movimentos do feto, pois é nesta fase que o tálamo, a central de distribuição de sinais sensoriais do cérebro, está pronto.

Ainda, existe a teoria da viabilidade, segundo a qual somente é dotado de natureza humana aquele que alcançou maturidade suficiente para viver fora do útero materno. Foi na viabilidade que a Corte Suprema dos Estados Unidos buscou a linha divisória entre o direito à liberdade e o direito à vida, merecedor de proteção estatal. Segundo explica Peter Singer:

A Corte sustentou que o Estado tem um interesse legítimo de proteger a vida em potencial e que esse interesse se torna “inexorável” na questão da viabilidade, “pois, então, supõe-se que o feto tenha a capacidade de levar uma vida significativa fora do útero materno”. Segundo a Corte, portanto, as leis que proíbem o aborto com base na viabilidade não são inconstitucionais[61].

Por fim, com relação à teoria do nascimento, Singer diz ser “a mais visível das possíveis linhas divisórias e a que melhor se ajusta à argumentação liberal” [62]. Segundo essa teoria, o nascimento com vida é que faz caracterizar uma pessoa.

E então, depois da exposição de todas essas teorias, qual é a correta? Não precisa nem mesmo ser uma dessas, pois existem outros marcos numa gestação que você pode considerar como o início da vida. Afinal, onde começa a vida?  Dworkin afirma que “a clareza do debate público não melhora nenhum pouco quando predominam as questões: ‘O feto é uma pessoa? ’ e ‘Quando começa a vida humana?’. O melhor é evitar essa linguagem o máximo possível”[63]. No entanto, tendo em vista que essa é uma questão recorrente no debate sobre o aborto, não podemos nos furtar a ela. Assim sendo, defendemos que a resposta só pode ser: não sabemos. Procurar pelo momento exato em que começa a vida significa uma busca inútil pela verdade absoluta. Isso, segundo Rorty, seria um falso problema, porque o máximo que conseguimos extrair seriam justificações práticas e contingentes com o objetivo de argumentar a favor da superioridade de nossos propósitos.

Ainda, podemos destacar essa incapacidade nossa de conhecer a coisa-em-si, em uma concepção kantiana. Refutamos, então, a elevação de uma discussão de valores supremos, indiscutíveis, como que concedidos por algo muito além do plano da existência. Não nos cabe, aqui, discutirmos sobre a capacidade humana de conseguir alcançar esses valores sobre-humanos, ou de tentar identificar quais são os valores metafísicos da divindade. Parece-nos nada frutífero, para o caso, discutir o conceito de vida-em-si e de tentarmos entender onde ela realmente começa. Seria um exercício vão tentar buscar qual a importância da vida e da liberdade como valores metafísicos.

E se não temos como saber o momento em que começa a vida, porque adotamos a teoria que anula absolutamente o direito de escolha da mulher? Os defensores da constitucionalidade da proibição do aborto defendem que, desde a concepção, existe uma vida humana em potencial e que, sendo assim, essa vida merece proteção do Estado. No entanto, veremos a seguir que a vida humana em potencial não se iguala, juridicamente, à vida humana. Iremos demonstrar que o nascituro, embora já possua vida, não é ainda “pessoa constitucional”.

ii.            Proteção à Vida do Nascituro

Conforme anteriormente sustentado, não estamos aqui a discutir se o feto é pessoa no sentido metafísico do termo, não nos cabe indagar se o feto tem ou não “alma” ou qualquer coisa que lhe valha. Estamos discutindo até que ponto vai a proteção constitucional à vida, pois, como todos os direitos, o direito à vida não é absoluto[64], mormente quando exclui direitos constitucionais tão preciosos quanto são o da liberdade e da dignidade da pessoa humana.

A ideia de que a vida do feto não se iguala à vida de uma pessoa já nascida é facilmente percebida no ordenamento jurídico brasileiro: a pena atribuída ao aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento é de detenção de 1 a 3 anos (art. 124 do CP); e a pena imposta pela prática de homicídio simples é de reclusão de 6 a 20 anos (art. 121 do CP). O Código Civil, por sua vez, afirma no seu art. 2º, que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Neste ponto, cumpre esclarecer que falar em vida humana e em pessoa humana não é a mesma coisa.

O feto humano é pessoa em potencial, mas não é ainda pessoa. Por exemplo, se eu pegasse 3 mil sementes de uma árvore que é protegida por lei e as queimasse, isso seria considerado desmatamento? Obviamente que não, pois uma semente não é a mesma coisa que uma árvore, apesar de ser potencialmente uma árvore. Nesse mesmo sentido, Peter Singer aborda o tema, considerando as seguintes premissas: primeiro, “é errado matar um ser humano em potencial”; segundo, “um feto humano é um ser humano em potencial; “logo, é errado matar um feto humano”. Com relação a esse argumento, Singer afirma que:

Conquanto seja problemático saber se o feto é realmente um ser humano – isso vai depender do que queremos dizer com o termo -, não se pode negar que o feto é um ser humano em potencial. Isso é verdade tanto se, por “ser humano”, estivermos nos referindo a um “membro da espécie Homo sapiens”, quanto se estivermos em mente um ser racional e autoconsciente, uma pessoa. Contudo, a força da segunda premissa do novo argumento é conseguida à custa de uma premissa mais fraca, pois o erro de matar um ser humano em potencial – até mesmo uma pessoa em potencial – é mais sujeito á contestação do que o erro de matar um ser humano real.

Não se duvida, por certo, de que a racionalidade e a autoconsciência potenciais do Homo sapiens fetal (bem como outros atributos semelhantes) superam essas mesmas qualidades do modo como se manifestam numa vaca ou num porco; daí não se segue, porém, que o feto tenha um direito mais forte á vida. Não existe regra que afirme que um X potencial tenha o mesmo valor de um X, ou que tenha todos os direitos de um X. Há muitos exemplos que mostram exatamente o contrário. Arrancar uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que derrubar um venerável carvalho. Colocar um frango vivo dentro de uma panela com água fervente seria muito pior do que fazer o mesmo com o ovo. O príncipe Charles é rei da Inglaterra em potencial, mas, no momento, não tem os direitos de um rei[65].

Pode-se pensar, ainda, em um argumento, bastante utilizado, por sinal, de que existe uma “humanidade intrínseca” àquele ser humano em potencial, que o faz valioso, único. Primeiramente, a questão sobre esse tal “valor intrínseco dos seres humanos” parte de um pressuposto metafísico, embora não necessariamente religioso, que já determinamos não ser apropriado à nossa discussão. Porque esse argumento parte do dogma de que “o ser humano, por si só, é valioso”. E, justamente por ser um dogma, é um fim em si mesmo. Seria absolutamente inócua uma discussão acerca do porque o ser humano é valioso ou o que faz esse ser humano ser valioso. Carnap afirma que:

Se um metafísico, depois de introduzir a palavra “babu”, afirma que há coisas que são babuas e outras que não o são, devemos perguntar-lhe qual é o critério empírico de tais asserções. Se não consegue encontrar o critério em questão, deve-se recusar o termo “babu”[66].

Isso porque, “os enunciados em que elas figuram não têm nenhum sentido. São pseudo-enunciados”. Da mesma forma, o que significa “ser valioso”? Qual a base empírica dessa afirmação? Não existe. A única base para esse “valor intrínseco do ser humano” é puramente metafísico, de um valor transcendental do indivíduo.

De acordo com Dworkin, “a crença de que o valor da vida humana em si transcende o valor que ela tem para uma determinada criatura – a crença de que do ponto de vista do universo, por assim dizer, a vida humana tem um valor objetivo – é evidentemente uma crença religiosa, mesmo quando é adotada por pessoas que não crêem numa divindade pessoal”[67]. Sendo assim, conforme já exposto nas premissas desse trabalho, se um argumento é baseado numa crença particular, não pode ser utilizado num debate público como o nosso. Nesse aspecto, portanto, não aceitamos essa posição[68].

Dworkin vai além, ao afirmar que, mesmo considerando o feto como uma pessoa viva singular, isso não significa que “já tenha direitos e interesses como aqueles que o Estado pode ter a responsabilidade derivada de proteger, nem tampouco que já incorpore o valor intrínseco da vida humana que o Estado pode ter a pretensão destacada de resguardar” [69]. Para ele, como mencionamos anteriormente, é irrelevante a indagação sobre quando começa a vida humana ou se o feto é uma pessoa. Em suma, afirma que: “os juristas e filósofos querem saber se o feto é uma pessoa dotada de direitos” [70].

Portanto, ainda segundo Dworkin, o feto não tem interesse. Isso porque “para que algo tenha interesses, também não basta que esteja em vias de se transformar num ser humano” [71]. Segundo ele, “nada tem interesses se não tem ou teve alguma forma de consciência – não só uma vida física, mas também uma vida mental” [72]. Esse entendimento encontra respaldo científico na teoria do início da atividade neurológica, mas o marco é bastante próximo ao da teoria da viabilidade. É fato, portanto, que o feto não apresenta capacidade alguma para a racionalidade antes do desenvolvimento do córtex cerebral. Antes disso, ele não é capaz de qualquer tipo de sentimento, como a dor, por exemplo. Essa ideia também encontra similaridade com a teoria kantiana, ao considerarmos a definição da personalidade humana a partir da racionalidade[73]. Só um ser racional tem vontade.

Sendo assim, consideramos que a vida do feto também é protegida pela Constituição, mas que essa proteção não se iguala à dada por alguém que já nasceu. Além disso, o nascituro não tem essa proteção constitucional desde a concepção, mas a tutela jurídica vai aumentando durante a gestação, sob pena de inviabilizar o direito à liberdade da mulher.

Portanto, existe uma distinção entre ser humano, no sentido de pessoa humana, o que, obviamente, o embrião é, um ser vivo, do que é pessoa humana constitucional, sujeito de direitos. E, por todo o exposto, consideramos que o feto não é uma pessoa constitucional.

VI.   Princípio da Proporcionalidade

 

O tema ora debatido claramente envolve aquilo que se denomina de colisão de direitos fundamentais, isto é, de normas principiológicas de caráter eminentemente constitucional e de mesma estatura que em determinado caso concreto se antagonizam, impelindo o intérprete constitucional, utilizando-se de procedimentos hermenêuticos sofisticados, a fazer prevalecer, numa medida específica, um dos valores ponderados. O choque de axiomas em tela diz respeito a dicotomia latente entre direito à vida do ser humano que está para nascer e a autonomia da vontade da mãe de optar por não prosseguir com a gravidez.  Sobre o tema, o ilustre professor alemão Robert Alexy analisa percucientemente:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem- o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder (...)[74].

Pois bem. Quando essa situação de ponderação de valores, tipicamente afeta a ordenamentos jurídicos pautados pelo fenômeno jusfilosófico denominado pós-positivismo jurídico, apresenta-se, a pedra de toque que deve informar a decisão do exegeta é o chamado princípio da proporcionalidade, chamado por muitos de “princípio dos princípios”. O Professor Luís Roberto Barroso leciona no pertinente a tal princípio que:

Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema[75].

 Nessa perspectiva, devemos nos ater ao fato de que o postulado em comento, quando utilizado como instrumento de interpretação, deve ser sempre observado em sua tríplice faceta, ou seja, adequação entre o meio empregado e o fim perseguido/obtido, exigibilidade ou necessariedade da medida apresentada como menos onerosa para os bens valorados, proporcionalidade em sentido estrito para aferição das vantagens e desvantagens de cada valor ponderado. Da análise desses elementos, aliada a uma forte argumentação jurídica – calcada em fatores jurídicos, sociais, políticos, econômicos, etc, e de técnicas constitucionais apropriadas para tanto, como os princípios da interpretação conforme, força normativa da constituição, máxima efetividade, entre outros, pode-se traçar o resultado juridicamente mais hábil para composição do caso em concreto.

Merece especial destaque, de outro lado, na apreciação da matéria ora explorado, que no embate de direitos fundamentais de igual hierarquia como os que aqui se apresentam, deve-se ter em mente as lições do já citado Alexy quando disserta que:

Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que ele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta[76].

 

No jogo conflituoso de princípios, o conflito não possuidor de predominância em determinado concreto não deve ser totalmente afastado na hipótese, devendo-se manter o seu núcleo essencial, segundo a já examinada faceta do princípio da proporcionalidade denominada de necessidade/exigibilidade, e, sobretudo, devido ao que se chama de princípio da concordância prática, desenvolvido essencialmente por Konrad Hesse, e que tem seus contornos desenvolvidos por Inocêncio Coelho no seguinte excerto:

 

Intimamente ligado ao princípio da unidade da Constituição, que nele se concretiza, o princípio da harmonização ou concordância prática consiste essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum[77].

A guiza do exposto, tem-se que o caso da criminalização do aborto no Brasil merece séria reflexão, pois considerando a hipótese, diante das premissas retroestabelecidas, há um sério desequilíbrio do ponto de vista constitucional, eis que o bem jurídico da vida da criança vem recebendo total prevalência no ornamento jurídico em detrimento de praticamente qualquer concessão a autonomia da vontade. Devem ser buscados, em homenagem à segurança, saúde e autonomia da mãe, mecanismos que possam sanar a desarmonia mencionada, com necessária presença de sérios critérios democraticamente debatidos, fazendo com que os parâmetros ora delineados sejam devidamente atendidos.

Nessa linha, vale a transcrição do emérito professor Claus Roxin,

Se a vida daquele que nasceu é o valor mais elevado do ordenamento jurídico, não se pode negar à vida em formação qualquer proteção; não se pode, contudo, igualá-la por completo ao homem nascido, uma vez que o embrião se encontra somente a caminho de se tornar homem, e que a simbiose com o corpo da mãe faz surgir colisões de interesses que terão de ser resolvidas através de ponderações [78].

 

 

 

VII.            Conclusão

A legislação proibitiva do aborto viola o princípio da igualdade, pois ela gera um impacto desproporcional sobre as mulheres. É a mulher que, quando não aceita a imposição legal, busca os meios precários e inseguros para dar termo à gestação e somente ela que, obedecendo à lei, ainda que a contragosto, carrega a gestação e, na maioria dos casos, a maior responsabilidade na criação do filho.

O direito da mulher à saúde, privacidade, autonomia reprodutiva, liberdade e igualdade estão sendo manifestamente ignorados e repreendidos pelo retrógado Código Penal de 1940. Não nos parece razoável que a norma constitucional possa ser interpretada fora do contexto histórico em que vivemos, de uma independência feminina muito diferente do cenário onde o Código foi concebido.

Sendo assim, por todo o exposto no presente trabalho, concluímos que a ordem fundada pela Constituição Federal de 1988 protege a vida do embrião, mas essa proteção não se iguala à vida das pessoas já nascidas. Por isso que, mediante a ponderação de direitos fundamentais (vida e liberdade), pode-se dar prevalência, num certo ponto, ao direito de escolha da mulher sobre a própria vida.

A incompatibilidade entre os preceitos constitucionais e a proibição do aborto é evidente. É triste a constatação que, em pleno século XXI, a mulher brasileira tenha seus direitos tão rechaçados. Somente com a garantia do seu direito à autodeterminação, dignidade e liberdade que a Constituição terá, efetivamente, tomado posse do seu fundamental atributo da coerência.

VIII.        Referências Bibliográficas

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[1] A 14ª Emenda da Constituição dos EUA afirma que: “nor shall any State deprive any person of life, liverty, or property, without the due process of law”. No entanto, para a compreensão da tese levantada pelo Estado do Texas, devemos ressaltar que trata-se do devido processo legal substantivo.

[2] HULL, N. E. H. HOFFER, Peter Charles. Roe v. Wade: the abortion rights controversy in american history.  Kansas: University Press of Kansas, Pg. 145.

[3] HULL; HOFFER (Pg. 146 e 147).

[4] 9ª Emenda: “the enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the people.

[5] COLEMAN (Pg. 13-24).

[6] HULL; HOFFER (Pg. 145).

[7] Caso Roe vs. Wade. Disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=us&vol=410&invol=113> Acesso em: 25.11.2013. Tradução nossa.

[8] DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, Pg. 182.

[9] Bourdieu chamou de “poder simbólico” o discurso dissimulado que se submete sem precisar da força, que obtém a cumplicidade de quem a ele se sujeita, que esconde sua arbitrariedade para conseguir manipular pela ignorância. A intervenção penal excessiva, a exemplo da criminalização do aborto, parece ter se tornado a representação desse poder simbólico. Isso porque, o correto seria a limitação do poder punitivo estatal. No entanto, o que percebemos é a intensificação da criminalização primária, convertendo a resposta legislativa criminalizante em “solução”, em detrimento da adoção de políticas públicas, uma indiscutível violação ao princípio da intervenção mínima do Estado.

[10] DIAS, Jorge Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa.  Criminologia. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, Pg. 405-406.

[11] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tomemos a sério o princípio do Estado laico. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11457>. Acesso em: 25.11.2013.

[12] HABERMAS, Jürgen. El Futuro de la Naturaleza Humana. Trad. R. S. Carbó. Barcelona: Ed. Paidós, 2002, Pg. 50.

[13] DWORKIN (Pg. 71).

[14] BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, Pg. 82.

[15] COSSIO apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 2000, Pg. 54-55.

[16] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 55).

[17] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 54-55).

[18] O Direito, enquanto objeto de conhecimento, difere radicalmente dos fenômenos físicos, porque em relação a esses as verdades obtidas resultam, necessariamente, do estudo da realidade por um método empírico-indutivo, tendo a explicação como ato gnosiológico.

[19] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 57).

[20] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 57).

[21] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 63).

[22] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 64).

[23] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 64).

[24] KELSEN apud Sônia Maria Broglia Mendes. A Validade Jurídica: Pré e Pós Giro Lingüístico. São Paulo: Noeses, 2007, Pg. 122.

[25] MENDES; COELHO; BRANCO (Pg. 68).

[26] COELHO, Inocêncio Mártires. Da Hermenêutica Filosófica à Hermenêutica Jurídica - Série IDP. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, Pg. 183.

[27] COELHO (Pg. 183).

[28] MENDES, Gilmar. Controle de Constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº. 3, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 27.11.2013, Pg. 6.

[29] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Brasília: Sério Antonio Fabris, 2010, Pg. 12-13.

[30] MENDES (Pg. 11).

[31] MENDES (Pg. 9).

[32] MENDES (Pg. 8).

[33] MENDES (Pg. 8).

[34] KELSEN, Hans, Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, VVDStRL 5, 1928, p. 80-81; Cf. também tradução italiana de Geraci, Carmelo,  La Garanzia giurisdizionale della Constituzione, in: La giustizia costituzionale, Milão, 1980, Pg. 144 (201-203).

[35] DWORKIN (Pg. 159).

[36] Painel Temático: Saúde da Mulher. Disponível em: <http://www.fiocruz.br/redeblh/media/painelmulher.pdf>. Acesso em 25.11. 2013.

[37] Painel Temático: Saúda da Mulher. 

[38] Clandestinas: retratos do Brasil de 1 milhão de abortos clandestinos por ano. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-09-20/clandestinas-retratos-do-brasil-de-1-milhao-de-abortos-clandestinos-por-ano.html. Acesso em: 5.12.2013.

[39] PEIXOTO, Francisco Davi Fernandes. A Ineficácia Jurídica e Econômica da Criminalização do Aborto. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/francisco_davi_fernandes_peixoto2.pdf> Acesso em: 25.11.2013.

[40] Painel Temático: Saúde da Mulher.

[41] NOYA, Ana; LEAL, Isabel Pereira. Interrupção Voluntária da Gravidez: que respostas emocionais? Que discurso psicológico? Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aps/v16n3/v16n3a09.pdf>. Acesso em 25.11.2013.

[42] NOYA; LEAL.

[43] NOYA; LEAL.

[44] Interrupção voluntária da gravidez.

[45] NOYA, LEAL.

[46] A 13ª Emenda da Constituição americana dispõe que: “neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime whereof the party sall have been duly convinced, shall exist within the United States, or any place subject to their jurisdiction.

[47] HULL; HOFFER (Pg. 149).

[48] DWORKIN (Pg. 159).

[49] BONAVIDES; MIRANDA; AGRA (Pg. 82).

[50] HULL; HOFFER (Pg. 148)

[51] HULL; HOFFER (Pg. 149).

[52] TRIBE, Laurence. American Constitucional Law. 2nd ed., Mineola: The Foundation Press, 1988, Pg. 1354. Tradução nossa.

[53] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. Pg. 219.

[54] NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos. 2ª ed., Buenos Aires: Editorial Astrea, 1989. Pg. 199.

[55] DWORKIN (Pg. 165).

[56] DWORKIN (Pg. 166).

[57] DOWRKIN (Pg. 166).

[58] DWORKIN (Pg. 182).

[59] DWORKIN (pg. 182).

[60] Isso porque a Suprema Corte americana já havia decidido pela constitucionalidade dos métodos contraceptivos de prevenção à gestação, protegido pelo direito à privacidade e autonomia reprodutiva.

[61] SINGER, Peter. Ètica Prática. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Pg. 147.

[62] SINGER (Pg. 148).

[63] DWORKIN (Pg. 139).

[64] Não estamos aqui sustentando uma tese não aceita de que o direito à vida não é absoluto. Ele não é já de acordo com o nosso ordenamento jurídico. Isso é perceptível pelas próprias excludentes de ilicitude no caso do aborto voluntário (caso de estupro, por exemplo) ou nos crimes de homicídio (justificável em estado de necessidade), na possibilidade de haver pena de morte nos casos de guerra declarada, etc.

[65] SINGER (Pg. 163).

[66] História da Filosofia no Século XX. Pg. 112.

[67] DWORKIN (Pg. 162).

[68] Ademais, deve-se ter cautela ao utilizar esse argumento. Isso porque, ele nos leva a condenar os métodos contraceptivos, que são amplamente aceitos e utilizados pela população feminina, bem como nos leva a rechaçar a possibilidade de aborto que a própria legislação brasileira já aceita, como é o caso da gravidez resultante de estupro.

[69] DWORKIN (Pg. 138-139).

[70] DWORKIN (Pg. 140).

[71] DWORKIN (Pg. 147).

[72] DWORKIN (Pg. 147).

[73] Importante salientar, sob o risco de cairmos em contradição, que essas considerações não dizem respeito à questão de “onde começa a vida”, a qual já definimos se tratar de um falso problema. Trata-se de definir onde começa a vida para o direito. Isso porque, o direito não pode se furtar a dar uma resposta a essa indagação. Então, mesmo considerando que se trata de uma ficção, temos que estabelecer um marco para garantir a proteção da vida do nascituro. E o direito não tem problema algum em fazer isso. Pense, por exemplo, na adoção de um prazo para a produção de provas. O juiz fixa um prazo de 10 dias. Poderia ser 5, 11 ou 30 dias. 5 dias seria muito pouco, 30 seria muito, ocasionando a demora à prestação jurisdicional e, por isso, 10 parece razoável. Isso porque algum marco tem que ser definido, e esse marco deve ser razoável para ambas as partes em um processo.

[74] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduçã:. Virgílio Afonso da 5ª ed. Alemã Theorie der Grundrechte. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 93.

[75] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7ª ed. ver. São Paulo: Saraiva, 2009, Pgs. 374/375.

[76] ALEXY (Pg. 93)

[77] MENDES, Ferreira Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires Coelho; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito Constitucional- 4ª ed. ver. Atual. São Paulo: Saraiva, 2009, Pg.136.

[78] ROXIN, Claus. A Proteção da Vida Humana através do Direito Penal. Conferência realizada no dia 07 de março de 2002, no encerramento do Congresso de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Rio de Janeiro. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br