Ana Valéria Cabral Marques

Atos Paulo Nogueira Otaviano

Felipe Marto Soeiro Carneiro

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar inicialmente o fenômeno da reprodução humana assistida post mortem e seus reflexos no direito, explicitando seu desenvolvimento histórico no contexto nacional, os princípios norteadores da temática e posicionamentos doutrinários. Finalizar-se-á com o cerne da problemática, a demonstração de como decorre o direito sucessório nesse tipo especifico de reprodução assistida e de que forma a legislação presente fornece amparo nessas circunstâncias.

1 INTRODUÇÃO

Realizando uma concisa análise acerca das relações familiares e suas modificações ideológicas que decorrem de processos morais e sociais, é possível destacar que o avanço científico também acarretou em possibilidades que carecem de um amparo do Direito, tendo em vista as modificações estruturais que podem ser depreendidas. É nesse sentido que se destaca a inseminação do tipo homóloga, que, através da manipulação dos gametas, viabiliza a fecundação e reprodução humana.

A ampliação conceitual no que tange as estruturas familiares após a possibilidade supracitada incide no fato de que tal procedimento, por conservar os gametas por longo decurso temporal, possibilita a reprodução humana em situação em que aquele que é dono do material já não se encontra mais com vida.

Destarte, surgem os chamados “testamentos biológicos”, que manifestam a vontade em relação à destinação de sêmens e óvulos congelados para utilização post mortem. Ressalta-se que é tal fator enseja a um cônjuge a possibilidade ímpar de ter sua descendência com o doador a qual se tem parceria, mesmo com o seu falecimento.  O fato é que a legislação ainda não regula com maestria os limites e desdobramentos de tal possibilidade, bem como, doutrinariamente, há oscilação de posicionamentos.

 Desenvolver-se-á, portanto, a problemática quanto ao direito sucessório que advém de tal possibilidade, explicitando o posicionamento doutrinário majoritário e somando-se aos princípios norteadores, demonstrando o real direito sucessório proveniente da reprodução assistida homóloga post mortem.

2 ASPECTOS HISTÓRICOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO CONTEXTO NACIONAL

A reprodução humana assistida constitui um apanhado de técnicas heterogenias que possibilitam o combate à esterilidade, bem como a prevenção quanto à enfermidades genéticas e hereditárias (MADALENO, 2010).

Imerso nesse parâmetro conceitual, a reprodução assistida homóloga post mortem surge para possibilitar uma fecundação que decorre posteriormente à morte do doador, sendo o processo de inseminação em que uma mulher “realiza com o esperma de seu marido, após a morte deste [...]. O homem que congelou seu esperma em bancos de esperma pode morrer e à viúva faculta-se, então, reclamar a devolução do material coletado, para se inseminar com o esperma do marido falecido” (LEITE, 2004, p. 38).

Tal processo supracitado emana de sistemática relativamente hodierna, tendo em vista a necessidade de amparo científico extremamente específico e complexo, uma vez que o sêmen se encontra em processo de criopreservação. Todavia, historicamente é possível relatar (em contexto amplo) a reprodução humana assistida obtendo sucesso séculos atrás. Trata-se do caso atribuído ao cirurgião inglês Juan Hunter que, em 1791, realizou a primeira inseminação artificial que se tem indícios. Posteriormente, um professor francês realizou o mesmo processo, com êxito, em 8 (oito) mulheres, em 1838. Já mais recente (1970), diversas equipes foram formadas especificamente para realização de inseminação in vitro, dando origem ao primeiro bebê de proveta, Louise Brown (BARBOZA, Heloísa Helena, 1993).

A importância de uma análise histórica a nível geral possibilita uma delimitação desse mesmo processo no contexto brasileiro, uma vez que, após 1970, as clínicas de reprodução humana surgiram em diversos países, incluindo o Brasil, conforme ressalta Débora Allebrandt (p. 128, 2007) em:

Dez anos após o nascimento da referida infante, o Brasil possuía seis clínicas de reprodução só em São Paulo. Em 2007, contava com 117, segundo dados da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. Ressalva-se que as técnicas, as instalações das clínicas, os meios, os equipamentos e os medicamentos eram e são fornecidos por laboratórios estrangeiros, pois não há, no Brasil, locais de ensino de reprodução assistida.  

A partir de 1980, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida no Brasil possibilitou o surgimento do primeiro bebê de proveta brasileiro (e primeiro da América Latina) (BARBOZA, Heloísa Helena, 1993). Esse fato consolidou em diversas medidas a ampliação de métodos científicos que concedem a reprodução humana de forma assistida no contexto nacional. A evolução que decorreu até os dias atuais inclui modalidades de gestação por substituição, reprodução homóloga post mortem, entre outras técnicas difundidas em boa parte do Brasil.

O fato é que todo esse processo evolutivo e histórico no Brasil ocorreu de maneira célere no que diz respeito ao desenvolvimento científico, ressaltando-se que o Brasil não se distanciou nesse critério de forma significativa dos demais países, mas sucedeu de intensa morosidade em termos de propagação homogênea a nível nacional, tendo em vista em diversos Estados brasileiros, ainda considera-se a reprodução assistida uma realidade distante.

O que decorre dos fatores supramencionados é a inegabilidade de que esse avanço pressupõe uma reflexão e reestruturação em termos jurídicos, uma vez que fomenta alterações nas modalidades basilares de estrutura familiar, o que inclui-se o direito sucessório, conforme será sopesado no decorrer do presente artigo.  

2.1 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

No advento da elaboração do Código Civil de 1916, ainda não havia no Brasil um estabelecimento concreto das modalidades de reprodução humana assistida como possibilidade plausível carente de regulamentação jurídica, conforme explicitado posteriormente em se tratando do desenvolvimento histórico no contexto nacional. Tal fator justifica a intensa lacuna legislativa sobre, por exemplo, concepção humana após a morte do genitor. 

Todavia, o Código Civil de 2002 não apresentou reformulações significativas versando sobre o tema, mantendo a lacuna legislativa e gerando uma mazela de notoriedade, uma ausência de regulamentação suficiente sobre os direitos do embrião criopreservado.

É necessário analisar as considerações do próprio código quanto à concepção familiar, filiação, presunção e direito sucessório (problemática central apresentada em tópico específico) a fim de elucidar o que o mesmo preleciona. É nesse sentido que Maria Helena Diniz afirma que “Dentre as várias espécies de parentesco, o denominado natural, ou consanguíneo, é aquele que retrata o vínculo entre as pessoas que partilham um mesmo tronco ancestral, ligadas, portanto, pelo sangue.” (DINIZ, Maria Helena, 2002, p. 361). O seu entendimento consubstancia-se com o Art. 1.593 “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2002).

Sua afirmação denota o parentesco não é exclusivamente por relação de sangue, bem como a delimitação do próprio Código Civil, o que favorece institutos como a adoção e reprodução assistida heteróloga. Clareada a noção de parentesco, o Código Civil, por meio do Art. 1.596, afirma que “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 2002). É dessa forma que, ainda com previsão constitucional, não há distinção entre os filhos, o que inclui os advindo da reprodução assistida homóloga post mortem e das demais modalidades de reprodução assistida.

Por fim, a chamada presunção se faz presente no Código Civil de 2002, por meio do Art. 1.597 lecionando que:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.  

Embora haja essa previsão da prática de reprodução assistida post mortem no Código Civil (quanto à presunção, especificamente), denota-se que os dispositivos mencionados não cumprem o encargo de regulamentar, apenas possibilitam sua constatação de maneira interpretativa ou expressa, tornando-se insatisfatório por não conter limitações, rompendo com a impossibilidade jurídica, mas versando de maneira insatisfatória (GIORGIS, José Carlos, 2009).

3 BREVE CONCEPÇÃO SOBRE DIREITO SUCESSÓRIO

A sucessão constitui um direito imputado aos herdeiros de um de cujus, compreendendo seu ativo e passivo através da transmissão de patrimônio (GONÇALVES, 2004). Essa transferência de herança ou legado pode ser por força de lei (legítima) ou através de testamento (testamentária). Cumpre ressaltar o que preleciona Rolf Madaleno (p. 308-311, 2004), em:

A herança também é direito fundamental garantido pelo art. 5º, inc. XXX, da Constituição Federal, sendo, por sua vez, essencial para a estrutura e para o crescimento do Estado Democrático de Direito, porque dá consistência e preserva o instinto que têm os parentes de construírem e conservarem riquezas materiais criadas para a transmissão aos seus sucessores mais próximos, dando sequência à vida, justificando as conquistas dos que criam riquezas, além de garantir a subsistência das pessoas ligadas por laços sanguíneos ao sucedido. Sendo as pessoas titulares de direitos e de obrigações, é forçoso que sejam substituídas por seus sucessores nessas posições, quando da sua morte, chamando à herança os parentes, atendido o critério da proximidade de grau.

O fato é que o direito sucessório tem ligação direta com a continuidade e manutenção do patrimônio familiar, chamado de herança no após a morte do de cujus. “A herança cumpre de certa forma, uma função familiar, vez que pode ser entendida como uma modalidade de execução de um dever dos pais de garantir, materialmente, sua prole” (SIMÕES, Thiago Felipe, 2009). Essa sucessão se daria de duas formas: inter vivos, derivando de ato jurídico, e a proveniente da morte, sendo relevante para o cerne da problemática apresentada.

Em termos de previsão normativa, a Constituição Federal, em seu inciso XXX, Art. 5º, leciona que é assegurado o direito de herança. Pelo Código Civil de 2002, pode ser depreendido através de análise do Art. 1.784 ao 1.790, qualificando-se o direito sucessório como imediato após a morte do de cujus, ainda que não tenha sido realizado inventário (VENOSA, 2011).

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