1 INTRODUÇÃO

Ante uma realidade de diversas propostas de redução da idade penal e endurecimento de penas alavancadas por plataformas politicas, veiculação constante de crimes violentos e de estudos e estatísticas apontando o aumento da delinquência juvenil, além do clamor publico por punições mais severas, não há como ignorar a relevância do debate em torno da adequação do sistema legal vigente para o tratamento da violência.

Temos que o adolescente infrator recebe como resposta pela prática de ilícitos de natureza penal a aplicação de medidas sócias educativas, entre elas a de internação (artigo 112 da Lei 8069/90).

Para isso, parte-se do pressuposto de que o sistema constitucional de proteção integral não permite a redução da idade penal, frente ao raciocínio de que haveria no corpo da Carta Magna outros direitos e garantias esparsos, fora do capítulo dos direitos e garantias fundamentais, e nesta senda o artigo 228 da Constituição Federal de 1988 não seria passível de alteração por reforma e impediria norma infraconstitucional que substitua o atual artigo 27 do Código Penal. De qualquer forma, a defesa que se irá desenvolver demonstrará a necessidade de movimento frontalmente oposto ao da redução, ao propor o não aprisionamento do adolescente infrator.

Como tanto a infração penal como o ato infracional consiste em conduta típica e antijurídica pode parecer estranho ao leigo terem tratamento legal diferenciado, tão somente por um critério etário. Por isso, é sempre relevante demonstrar que andou bem o legislador ao adotar sistemas diferentes, mas sem afastar a real necessidade de aperfeiçoamento do sistema de Proteção que hoje existe para os infratores.

Isso porque que para a Doutrina da Proteção Integral a medida socioeducativa de internação possui conteúdo eminentemente educativo e na prática judiciária é largamente aplicada de forma distorcida, com métodos arcaicos, mostrando-se impossível o seu uso para os fins declarados de sua previsão. Por vezes ainda é aplicada como solução de questões sociais, médicas ou morais que circundam o ato infracional em julgamento, revestindo-se a decisão com um envoltório de interpretação legal para esconder o uso abusivo da privação de liberdade.

Ao contrário da função excepcional atribuída pela lei, sua disponibilização em grande escala inibe o desenvolvimento de outras medidas. Mais que isso, a distribuição de competências e, portanto, da maior parcela de encargos financeiros com as medidas em meio aberto para Municípios e com privação de liberdade ao Estado (artigos 4º e 5º da Lei n. 12.594/12) por si só já decreta a falência de fato das medidas socioeducativas em meio aberto.

Com isso, o objetivo é demonstrar que o sistema adotado tem cunho eminentemente educativo, com foco na necessidade de proteção, a despeito de qualquer intenção de enfatizar qualquer outro aspecto da medida de internação.

Não se pode deixar de mencionar, ainda, a noção de devido processo legal, que é a origem da ideia garantias do acusado, mas que foi transformado num emaranhado de artigos, etapas, ritos, procedimentos e uma burocracia sem fim, que é capaz de prejudicar o andamento de qualquer processo, e que sob outro prisma consiste justamente no conjunto de faculdades e poderes garantidos pela Constituição Federal, como salienta Grinover[1], básicos a qualquer sistema processual.

Notadamente não andam bem as varas da Infância e Juventude, porém, a duras penas e driblando os entraves estruturais e legais hoje presentes, existem trabalhos pontuais que se organizam formando uma rede de atendimento ao infrator em risco, realizando bons trabalhos e obtendo alguns resultados. Mas é mister que esses trabalhos ganhem campo e consistência, atingindo aos que necessitam, bem como reduzindo as ainda volumosas mazelas do sistema.

Para isso, de modo a não causar nem impunidade nem medidas demasiado gravosas, é preciso estudar a eficácia e o andamento processual, no sentido de analisar em que pontos são imprescindíveis mudanças, sempre em nome da proteção integral.

Dentro da esfera dogmática jurídica tem-se que a proteção integral ao prever garantias de natureza processual, preocupada com a possibilidade de privação da liberdade, gera conflito interno com outros direitos fundamentais, o que vai se verificar no curso do processo de representação. Isso porque do devido processo legal e demais garantias à liberdade previstas na CF/88 derivam um conjunto de normas, desdobrando-se em princípios de aplicação processual, a partir das quais se presume estar preservado o interesse do acusado.

Geralmente o cenário é composto por advogados criminalistas defendendo os infratores, um juiz de vara criminal que cumula a função ou de vara judicial concentrada, e um promotor que cumula outras funções, normalmente ligadas ao Direito Penal, o que somado à praxe forense e à subsidiariedade do Processo Penal nos casos de representação transforma o processo por ato infracional em um processo penal com rito próprio.

     Não é assim que deve ser. As finalidades devem se sobrepor à forma. Entretanto é muito difícil para o operador do Direito agir de forma diversa na prática, pois se vê sujeito até mesmo a sofrer punição no caso concreto por afastar ou dispensar trâmites processuais e agir em favor dos reais interesses do adolescente, numa grande revelação do apego à forma. O ideal seria o que recomenda Veroneze [2] ao dizer

“É premente, pois, que o Estado, por meio de seus Poderes, satisfaça as promessas constantes nos mandamentos constitucionais. Entende-se, assim, que o Poder Judiciário tem a capacidade de efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana, em relação ao adolescente autor de ato infracional, em diversas situações, das quais, para o presente trabalho, impende destacar três delas, que se passa a analisar.

A primeira pode ser verificada quando ele exige do Poder Executivo e do Legislativo o fiel cumprimento dos preceitos constitucionais e legais, como, por exemplo, a implementação de políticas públicas voltadas para a área das medidas sócio-educativas, a destinação privilegiada de recursos, a administração de estabelecimentos de internação dignos e que comportem a infra-estrutura básica para cumprir os objetivos de educação e profissionalização, dotados de profissionais capacitados, entre muitas outras responsabilidades. Nesta relação com os demais Poderes, impende que o Judiciário adote postura substancialista, distanciando-se da mera função de velar pelas regras do jogo (procedimentalista), mas sim analisando com profundidade o fiel cumprimento dos preceitos constitucionais por parte do Executivo e do Legislativo.”

 E esse apego se potencializa justamente pelo fato de ser a medida de internação fortemente associada à prisão, fazendo emergir uma imediata equiparação das garantias e procedimentos adotados para a obtenção de uma verdade que legitime a punição. Emerge a preocupação de revestir os atos de uma

Finalmente, é impossível tratar deste tema sem considerar o fato de que todo o envoltório normativo está direcionado ao adolescente, para o qual se desenvolveu a dilatada e convergente compreensão junto às ciências médicas e culturais acerca da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, o qual teria estruturas físicas e psicológicas extremamente diferentes do indivíduo adulto. No sentido psicológico tem-se as considerações psicanalíticas como grande expressão no sentido de que:

“ O adolescente é envolvido pela dor mental provocada pela aguda sensibilidade em relação ao seu mundo interior e pelo clamor do mundo exterior, bem como pela complexidade das emoções e das sensações diante das quais tem escassas capacidades de controle....

Esta experiência exerce uma grande atração no adolescente já que ele é levado a pensar que além de conter o fazer e o conhecer, a própria experiência confere o poder.”[3]        

Assim, o adolescente estaria mais sujeito a conflitos internos e, portanto, à marginalização, mas paradoxalmente também com melhor resposta a intervenções externas que busquem mudanças comportamentais. Mais que isso, são amplamente relatadas até mesmo patologias temporárias, que causam o comportamento marginal, e desaparecem por completo na vida adulta, mediante a realização de simples acompanhamento médico.

Com esse panorama, mais aclarada a base que fundamenta todo um regramento internacional do tratamento específico a indivíduos delinquentes não considerados adultos, podemos retornar ao estudo das normas, pontuando uma primeira e expressiva diferença entre o crime e o ato infracional: o agente.

É da perspectiva deste novo agente que se desenvolveu o objeto da Doutrina da Proteção Integral, dentro da qual se tem a medida de internação como uma das soluções educativas capazes de com respeito a estas condições especiais e garantindo uma atuação protetiva, ressocializar, oportunizar uma nova forma de vida em sociedade para esses jovens. É com esse pensamento que pretendemos demonstrar o total fechamento do sistema adotado para um trabalho socioeducativo para a internação e é disso que trataremos adiante.

2 CAPÍTULO 1

 

2.1 A internação do adolescente segundo a doutrina da proteção integral

A fim de compreendermos o instituto da internação junto ao ordenamento jurídico brasileiro, precisamos situar sua previsão e entender sua natureza, o que só é possível através de uma contextualização prévia.

Devemos iniciar, então, pelo conteúdo da Constituição Federal de 1988, em especial do previsto junto ao seu artigo 227, interpretando-o e verificando as influências que ensejaram a redação do referido texto constitucional, que diz em seu caput

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar “a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”[4]

Note-se o uso do termo “prioridade absoluta”. Esta expressão confere especial tratamento a este sistema de direitos indicando o dever de prevalência perante os demais direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna à totalidade dos indivíduos.

Foi essa a interpretação dada pelos juristas que se debruçaram sobre a questão, com o auxílio do próprio conteúdo legislativo[5], ao analisarem a adoção do que se chama de Doutrina[6] da Proteção Integral, a qual apesar de já existente, se consolidou no mundo na década de 90 e integrou o ordenamento brasileiro após a aprovação da Declaração de Direitos da Criança de 1989, oficializada pelas Nações Unidas e ratificada pelo Brasil em 1990 e aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90) em substituição ao Código de Menores (Lei n. 6697/79).

2.1.1 A Doutrina da Proteção Integral

Por essa breve explanação revela-se ser um pensamento profundamente inspirado pelas Convenções e Declarações Universais de Direitos[7] específicas para a criança e o adolescente, que havia algumas décadas passara a tratar esses indivíduos como sujeitos de direitos, afastando a ideia de que se assemelhava à de propriedade dos pais e depois de ônus ao Estado quando em “situação irregular”[8], que permitia tratamento mais severo que aos adultos.

Também foi nesta linha que desde logo se pronunciaram os Tribunais Superiores, quando suscitados sobre a interpretação do postulado na legislação protetiva da criança e do adolescente ( RSTJ 120/341 e 118/313);

Cumpre destacar que as Regras de Beijing (1985), anteriores à própria CF/88 já traziam prescrições relevantes, como a do item 1.4., em que a ainda chamada Justiça de Menores “... deve ser concebida como parte integrante do processo de desenvolvimento nacional de cada país, no quadro geral da justiça social para todos os jovens, contribuindo assim, ao mesmo tempo, para a proteção dos jovens e a manutenção da paz e da ordem na sociedade.” (grifo nosso), mas é com a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 que se concretiza a existência de um “sujeito em desenvolvimento” e se sedimenta essa nova forma de tratamento aos que não são considerados adultos, inclusive afastando a terminologia “menores”.

Podemos concluir, então, que a Doutrina da Proteção Integral é um ramo do Direito dedicado ao estudo e reflexão acerca do conjunto de normas especificas destinadas a crianças e adolescentes, objetivando sua melhor interpretação e aplicação tanto nos Tribunais quanto fora deles, considerado o conteúdo transdisciplinar[9] e a multiplicidade de facetas de atuação possíveis trazidas pela legislação infraconstitucional[10], principalmente, dada a abrangência conferida pelo ECA.  

Em outras palavras, entendido como um sistema de proteção integral, é um ramo do Direito composto por normas que visam garantir direitos fundamentais gerais e específicos determinados pela CF, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e legislação própria em prioridade aos direitos garantidos aos demais cidadãos, para a implementação das mais diversas politicas públicas na área de sua incidência.

A prioridade absoluta encontra previsão constitucional no artigo 227 e legal junto ao artigo 4º da Lei n. 8069/90. A própria previsão legal responde sobre a abrangência desta prioridade ao esclarecer que abrange a) Primazia de receber prestação e socorro em quaisquer circunstâncias; b) Precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública. c) Preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; e d) Destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Para a correta compreensão da relevância destes princípios, trazemos primeiro a explicação sobre princípios gerais do direito de REALE[11].  Para este autor são “... enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico em sua aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas.” Princípios, nas palavras simples e ilustrativas de SUNDFELD (1995, p.18) são as "idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de se organizar-se". [12]

Ainda para ÁVILA[13] princípios são

 Como conversão dessas ideias em princípios específicos desta Doutrina da Proteção Integral, os autores apresentam, basicamente, (a) a proteção integral, que se desdobra e em (b) atendimento ao melhor interesse da criança, (c) prioridade absoluta e (d) condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Esclarecendo-se que podem ser realizados novos desdobramentos de cada um destes princípios em outros tantos, além do que foi dito, ainda cabe acrescentar em relação algumas explicações acerca do conteúdo do atendimento ao melhor interesse da criança.

Antes mesmo da Doutrina da Proteção Integral este principio já integrava a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, assim como já se fazia presente no revogado Código de Menores em seu art. 5º, apenas alargando-se seu sentido com a nova sistematização. Esse principio funciona como orientador tanto da produção legislativa quanto da aplicação da norma a fim de apontar como eleger a norma aplicável, como compreender seu conteúdo e qual direção deverá ser seguida como paradigma de questões futuras, como fica bem ilustrado nesta decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), largamente utilizada como exemplo junto aos estudiosos do tema.

“Direito da criança e do adolescente. Recurso especial. Ação de guarda de menores ajuizada pelo pai em face da mãe. Prevalência do melhor interesse da criança. Melhores condições.

- Ao exercício da guarda sobrepõe-se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que não se pode delir, em momento algum, porquanto o instituto da guarda foi concebido, de rigor, para proteger o menor, para colocá-lo a salvo de situação de perigo, tornando perene sua ascensão à vida adulta. Não há, portanto, tutela de interesses de uma ou de outra parte em processos deste jaez; há, tão-somente, a salvaguarda do direito da criança e do adolescente, de ter, para si prestada, assistência material, moral e educacional, nos termos do art. 33 do ECA.

- Devem as partes pensar, de forma comum, no bem-estar dos menores, sem intenções egoísticas, caprichosas, ou ainda, de vindita entre si, tudo isso para que possam – os filhos – usufruir harmonicamente da família que possuem, tanto a materna, quanto a paterna, porque toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família, conforme dispõe o art. 19 do ECA.

- A guarda deverá ser atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, maior aptidão para propiciar ao filho afeto – não só no universo genitor-filho como também no do grupo familiar e social em que está a criança ou o adolescente inserido –, saúde, segurança e educação.

- Melhores condições, para o exercício da guarda de menor, evidencia, acima de tudo, o atendimento ao melhor interesse da criança, no sentido mais completo alcançável, sendo que o aparelhamento econômico daquele que se pretende guardião do menor deve estar perfeitamente equilibrado com todos os demais fatores sujeitos à prudente ponderação exercida pelo Juiz que analisa o processo.

- Aquele que apenas apresenta melhores condições econômicas, sem contudo, ostentar equilíbrio emocional tampouco capacidade afetiva para oferecer à criança e ao adolescente toda a bagagem necessária para o seu desenvolvimento completo, como amor, carinho, educação, comportamento moral e ético adequado, urbanidade e civilidade, não deve, em absoluto, subsistir à testa da criação de seus filhos, sob pena de causar-lhes irrecuperáveis prejuízos, com sequelas que certamente serão carregadas para toda a vida adulta.

- Se o conjunto probatório apresentado no processo atesta que a mãe oferece melhores condições de exercer a guarda, revelando, em sua conduta, plenas condições de promover a educação dos menores, bem assim, de assegurar a efetivação de seus direitos e facultar o desenvolvimento físico, mental, emocional, moral, espiritual e social dos filhos, em condições de liberdade e de dignidade, deve a relação materno-filial ser assegurada, sem prejuízo da relação paterno-filial, preservada por meio do direito de visitas.

- O pai, por conseguinte, deverá ser chamado para complementar monetariamente em caráter de alimentos, no tocante ao sustento dos filhos, dada sua condição financeira relativamente superior à da mãe, o que não lhe confere, em momento algum, preponderância quanto à guarda dos filhos, somente porque favorecido neste aspecto, peculiaridade comum à grande parte dos ex-cônjuges ou ex-companheiros.

- Considerado o atendimento ao melhor interesse dos menores, bem assim, manifestada em Juízo a vontade destes, de serem conduzidos e permanecerem na companhia da mãe, deve ser atribuída a guarda dos filhos à genitora, invertendo-se o direito de visitas.

- Os laços afetivos, em se tratando de guarda disputada entre pais, em que ambos seguem exercendo o poder familiar, devem ser amplamente assegurados, com tolerância, ponderação e harmonia, de forma a conquistar, sem rupturas, o coração dos filhos gerados, e, com isso, ampliar ainda mais os vínculos existentes no seio da família, esteio da sociedade.

Recurso especial julgado, todavia, prejudicado, ante o julgamento do mérito do processo.”

(STJ – REsp 964836/BA – Relatora Ministra Nancy Andrighi – 3ª. Turma – Data do Julgamento 02/04/2009 – Dje 04/08/2009).

Cumpre considerar ainda que o conteúdo da lei refere-se também ao tratamento dispensado aos seus protegidos quando estes estiverem na condição de infrator. Como nos informa o artigo 100 do ECA, a interpretação de quaisquer dispositivos de forma a atender o melhor interesse da criança ou adolescente, a prioridade absoluta, a proteção integral e outras providencias devem estar devidamente tomadas antes da adoção de qualquer medida, seja ela protetiva ou socioeducativa destinada a estes sujeitos em desenvolvimento.

São beneficiários dessa proteção especialmente as crianças e adolescentes em situação de risco, incluindo-se nesta definição os adolescentes infratores. Não se pode excluí-los da proteção pelo fato de terem cometido ato infracional, ao contrário, esta conduta é demonstrativo de a carência de proteção. Explica Nogueira: “... Mesmo o menor infrator deve merecer tratamento tutelar, que tenha por objetivo sua formação, reeducação e assistência, de modo que venha a ser uma pessoa integrada à sociedade.”[14]           

            Do exposto, tem-se que para o melhor funcionamento dessa doutrina, seus preceitos legais devem estar em concordância com seu espírito, ou seja, cabe a observância do sentido até aqui discorrido para sua formação na aplicação de todas as normas submetidas a este microssistema ou ramo do Direito na condição de princípios norteadores.

2.1.2 Ato infracional e medida socioeducativa de internação

Apesar de reservar à lei a tarefa de elencar as garantias, politicas públicas e medidas a serem adotadas para a realização de seus objetivos, a CF/88 ressalvou algumas situações em que não poderia o legislador deixar de atuar, arrolando entre elas, no inciso V do §3º do artigo 227, regra que particularmente nos interessa, pois direciona e limita a previsão de medidas que impliquem em privação de liberdade.

Mas observemos que o texto se refere a “qualquer medida privativa da liberdade”. Aqui se iniciam as intelecções sobre como deve ser delineada uma medida sancionatória que se amolde a esta doutrina protetiva, pois diante de tal assertiva, não há como excluir a medida socioeducativa de internação deste espectro de proteção.

Tanto é verdade, que o próprio ECA em seu artigo 121 fez constar expressamente os termos brevidade e excepcionalidade para sua determinação, além das hipóteses de autorização legal expressa para sua ocorrência (artigo 122) e da exigência veemente de que não haja outra medida pedagogicamente adequada ( § 2º do artigo 122) por meio do uso da expressão “ em nenhuma hipótese”. Ou seja, fica claro que estes requisitos são cumulativos e consequentemente não se pode fundamentar que a gravidade da conduta ou qualquer outra das hipóteses legais de cabimento são indicativas em si mesmas de adequação pedagógica ou protetiva da medida de internação. 

Por outro prisma, não podemos olvidar do conteúdo teleológico da norma, pois não bastasse a obrigação de priorizar a proteção, deve-se atentar para a finalidade educativa das medidas sancionatórias destinadas a crianças e adolescentes. Inspira-nos o disposto na Convenção Internacional de Direitos da Criança (1990) quando institui em seu artigo 40 que tais medidas só poderão ser criadas e utilizadas de modo a permitir “... promover e estimular seu sentido de dignidade e valor... estimular sua reintegração e seu desempenho construtivo na sociedade...”, entre outras previsões.

Também o artigo 113 do ECA impõe a finalidade pedagógica e protetiva para a aplicação de medidas socioeducativas ao remeter aos artigos 99 e 100 do mesmo estatuto, onde se encontra expressamente o termo “necessidades pedagógicas” (artigo 100) e para seu cumprimento elenca regramentos para a observação dessa diretriz. A lei brasileira diferencia o tratamento de crianças e adolescentes quanto ao cometimento de atos de delinquência, atribuindo às crianças apenas medidas que irá denominar de proteção, previstas e disciplinadas junto aos artigos 98 a 102, ao designar no artigo 105 que o ato infracional.

Já ao adolescente, atribui a capacidade de cumprimento de medidas sócio educativas pela prática de atos infracionais, que nada mais são do que condutas previstas como infrações penais (artigo 113). [15]

O próprio rol de medidas reforça o caráter de proteção/educação, pois como vemos, são previstas a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade, a internação em estabelecimento educacional e, finalmente, qualquer uma das medidas previstas no artigo 101, I a IV.

Note-se que pode haver a titulo sancionatório a aplicação de medidas protetivas previstas no artigo 101 e que a internação deverá ser feita, por menção expressa, em instituição voltada à educação do jovem infrator.

Também não se olvide de que para a aplicação Há que se preservar o contraditório, a ampla defesa, os consequentes “in dúbio pro reo”, apresentação formal de acusação, citação regular, instrução contraditória, verdade real e defesa técnica, mas segundo GRECO FILHO[16], “... dentro dos limites do razoável e cabível em cada caso..., sem absolutismos interpretativos, especialmente, ante a visão protecionista”.

Ressalte-se que no caso não se vê o conflito da persecução penal com a liberdade, base do sistema penal, como foco da lei e da aplicação das garantias. Este conflito subsiste, mas em segundo plano. O foco da representação[17] está na função de proteção do Estado.

Ainda pode-se acrescentar a partir da edição da Lei n. 12.594/12, a qual instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, ou seja, a regulamentação de sua forma de execução, o que era uma grave omissão do ECA até então, que a medida socioeducativa deve ser estruturada de modo a obedecer aos princípios da priorização da prática restaurativa, da mínima intervenção e do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, dentre outros previstos junto ao artigo 35 do referido diploma legal.

3. CONCLUSÃO

Com isso, tem-se um sistema apartado do sistema penal, que reforça em seu discurso a ideia de tratamento humanizado, protetivo, ressocializador e ainda mais que isso, acrescenta um caráter educativo ao encarceramento enquanto impõe ao “apenado” a mesma sorte de tratamentos desiguais, repulsivos, desumanos, cruéis a que são submetidos os presos adultos.

Não se cuida de defender a abolição do Direito Penal, mas é proveitoso manter tratamento diverso ao adolescente e respeitar todo o histórico e mobilização mundial em torno do amoldamento de uma medida apenas sob o argumento de que não daria certo ou de que não resolveria o problema, haja vista nunca ter sido sequer aplicado em verdade o sentido da lei vigente.



[1] GRINOVER, Ada Pelegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES , Antonio Scarance. In: As Nulidades no Processo Penal. 9 ed. São Paulo: RT, 2006. p. 89 a 95.

[2] VERONESE, Josiane Rose Petry. Humanismo e infância: a superação do paradigma da negação do sujeito. In: MEZZAROBA, Orides (Org.). Humanismo Latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, Treviso: Fondazione Cassamarca, 2003, p. 439. http://jus.com.br/artigos/19539/a-dignidade-do-adolescente-autor-de-ato-infracional/2#ixzz3qNHsX3JA.

[3] Ferrari, Armando B., tradução Marcela Mortara.  Adolescência o Segundo Desafio – Considerações Psicanalíticas. Ed. Casa do Psicologo. P. 5 a 8. 1996, São Paulo

[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

[5] CANOTILHO, J.J. Gomes, et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

[6] “Do latim doctrina, de docere (ensinar, instruir, mostrar), na terminologia jurídica, é tido no sentido lato, comocomo o conjunto de princípios expostos nos livros de Direito, em que se firmam teorias ou se fazem interpretações sobre a ciência jurídica. Mas, em acepção mais estreita, quer significar a opinião particular, admitida por um ou vários jurisconsultos,  a respeito de um ponto de direito controvertido.” (DE PLACIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 28ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 505).

[7] Dentre os principais instrumentos internacionais temos: Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança; Declaração dos Direitos da Criança das Nações Unidas em 1959 (reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (nomeadamente nos artigos 23.º e 24.º), pelo pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (nomeadamente o artigo 10.º) e pelos estatutos e instrumentos pertinentes das agências especializadas e organizações internacionais que se dedicam ao bem-estar da criança); Declaração sobre os Princípios Sociais Jurídicos Aplicáveis à Proteção e bem-estar das Crianças, com Especial Referência à Adoção e Colocação Familiar nos Planos Nacional e Internacional (Resolução n.º 41/85 da Assembleia Geral, de 3 de Dezembro de 1986); Conjunto de Regras Mínimas das Nações Unidas relativas à Administração da Justiça para Menores (“Regras de Pequim”) (Resolução n.º 40/33 da Assembleia Geral, de 29 de Novembro de 1985); e a Declaração sobre Proteção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência ou de Conflito Armado (Resolução n.º 3318 (XXIX) da Assembleia Geral, de 14 de Dezembro de 1974); Convenção sobre os Direitos da Criança aprovado em Assembléia de 1989 e oficializado em 1990.

[8] Termo utilizado pelo Código de Menores, lei n. 6697/79, em seu artigo 2º, o qual elencava as situações de enquadramento na lei menorista. Permitindo, portanto, a atuação estatal e não exigia a observância de direitos individuais e garantias processuais para impor medidas por prazo indeterminado em algumas situações.

[9] Expressão que se refere, segundo Basarab Nicolescu,, físico teórico do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (C.N.R.S.). Fundadador e Presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRETA), transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento...”(pode ser encontrado em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001275/127511por.pdf)

[10]Dentre as leis editadas no país tem-se como de maior expressão a Lei n. 8069/90(ECA) e suas alterações e a Lei n. 12.594/12(Sinase).

[11] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003

[12] SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação e Contrato Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995.

[13] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Principios:da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

[14] Nogueira, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo:2000. Saraiva. P. 14.

[15] Adolescentes no Estatuto da Criança e do Adolescente são os indivíduos entre 12 anos completos e 18anos incompletos, por forçada definição contida no artigo 2º.

[16] GRECO FILHO, Vicente. In: Tutela Constitucional das Liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 130.

[17] Nomenclatura utilizada pelo ECA para designar o processo por meio do qual se dá a apuração de autoria e materialidade do ato infracional com vistas à aplicação de medida socioeducativa.