O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO COMO GARANTIDOR DO DIREITO À SAÚDE: uma análise crítica quanto à “Judicialização Farmacêutica”1

Luiza Fonseca Campos

Nathália Araújo Santos

Sumário: Introdução; 1. A Saúde como Direito garantido pela Constituição; 2. “A Judicialização da Assistência Farmacêutica”; 3. A Realidade da Saúde Pública no Brasil; Conclusão. Referências.

RESUMO

A saúde pública é um direito fundamental garantido constitucionalmente a todo e qualquer cidadão, visando o bem-estar da coletividade. Contudo, nem sempre esse direito é garantido a todos de uma maneira igualitária, seja por falta de fornecimento de medicamentos e atendimento médico, ou até mesmo por parte de planos de saúde que se negam a prestar coberturas assistenciais necessárias, o que leva o cidadão a impetrar demandas judiciais visando assegurar esse direito. O seguinte trabalho objetiva fazer uma análise crítica do papel do Poder Judiciário como garantidor desse direito à população, em uma abordagem específica com relação à “Judicialização Farmacêutica”.

PALAVRAS-CHAVE

Judicialização Farmacêutica. Saúde Pública. Poder Judiciário. Direito Fundamental.

INTRODUÇÃO

A saúde pública é um dos aspectos de maior importância dentro da esfera dos direitos garantidos à população. Em tese, pode-se dizer que a população está bem servida no que diz respeito à saúde, afinal, para quem não tem condições de arcar com todas as despesas necessárias para sua saúde e de sua família existe o SUS (Sistema Único de Saúde), garantindo o acesso da camada mais humilde da sociedade à uma assistência adequada.

Mas isso funciona apenas na teoria, o que se sabe é que não existe uma devida adequação para servir a população de uma maneira digna, há falta de médicos, de remédios e de estrutura para atender os cidadãos, não há investimentos e são percebidos negligência e até indiferença por parte da classe política com a questão, afrontando assim o direito fundamental à saúde.

Devido a presente situação o Judiciário tem sido provocado de forma crescente e constante com demandas relacionadas a questões como essa, caracterizando uma verdadeira judicialização do direito à saúde.

1. A SAÚDE COMO DIREITO GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO

Em relação aos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal, cabe salientar que estes tem aplicabilidade direta e imediata. A saúde pública é uma dessas garantias, o artigo 196 da Carta Magna assevera que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Como é dito no próprio artigo de maneira literal, a saúde tem de ser garantida por meio de políticas sociais que visem o próprio acesso à saúde, não fazendo qualquer distinção entre os sujeitos destinatários desses benefícios. Nos grifos de Gandini e Barione:

“Para cumprimento desse dever que a Constituição lhe impõe, o Estado instituiu entidades públicas, ora pertencentes à Administração direta, ora à Administração indireta, bem como criou mecanismos de cooperação entre essas entidades e entre entidades do setor privado, de modo que a execução das políticas públicas de saúde se efetive de modo universal e igualitário observando as peculiaridades regionais e sociais da população que atende.”4

De fato é necessário todo um cuidado, pois dependendo de cada região existem peculiaridades. Em algumas áreas há deficiência de médicos pediatras, por exemplos, em outros de cardiologistas. A saúde pública é uma questão delicada exatamente por lidar com a vida das pessoas, motivo pelo qual devem ser feitas previsões orçamentárias, forte investimento em hospitais e na capacitação dos profissionais, além de uma distribuição igualitária de remédios, tudo para que o direito dos cidadãos tenha maior eficácia.

Para Luis Roberto Barroso,

“qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer conseqüência jurídica. Pelo contrário, conforme se verá ao longo deste estudo, a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras conseqüências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”5.

A raiz dessa garantia constitucional reside no princípio da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o bem-estar e uma vivência de maneira digna em todos os aspectos; é o valor maior e base de toda a Constituição, caracterizando-se também como um direito fundamental. O amparo à doença, nesse rol, é tido como direito fundamental social juntamente com aqueles relacionados ao trabalho, ao seguro social e à velhice.6

2. “A JUDICIALIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA”

É dever do Sistema Único de Saúde (SUS) a prestação da devida assistência farmacêutica à população. A Portaria n. 698/GM, de 30 de maio de 2006 define que o custeio das ações de saúde é de responsabilidade das três esferas de gestão do SUS, observando o disposto na Constituição Federal e na Lei Orgânica do SUS, dispondo sobre as questões de financiamento e investimentos na área de assistência farmacêutica.

Essa obrigação porém esta não está sendo fornecida de maneira adequada, haja vista o crescimento exorbitante de ações que tem como objeto a consecução de medicamentos. É um fenômeno que está sendo conhecido como “Judicialização da

Assistência Farmacêutica”, “Judicialização da Saúde” ou “Fenômeno da Judicialização dos medicamentos”.7

A assistência farmacêutica também está garantida na Constituição Federal, e o cidadão tem o direito de se valer do Poder Judiciário para executar sua obrigação. Sabe-se que o crescente aumento de processos que chegam ao Judiciário requerendo a assistência de um direito que já deveria estar sendo garantido pelo Estado – por ser este um direito expressamente previsto pela Carta Magna – representa a falha de todo um sistema. Em verdade, diante da insuficiência de recursos públicos para atender a todas as necessidades sociais, inevitavelmente o Estado lidará com situações em que será preciso deixar de investir em um setor para investir em outro. 8

No que concerne especificamente às ações que pleiteiam o recebimento de medicamentos, cabe ao operador da Justiça atentar para alguns detalhes como: verificar se aquele medicamento está na lista do SUS, se é o medicamento mais viável do ponto de vista econômico, se o mesmo está registrado pela Anvisa, e etc.

Em relação às ações individuais que intentam o recebimento de medicamentos não constantes da lista, a decisão que defere o pedido pode ferir o princípio da isonomia, na medida em que a prestação de assistência à saúde independe do maior ou menor grau de acesso à saúde. Nesse sentido é o relato da Ministra Ellen Gracie na SS 3073/RN segundo à qual

“A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas.”9

Há, ainda, a questão do princípio da Separação dos Poderes que pode restar prejudicada com a ingerência excessiva ao Judiciário, já que tais políticas públicas já foram previamente estabelecidas e delimitadas por órgãos governamentais específicos. Não se está aqui a defender a não interferência do Poder Judiciário na tentativa de ampliar a efetividade

de um direito fundamental, está-se, outrossim, a criticar o ajuizamento excessivo de demandas individuais, que podem ter decisões que inviabilizem a máquina estatal.

Referente às ações coletivas é razoável uma possível alteração na lista dos medicamentos que porventura seja mais adequada para satisfazer as necessidades dos demandantes. Nesse caso, “o Judiciário poderá vir a rever a lista elaborada por determinado, ente federativo para, verificando grave desvio na avaliação dos Poderes Públicos, determinar a inclusão de determinado medicamento.”10 Nesse caso, não se trataria, propriamente, de uma invasão de esferas, senão de uma aplicação do sistema de freios e contrapesos. Luís Roberto Barroso, ao discutir essa questão defende que

“(...) uma ação coletiva ou de controle abstrato de constitucionalidade produzira efeitos erga omnes, nos termos definidos pela legislação, preservando a igualdade e universalidade no atendimento da população. Ademais, nessa hipótese, a atuação do Judiciário não tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal.”11

No entanto, esse tipo de decisão esbarra em alguns limites como, por exemplo, a inclusão na lista apenas de medicamentos que tenham a eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos, optar por incluir medicamentos disponíveis no mercado nacional e aqueles genéricos e de menor custo. Além disso, deve-se analisar se o medicamento é indispensável à manutenção da vida. Cabe ao juiz, portanto, analisar e tomar a decisão que ache mais plausível em relação a cada caso concreto, analisando todas as provas e a real necessidade do medicamento pelo enfermo, dentre outras prioridades.

As provas são de imprescindível importância nesse caso, pois são necessários laudos médicos, receitas médicas originais e depoimento da parte requerente. Tudo irá dar fundamento a decisão do juiz. Tal como assevera Câmara “(...) a prova é todo elemento que contribui para a formação da convicção do juiz a respeito da existência de determinado fato.”12

Legitimado para figurar no pólo passivo deverá ser o órgão responsável pela inclusão do medicamento na lista, embora seja possível responsabilizar os entes federativos de forma solidária.

3. A REALIDADE DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

É sabido que a saúde pública é um dos grandes problemas enfrentados pelo Brasil, e um dos que mais comprometem o seu desenvolvimento.

Primeiro há que se falar da própria questão sanitária do país, o saneamento básico, por exemplo, está longe do ideal, desde o sistema colonial que focava na exploração de recursos da terra sem implantar infra-estrutura até as próprias condições climáticas naturais do Brasil, tudo contribui para que o saneamento básico seja deficiente, além da falta de investimento no setor.

Isso está diretamente ligado à saúde, pois muitas famílias vivem em áreas com esgotos a céu aberto, expondo todos a um perigo enorme de contaminação.

Já no século passado era comum que os jornais noticiassem com uma certa freqüência sobre as deficiências presentes na qualidade do abastecimento de água para a população, pois inexistia qualquer tipo de tratamento químico e falta de fiscalização adequada nas cidades que possuíam tratamento próprio de água.13

Outro ponto importante a se destacar é a falta de uniformidade na organização administrativa dos serviços de água e esgoto no Brasil, vários municípios operavam de forma autônoma, alguns tinham resultados melhores e outros não. 14

O problema do saneamento básico, juntamente com a falta de investimento em estrutura e mão de obra decadente compromete o desenvolvimento do setor de saúde no Brasil.

Apesar de ter melhorado consideravelmente nos últimos anos, um dos aspectos que chama mais atenção e tem uma demanda crescente no Judiciário é a distribuição de medicamentos. Tem se observado que ainda existem insuficiências no acesso gratuito, principalmente dos medicamentos considerados essenciais, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS),

“(...) medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem às necessidades prioritárias de cuidados da saúde da população e, devem estar disponíveis em todos os momentos, dentro do contexto de funcionamento dos sistemas de saúde, em

quantidades adequadas, em dosagem apropriada, com assegurada qualidade e a preço que os indivíduos e a comunidade possam arcar...”15.

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Em um estudo feito no estado do Rio de Janeiro, foram identificadas mais de 2.700 ações individuais pleiteando medicamentos, movidas contra o estado do Rio de Janeiro no período de 1991 a 2002.16 Essas estatísticas só ilustram a real situação na qual o Brasil está inserido, justificando o uso excessivo do Judiciário como meio alternativo para o acesso à saúde.

CONCLUSÃO

O direito fundamental à saúde, quando ineficaz em razão da deficiência do Estado na promoção das prestações materiais necessárias à sua completa realização, é passível de ser tutelado via judicial. O fenômeno da judicialização do sistema de saúde revela um estado de ineficiência na garantia de direitos fundamentais.

Na maioria das vezes a assistência farmacêutica peca por erros administrativos ou de logística, seja por má distribuição, ou entraves no procedimento de aquisição. Nas ações relacionadas ao assunto há de se observar questões pertinentes, tais como a prescrição no tratamento do paciente e a real existência do medicamento pleiteado, pois atualmente existem muitas ações cujo objeto são medicamentos ainda em fase experimental, geralmente tendo como requerente pessoas em estágios avançados de doenças que querem tentar de todo o possível para conseguir a recuperação.

Ainda que a judiciliazação excessiva seja prejudicial ao aparelho estatal, uma vez que pode ocasionar vários impactos orçamentários, o Judiciário não deve manter-se inerte diante da não-efetivação de um direito que está intrinsecamente ligado aos direitos fundamentais à vida e à dignidade da pessoa humana: o direito à saúde!

REFERÊNCIAS

BARIONE, Samantha Ferreira. GANDINI, João Agnaldo Donizete. A Judicialização do Direito à Saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial. São Paulo. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/16694. Acesso em: 21/05/11

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1996.

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Rio de Janeiro. Disponível em: <<http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf>>. Acesso em 21/05/11

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 19 ed. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2009.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10a rev. São Paulo: Universidade de

São Paulo; 1997. Vol.1.

SANT’ANA. João Maurício Brambati. Essencialidade e Assistência Farmacêutica: Um estudo exploratório das demandas judiciais individuais para acesso a medicamentos no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/premio_medica/pdfs/trabalhos/mencoes/joao_mauricio_trabalho_completo.pdf> . Acesso em: 22/05/11

STF, DJU 14 fev. 2007, SS 3.073/RN, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie