É mais uma tarde de muito calor. As crianças, todas de cor escura, continuam com suas garrafas pet, com um furo na tampa, cheias de água, para esguicharem umas nas outras.
Nem o sol abrasador, nem o basalto quente as afugenta.
O verdureiro estaciona o seu caminhão no final da rua, desliga o alto-falante, e logo é cercado pelos moradores.
Enquanto uns o distraem comprando uma ou duas cebolas, ou então uma cabeça de alface, outros roubam o quanto podem.
Eu observo tudo, mas nada faço. Apenas continuo andando até ser abordado pelo chapadinho Dino, com seu cabelo moicano em relevo.
" Eu sei quem é você, mano!", afirma o mesmo. " Você é parente do..."
" Não, não sou!"
" Mas eu sei quem é você, mano!", afirma ele novamente.
Fala uma dúzia de palavras, e em seguida pergunta:
" Mano, você não tem 1 real para me emprestar? Pois preciso para comprar pão!"
Sei eu que ele quer o dinheiro para comprar crack, e mesmo assim enfio uma das mãos no bolso, tiro uma moeda de 1 real e lhe dou, uma vez que quero livar-me dele o quanto antes.
" Eu não roubo ninguém, mano ", diz o pedreiro. " Eu tiro o dinheiro no talento!"
Em outras palavras ele me chamou de tolo. Contudo não liguei, e continuei o meu trajeto.
" Tá com a bunda ardida, negão? ", grita um para o jovem Douglas.
Negrinho Douglas tentou assaltar uma senhora, foi preso no ato e viveu sua primeira experiência em presídio.
O mesmo ficou uma semana preso. Por isso a brincadeira do amigo " tá com a bunda ardida, negão".
O negãozinho esboça um ar de rir, e continua descendo a ladeira.
Minha vontade é seguir reto. No entanto lembro-me de dona Dulce, e dobro a esquerda.
Dona Dulce é uma senhora de cor escura, já de certa idade, que tem grande apreço pela leitura.
Certa vez dei a mesma alguns livros. Agora, sempre que passo pela sua casa, se está sentada na sacada, logo após me cumprimentar ela pergunta:
" Não tem alguns livros para eu ler?"
Na verdade até tenho, mas como quase sempre estou com um pouco de pressa, eu pego uma direção diferente para não ter que parar para conversar com uma boa amiga que tenho.
Tenho prometido para mim mesmo que um dia desses deixarei um tempo livre, só para visitar, e levar uns livros a senhora Dulce. No entanto, sempre vou protelando, protelando....