O Consumidor em Juízo: Temas atuais da tutela jurisdicional.  Comentários ao Recurso Especial nº 279.273 – SP

 

Alexandre Andreta dos Santos[1]  

 

Resumo: Este artigo tem por objetivo realizar um breve estudo sobre o Recurso Especial 279.273-SP, de 4 de março de 2012, quando da análise da responsabilidade de um shopping center, em São Paulo, em relação a uma explosão no interior do estabelecimento que resultou em inúmeras mortes e vários feridos.

O texto tem como base a disciplina do artigo 28, parágrafo 5º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e discorre também sobre a atribuição de personalidade jurídica às sociedades, a história deste instituto no direito comparado e no Brasil, além da sua importância e teorias jurídicas relacionadas. 

Palavras-chave: Personalidade jurídica. Código de Defesa do Consumidor.  Recurso Especial n. 279.273-SP.

Abstract: This article aims to make a brief study on the Special Appeal SP-279 273, of March 4, 2012, when the analysis of the responsibility of a shopping mall in São Paulo, in relation to an explosion inside the establishment that resulted in countless deaths and several wounded.

The text is based on the discipline of Article 28, paragraph 5 of the Code of Consumer Protection (CDC) and talks also about the attribution of legal personality to the companies, the history of this institute in comparative law and in Brazil, in addition to its importance and related legal theories.

 

Keywords: Legal personality. Code of Consumer Protection. Special Appeal. SP-279 273

 

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo realizar um breve estudo sobre o acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sobre o julgamento do Recurso Especial nº 279.273-SP de 04 de março de 2012, quando da análise da responsabilidade do Shopping Center de Osasco-SP pela explosão que resultou em 40 mortes e mais de 300 feridos.

Em primeira instância o Magistrado reconheceu a responsabilidade solidária das pessoas físicas e jurídicas, e desconsiderou a personalidade jurídica. O Tribunal de Justiça deu parcial provimento ao recurso dos réus apenas para atribuir a responsabilidade subsidiária dos sócios administrados e manteve a disciplina do parágrafo 5º, do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

A decisão do STJ criou o leading case sobre o assunto, qual seja, a adoção por nossos Tribunais da teoria menor trazida pelo artigo 28, parágrafo 5º do Código de Defesa do Consumidor a partir da frase qualquer forma de obstáculo ao ressarcimento, reconhecidamente mais desvantajosa ao empreendedor por não questionar os motivos de seu inadimplemento, mas somente sua objetiva condição de fornecedor.

O entendimento sobre o assunto está longe de ser pacificado. Até mesmo a votação do Recurso Especial mencionado o foi por maioria de votos (3 X 2), vencidos os Ministros Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito. Votaram com a Ministra Nancy Andrighi pela desconsideração da personalidade jurídica na forma do artigo 28, parágrafo 5º do Código de Defesa do Consumidor os Ministros Castro Filho e Antônio de Pádua Ribeiro. Os vencidos entendem que a personalidade, para ser afastada, exige a demonstração do desvirtuamento do instituto tal qual previsto no caput do art. 28 do CDC e na doutrina.

A desconsideração da personalidade jurídica, desde a sua origem até hoje, é fundamentada na fraude ou no abuso do direito. Independente de qual fosse a razão, em última análise, e diante de sua importância para sociedade, o escopo sempre foi a sua preservação. No entanto, o Brasil aparentemente tem adotado mais um fundamento: a simples inadimplência. Nesse caso, o credor hipossuficiente assim reconhecido pela lei, não necessita provar a fraude ou o  abuso no uso da sociedade. O critério é puramente objetivo. Ainda não se conhecem os benefícios nem os malefícios dessa nova opção legislativa que, quando utilizada, descontrói todo o sistema que regula as sociedades empresariais e civis. Não se pretende neste artigo comentar as teorias exaustivamente debatidas acerca da desconsideração da personalidade jurídica, quais sejam, a maior e a menor, mas apenas trazer à tona alguns elementos que permitem uma nova análise a respeito do assunto. 

 

2 A ATRIBUIÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA À SOCIEDADE, SUA HISTÓRIA E IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO

 

À época do Renascimento, durante os séculos XV e XVI, em Florença, de onde a família Médici comandava um dos primeiros e maiores bancos da História, um padre fez uma crítica. Ele dizia que a prática de empréstimos a juros era sacrilégio, e que o responsável pelo banco iria para o inferno. Cosimo de Médici, então “presidente” do banco, respondeu: quem concede empréstimo a juros é o banco, e não o “presidente”. Concluiu afirmando que os sócios administradores não devem ir para o inferno. Diante desse posicionamento, respondeu o padre: “Pode ser”.

Esse breve diálogo reflete bem a separação entre a responsabilidade da sociedade e dos seus sócios. No entanto, o surgimento e a evolução do instituto da personalidade jurídica muito se alteraram, e hoje, numa clara evolução, apresenta um quadro bem diferente de suas origens[2]. A personalidade jurídica deixa de ser circunscrita ao Direito Público – principalmente o Estado e à Igreja –, para ser inserida no Direito Comercial, notadamente em sociedades mercantis com fins lucrativos, consideradas antecessoras da sociedade anônima[3].

O direito romano tinha dificuldade em atribuir personalidade jurídica ao ente moral e distingui-la dos seus sócios. Desconhecia o instituto da pessoa jurídica, o que não significa inexistir a união de pessoas para realizar empreendimentos. Posteriormente, a essa união atribuiu-se o nome de universita[4], que poderia ser tanto de direito público, como filantrópica e econômica.

As empresas de pequeno porte, em regra, eram constituídas por membros de uma mesma família. As primeiras Companhias[5] da história consideradas de grande porte sobre as quais se têm notícia são o Banco São Jorge[6], (1407 a 1816) em Gênova, e a Companhia Holandesa das Índias Orientais, criada no ano de 1604, cujo objeto era explorar o novo mundo. Ambas, portanto, tiveram origem no período do Renascimento, época de grande crescimento e pujança econômica e da crítica do padre ao banco Médici, conforme mencionamos no início deste artigo.

No Brasil, data do ano de 1649 a Companhia Geral do Comércio do Brasil. Criada em Portugal, em 1640, tinha como objetivo contribuir com a resistência aos invasores no território brasileiro. Também propiciava o transporte seguro de açúcar à Europa e o fornecimento de escravos.

Foi com o Código Civil de 1916[7], mais especificamente em seu artigo 20[8], que o Brasil atribuiu a capacidade civil às sociedades[9], diversa da de seus dirigentes.

A sociedade, desde o seu início, por necessidade, foi criada pelo homem para enfrentar as dificuldades, pois, suas forças, isoladamente, não seriam suficientes para o fim almejado, dentre eles, criar bancos e companhias marítimas. Nas palavras de Fábio Konder Comparato,[10]

O que não se pode perder de vista é o fato de ser a personalização uma técnica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou suspensão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a esfera da subjetividade, em direito.

A atuação do Estado nessa seara foi mais sentida no mercantilismo. Com a evolução para o sistema capitalista, sua atuação gradualmente diminui; ele passou a ocupar-se de questões sociais, sugerindo-se que o particular se incumbisse desta tarefa[11].

Com efeito, os riscos que tais negócios acarretavam eram grandes o suficiente para desestimular a maioria dos empreendedores a, sozinhos,  ingressarem na empreitada.

Assim, foi necessário unir esforços e arrecadar capital de todos os envolvidos para não somente obter valores consideráveis, mas também, reduzir os riscos e os prejuízos na hipótese de fracasso.

Ainda hoje, os fundamentos são os mesmos. Criaram-se outras formas de sociedade, até mesmo com um único sócio[12], tudo para facilitar, estimular e viabilizar o empreendedorismo, gerar empregos e arrecadar impostos, tudo de forma a desestimular a ilegalidade.

Por se tratar de um instituto que beneficia não apenas os sócios, mas à sociedade, as perdas devem ser suportadas por todos: sociedade, sócios e credores. Na lição de Fábio Ulhôa Coelho,

O princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, observado em relações às sociedades empresárias, socializa as perdas decorrentes do insucesso da empresa entre seus sócios e credores, propiciando o cálculo empresarial relativo ao retorno dos investimentos. (grifo nosso).

Nicholas Murray Butler, citado por Alexandre Couto Silva em seu livro Responsabilidade dos administradores de S.A., defende a importância do instituto da separação de responsabilidades e a ele atribui importância superior que à da descoberta da máquina a vapor e da eletricidade.

Pode-se afirmar que este tipo societário foi a mais importante descoberta dos tempos modernos dada sua limitação de responsabilidade, sendo mais importante que a eletricidade e a máquina à vapor.[13]

 

A separação de personalidade jurídica entre os sócios e a sociedade pode ser interpretada como um dos instrumentos necessários a garantir eficácia ao artigo 170 da Constituição Federal. Sem ele, um dos fundamentos da ordem econômica – a da livre iniciativa – restará esvaziada. Não se poderia afirmar que o Estado estaria garantindo a livre iniciativa quando ele mesmo desconsidera a personalidade jurídica da sociedade em todo em qualquer caso, notadamente pelo seu simples inadimplemento.

 

3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 Os primeiros casos registrados na história, o instituto no direito estrangeiro

Desde o início, a desconsideração da personalidade jurídica era vista como possível somente nas hipóteses de simulação ou de uso fraudulento do instituto. O elemento subjetivo representado pela deliberada intenção do sócio em fazer da sociedade um instrumento ilícito para a prática de fraudes é a única hipótese a permitir a desconsideração, não bastando a simples frustração de credores, ainda que consumidores, como elemento hábil a retirar o véu.

É no direito Inglês, no ano de 1897[14], que se afirma ter existido o primeiro caso de quebra da personalidade jurídica com a questão Salomom & Com.

Aaron Salomom constituiu uma sociedade para fabricar sapatos e botas, e incluiu como sócios seis membros de sua família. Planejando a quebra de sua empresa, e como sócio amplamente majoritário, Aaron, a fim de obter recursos financeiros, emitiu títulos privilegiados e quirografários, retendo para si os primeiros e passando a ser credor privilegiado de sua própria sociedade.

Conforme havia planejado, a empresa faliu, possibilitando o pagamento dos títulos privilegiados somente, deixando de honrar os demais credores.

O caso foi apreciado pela justiça. Em primeira instância, deu-se ganho de causa aos credores, possibilitando a eles o ingresso no patrimônio pessoal dos sócios até a integral satisfação dos seus créditos. No entanto, a Câmara de Lordes reformou a decisão e manteve a separação entre as personalidades jurídicas. A defesa apresentada por Aaron era de que inexistia responsabilidade civil dos sócios por ato praticado pela empresa.

No entanto, foi nos EUA que o assunto ganhou importância e deu origem à disregard of legal entity, tendo como leading case a decisão proferida pelo Juiz Marshall no caso Bank of United States vs. Deveaux, no ano de 1809, ou seja, 88 anos antes da decisão do caso Salomon, na Inglaterra. Em sua decisão, estendeu aos sócios os efeitos da personalidade da entidade da qual faziam parte.

Foi também nos EUA, em 1892, que se deu a disputa envolvendo a Standard Oil Co., fundada por John Davison Rockeffeler, o qual na tentativa de criar um monopólio, desconsiderou-se a personalidade jurídica, e se declarou Rockeffeler ilegal[15].

Hoje a matéria faz carreira em diversos países europeus, notadamente na Alemanha[16].

No Brasil, o primeiro doutrinador a se debruçar sobre o assunto foi Rubens Requião. Em seus primeiros estudos, logicamente assentado em doutrinadores estrangeiros, o cerne, assim como em outros países, limitava-se às hipóteses de fraude ou de abuso do direito a justificar a desconsideração da personalidade jurídica. É importante lembrar, ainda, que no Código de 1916 inexistia qualquer previsão a respeito.

Foi no Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 28 e parágrafos, em 1990, que no Brasil foi criado o primeiro dispositivo a regular o instituto[17]. Cabe mencionar que a teoria menor foi excepcionalmente também adotada no Direito Ambiental (Lei nº 9.605/98, art. 4º). Parece-me que a mens legis dessa lei é reconhecer e declarar a sociabilidade dos danos, a qual atinge, ainda que indiretamente, a todos, razão pelo qual disciplinou a desconsideração da personalidade jurídica em moldes semelhantes ao Código de Defesa do Consumidor.

Posteriormente foi promulgada a Lei nº 8.884, de junho de 1994, cujo art. 18 prevê

a personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Posteriormente, o novo Código Civil de 2002, de forma ampla, em seu artigo 50 também tratou da desconsideração da personalidade jurídica.

Há hipóteses em que a legislação pátria atribui responsabilidade diretamente ao sócio ou administrador por ato por ele praticado, e assim o faz pela importância do objeto tutelado. Mesmo nestes casos, é exigido o dolo ou culpa. O artigo 135, inciso III do Código Tributário Nacional é um deles. Há, ainda, a Lei nº 8.620, de janeiro de 1993, cujo artigo 13 dispõe:

O titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à seguridade social.

Parágrafo único: Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e diretores respondem solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao inadimplemento das obrigações para com a seguridade social, por dolo ou culpa.

Também na Lei das Sociedades por ações, o artigo 158 responsabiliza diretamente o administrador quando pratica um ato, ainda que dentro de suas atribuições, com dolo ou culpa, violação da lei ou do estatuto.

Em quase todos eles, o objeto tutelado é de interesse metaindividual e, portanto, de maior envergadura que os interesses de um consumidor em particular quando frustrado em seu crédito. Se interesses dessa magnitude exigem para a desconsideração da personalidade jurídica a demonstração da prática de atos abusivos, não poderia o Código de Defesa do Consumidor – não obstante seu interesse difuso, não pode ser alçado ao mesmo grau de importância da legislação ambiental – inserir na legislação, em total dissonância com o sistema, a teoria menor.

3.2 As Teorias Surgidas na Doutrina Pátria

 

O instituto é abordado como uma das formas de atribuir maior eficiência ao processo e, consequentemente, à prestação jurisdicional pelo Estado.

A primeira teoria, chamada de maior, busca preservar e garantir a autonomia da sociedade em relação aos seus sócios administradores. Isto porque, por esta teoria, a desconsideração somente seria possível nas hipóteses legais previstas no Código Civil, e algumas previstas no Código de Defesa do Consumidor, mais especificamente no uso abusivo ou fraudulento do ente moral.

A outra Teoria, chamada menor[18], permite a desconsideração da personalidade jurídica em toda e qualquer hipótese na qual o credor não consiga a satisfação do seu crédito por parte da sociedade. Nesse caso, não se indaga sobre uso abusivo ou fraudulento.

Seja qual for a teoria adotada, em nenhuma delas ocorre a despersonificação da sociedade, com a definitiva desconstituição e extinção da personalidade, mas somente a ineficácia perante aquele ato. Mantém-se, assim, a distinção de personalidade para os demais atos praticados.

Na jurisprudência tem prevalecido o instituto da teoria menor, ratificada pelo acórdão nº 279.273-SP. Em seu voto, relata a Ministra:

A teoria menor da desconsideração, por sua vez, parte da premissa distinta da teoria maior: para a incidência da desconsideração com base na teoria menor, basta a prova da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para esta teoria, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica (...) Sem embargo das argutas preleções, fato é que o § 5º, do art. 28 do CDC não guarda relação de dependência com o caput do seu artigo, o que, por si só, não gera incompatibilidade legal, constitucional ou com os postulados da ordem jurídica (...) Essa linha de raciocínio é meramente acadêmica, e a lei, uma vez sancionada, ganha vigência e eficácia a partir de sua publicação, transcorrida a “vacatio legis”. A Lei, aplicada com prudência, encontrará seus próprios limites por meio da atividade interpretativa dos Tribunais, não sendo aconselhável que se ceife a iniciativa legislativa de plano, iniciativa esta que conferiu novos contornos ao instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

Não se olvida que na hipótese de conflito entre ambos, deve ceder a livre iniciativa. Ocorre que, na busca desse equilíbrio, o sistema legal já traz a solução adequada estampada nos artigos 50 do Código Civil e 28, caput do CDC. O parágrafo 5º, do artigo. 28 do CDC, ao ser aceito como independente de todo o restante, cria uma nova teoria acerca da desconsideração e vai de encontro à evolução do instituto, cuja origem europeia e americana, ambas fontes de sua legislação, sempre prestigiaram como requisito a fraude ou o uso abusivo da personalidade.

Conforme bem pontuou o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, em seu voto, a regra estampada no parágrafo 5º, do artigo 28 do CDC não deve causar o esvaziamento do art. 20 do Código Civil, “bem como o desequilíbrio da atividade econômica com o enfraquecimento da organização empresarial, que em uma economia de mercado é a base do desenvolvimento”.

A teoria menor cria uma incerteza ao empresário que se lança no empreendedorismo, pois inviabiliza o cálculo acerca dos riscos de sua atividade e, consequentemente, gera mais insegurança jurídica e financeira.

A intervenção do Estado na livre iniciativa não pode resultar em sua inviabilidade. A desconsideração atinge somente determinado ato, pois, o estímulo que o Estado busca da sociedade para empreender certamente será prejudicado. Isto porque fracasso do empreendimento faz parte do negócio e aquele que se arrisca nesta empreitada não pretende que, além do percalços inerentes a este tipo atividade, acrescente-se a perda de seu patrimônio pessoal pelo simples inadimplemento.

4 CONCLUSÕES

 

A personalidade jurídica da sociedade diversa de seus sócios foi um instituto criado e aprimorado ao longo dos tempos. Sem esta separação, não seria possível ao homem aventurar-se em diversos empreendimentos nos quais, sozinho, certamente fracassaria. Assim têm acontecido em diversas passagens de nossa história, da descoberta de novos continentes, os avanços no transporte marítimo e o surgimento dos bancos, até a contemporaneidade, com as fábricas de aviões, automóveis e computadores domésticos, além dos hospitais e da  indústria farmacêutica.

Seu objetivo, desde início foi e ainda permanece o mesmo: estimular o empreendedorismo, preservando o patrimônio pessoal de seus sócios, tranquilizando-os quanto ao eventual insucesso de suas empreitadas. No entanto, esta separação não significa imunidade a qualquer e todo ato praticado na condução dos negócios. Configurada alguma fraude, deverá o sócio responder com seu patrimônio pessoal.

Este significativo instrumento garante a eficácia ao artigo 170 da Magna Carta, que têm como um dos fundamentos da ordem econômica a livre iniciativa. Afinal, sem ele, este dispositivo seria letra morta.

 

 

REFERÊNCIAS

COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

COUTO SILVA, Alexandre. Responsabilidade dos administradores de S.A. Business Judgment Rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.



[1] Nascido em Santos, em 04 de agosto de 1974; Juiz de Direito do Estado de São Paulo. Formado em Ciências Jurídicas Pela Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) (2000); Pós-Graduado em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura (2003) e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (2010).

[2] A noção de pessoa jurídica como uma ficção e com personalidade diversa da de seus membros demora a surgir.

[3] A sociedade anônima mencionada já possuía uma organização muito semelhante à que hoje conhecemos, com a emissão de ações dotadas de circulabilidade e participação nos lucros e nas perdas. A responsabilidade estaria limitada aos investimentos aportados por cada acionista. Daí, então, o surgimento da primeira Bolsa de Valores em Bruxelas, na Holanda.

[4] Até então não se designava a pessoa jurídica como persona, mas universitas, corpus e collegium.

[5] O significado do termo ‘Companhia’ é o resultado da união dos vocábulos cum (com) e panis (pão).

[6] Este banco foi criado para financiar Gênova na luta contra Veneza.

[7] No Código Civil de 2002, embora não exista dispositivo análogo, os artigos 44, 45 e 1150 indicam que a separação, continua consagrada em nossa legislação.

[8] Art. 20: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.”

[9] Desde que validamente constituídas com posterior registro, conforme disciplina dos artigos 46, 104 e 985, todos do Código Civil passando, a partir de então a ser detentora de direitos e deveres na forma do artigo 1º do Código Civil.

[10] COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 344.

[11] Alguns doutrinadores defendem que o capitalismo é criação do mercantilismo.

[12] Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011. Essa Lei permite a criação de sociedade limitada com um único sócio, sem colocar em risco seu patrimônio pessoal. Certamente a proteção ao patrimônio pessoal do empresário é mais um estímulo para que se legalizem empresas com esse formato, no qual a pluralidade de sócios era apenas uma aparência.

[13] COUTO SILVA, Alexandre. Responsabilidade dos administradores de S.A. Business Judgment Rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p.5.

[14] Para outra corrente doutrinária, eminentemente subjetiva, a teoria surgiu dos estudos elaborados por Rolf Serick, da faculdade de Direito de Heidelberg, na Alemanha. Para Rolf, “o abuso, a utilização do expediente da pessoa jurídica com a intenção de furtar-se a uma obrigação legal ou contratual, ou ainda de prejudicar terceiros, é essencial para justificar o desconhecimento da pessoa jurídica. Quem faz uso da pessoa para fins ilícito não merece a tutela que resulta da separação patrimonial, perdendo a razão de ser a autonomia entre pessoa jurídica e seus membros, quando estes ou aquela ultrapassam os limites traçados pelo ordenamento jurídico.”

[15] Este caso é tratado pelos estudiosos como uma das hipóteses de concentração de empresas e utilizada como leading case do direito antitruste.

[16] Naquele país chamada de Durchgriff der juristichen Personen. A intenção dos administradores é uma condição essencial para a desconsideração da personalidade jurídica.

[17] A Consolidação das Leis Trabalhistas, em seu art. 2º, § 2º disciplina que “sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo um grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.” Do texto se extrai que não se trata propriamente de consideração da personalidade jurídica para se atingir o patrimônio pessoal do sócio, não obstante a jurisprudência vêm neste sentido aplicado o dispositivo legal.

[18] Este artigo consagra a Teoria Maior.