O DENTE ERRADO

Neste dia o Manuel não foi trabalhar. Era demais. Nunca passara por tamanha vergonha. Arrasado estava. Pensativo ficava o dia todo. A ressaca não era muita. Como se apresentaria agora? Deitado ficou o dia todo. Pensava muito. Às vezes chorava escondido. Triste vida. Que mundo estranho! Tinha vontade de sair dali correndo e se meter embaixo de qualquer carro.

Meio dia a avó entra no quarto. Chama Manoel. O angu está pronto. Manuel se recusa. Não quer saber de nada. A avó insiste. Acha que Manuel está doente. Ele sempre foi bom de prato. A avó estranha. Ela ainda não sabe. Também ela não se importa. É concordista. Tudo bem, tudo ótimo. É a única coisa que sabe fazer.

Manuel resolve se levantar. Vai cambaleando ao banheiro. O corpo está ruim. Sente como se estivesse sendo quebrado. Escova os dentes, toma um banho. Vai para o quintal muito pensativo. O Manuel fica tristonho. Almoça um pouco, sempre cabisbaixo. Fala muito pouco. Após o almoço assiste televisão sempre impaciente.

Uma pequena dorzinha de dente começa a aparecer, coisa simples. Manuel não liga, já está acostumado. É sempre dor aqui, ali, acolá. Onde tiver um pedaço de corpo, aparece uma dorzinha de vez em quando. É assim mesmo. Pra dizer que está vivo.

A dor vai aumentando. Manuel disfarça. Quem sabe assim o dente desconfia. As irmãs voltam do serviço. Passam por Manuel e perguntam: ué, não foi trabalhar? Não, responde bruscamente o Manuel. Sempre briga com as irmãs. Fofoqueiras. Não sabem os verdadeiros sentimentos de um homem. O que é que elas têm a ver com o trabalho dele? Por que não saíam da vida dele? Ta não hora de se casarem. Quem sabe assim o Manuel se vê livre delas. Falar em casar, Manuel tem um problema. Também é solteiro. Nunca arrumou casamento. Também as mulheres de hoje não querem se casar. Só querem andar por aí, atrás de um e de outro. Vão pra motéis, casas de prostitutas, carros e no matinho mesmo. Não querem saber de um homem sério. Manuel é um homem sério. Só bebe uma biribinha de vez em quando, mas isto não é defeito. No Brasil todo mundo bebe. Só há dois tipos de pessoas que não bebem aqui: quem não nasceu e quem já morreu. O resto, todo mundo toma uns traguinhos. Uns bebem mais, outros bebem menos. Manuel não sabe em qual grupo se coloca. Tem dia que ele é capaz de beber até chumbo derretido. É dose quem bebe. Fora disso não sabe que outro defeito tem. Ah, sim! Manuel é sincero. Isto é um grande defeito no Brasil. Aqui, quem é sincero, está desclassificado. Tem até a frase do grande pensador brasileiro: o brasileiro tem vergonha de ser sincero.

Manuel gosta de mulher. Fica pensando muito nelas. Acha bonito os seios delas. Dá vontade louca de agarrá-los, de tê-los nas mãos. E o bumbuzinho? Que coisinha mais pontudinha. E é tão lisinho. Mas o dente de Manuel dói e agora dói muito. Manuel tenta mentir ao dente, que é coisa passageira, que logo vai passar, mas o dente não acredita nem sabe disso.

Manuel fica mais pensativo. Relembra os tempos de criança. E aquele bailinho que teve lá no mato? Manuel se lembra. Tinha uma menininha, já mocinha. Dançou nuazinha com o Manuel. Que saudades! Hoje em dia, nem com roupa, ninguém quer dançar com ele. Dançou com a negrona, é certo, mas era mais feia que trovão em dia de tempestade.

O dente explode. Manuel está em tempo de ficar doido. A avó vem com os remédios. Manuel toma. A dor não pára. E agora? Assim Manuel não aguenta. E agora é preciso fazer alguma coisa. Dentistas? Nem pensar. Manuel nunca foi ao dentista, mas tem informações a respeito. Dizem que tem um boticão enorme. Enfiam uma agulha na gengiva do fulano. Manuel sente até frio. Prefere curtir a dor de dente. A avó vem com conversinha mole, que dentista é isto, que é aquilo, não dói nada. Só no começo. Manuel não quer ir. Põe uma dose de álcool pura no dente. Aí sim, a coisa piorou. Além de ser o dente, é a boca inteira. Que vexame! Não tem outro remédio. Tem que ir ao dentista. Se apronta rapidamente. Chama uma das irmãs e se mandam para o dentista. Dentista nada. A irmã conhece um protético ótimo. Melhor que dentista e é barateiro, tem esta vantagem. Pobre tem que economizar dinheiro até na hora da morte. Chegam ao tal protético. E agora? Tem fila e fila grande. Todo mundo gemendo. Por que não foram ao INPS? Quem sabe lá o serviço seria melhor e sem fila, já que levam uma grande soma de imposto todo mês. Quem disse isto? Talvez não seja assim, quem sabe na China? Resolve enfrentar a fila. É gemido de todo lado, todos com a mão no rosto. Ele não sabe por que segurar, pois o dente está dentro da boca. Não vai cair. Chega a vez do Manuel. Ele entra, mas ainda vê o protético com um ferrão enorme enfiado na garganta de um homem. Na garganta não, Manuel, na boca. Então é aquilo que vai tocar na boca do Manuel? Sente-se mole, o sangue frio e as pernas bambas. O protético manda-o sentar na cadeira. A dor está enorme. O protético com aquela rapidez que Deus deu aos brasileiros, pega a ferramenta bem devagar e olha dente por dente na boca do Manuel. Que dentista mais molenga! Será que não sente nada? Tem razão. Não sente mesmo. É o dente do Manuel e não o dele que dói. Prepara uma anestesia o dentista. Aplica no Manuel. A dor pára, mas não toda. O dentista pega o boticão, enfia na boca do Manuel e... brucutu, arranca o dente. Dói muito, mas quem sabe a dor passará. Manuel cospe no canto. A dor piora. Só então ele repara: mas doutor... o senhor me arrancou o dente errado. Errado como? Assusta o doutor. Fica apavorado o médico de dentes. E agora o que fazer? Corre pra lá e pra cá e fica desesperado. Manuel fica sentindo a maior dor do mundo e puto da vida. Não tem problema, sr Manuel,agora eu arranco o outro dente, o doente. E faço os dois pelo preço de um. Manuel bufa de raiva. Que coisa! Manuel vem arrancar o dente doente e o doutor lhe arranca o são e ainda dizer que cobra metade do preço? Manuel xinga o dentista de todos os nomes. Faz todos os clientes saírem espavoridos do consultório, inclusive o dentista e ele sai com a irmã. Vão ao pronto socorro. Só agora se lembraram dele. Lá arrancaram o verdadeiro dente doente. Só assim Manuel tem um alívio. Só assim pode sossegar um pouco. Volta pra casa gemendo muito ainda. Dorme o resto da tarde. Agora Manuel já tem também uma justificativa para apresentar no outro dia no serviço.