O APONTADOR DA VIDA .

VIDA.
Um dia o encontrei e esta foi a primeira vez, seguidas de muitas outras, Pois é.
O encontrei, até de uma forma inesperada. Era uma pessoa morena, de altura mediana, apresentava certa garbosidade no andar. Vestia-se discretamente. Chamava a atenção o brilho dos seus sapatos.
O nosso primeiro encontro, casual quais todos os demais, se deu em um hospital-maternidade. Estava ele nos jardins deste estabelecimento, sentado em dos inúmeros bancos, debaixo de uma pérgula toda florida. Interessante que a sua postura. Sentado ali, como se fosse um velho freqüentador do local. Anotava em seu caderno, algo que parecia muito instigante, quando não importante. Ao lado o carrinho de rodas, que transportava a sua mala. Olhava. Levantava-se. Caminhava até a recepção. A cada ambulância chegando ou partindo a sua atenção era despertada.
O que estaria anotando? Sério, preocupado, atento e circunspeto. Analise fria e calculada. Olhava para as janelas, para os carros e chamava mais atenção ao notar uma mãe e seu filho nos braços, caminharem em direção a um veículo, que por certo os levaria para seu lar.
Eu ali estava acompanhando o nascimento da minha única filha e não sabia que neste mesmo tempo eu perderia a mulher que amei e ainda amo de todo o coração.

EDUCAÇÃO.
Não era o dia combinado. Não era o momento devido. Mas um amigo com o qual havia marcado uma reunião/café da manhã, em um hotel pediu que o acompanhasse até um estabelecimento de ensino, pois teria que levar o seu filho. Na realidade uma criança com não mais que dois anos. Estava levando-a para uma creche, que fazia parte de um complexo escolar. Nada de anormal. Um desvio de rota, nada mais. Mas... quem estava ali sentado em um banco, em frente a escola? Pois é. O próprio. Anotando tudo. Olhava atentamente para as mães cuidadosas, zelosas, atentas aos movimentos do vai e vem dos carros desembarcando os alunos. Parecia que estava interessado em tudo o que se passava no seu entorno. Anotava, anotava e anotava. As pessoas passavam por ele com tal indiferença, como se ele não existisse. Pipoqueiro, vendedor de sorvetes, namoradinhos adolescentes, patotinhas discutindo. Outros com seus celulares a escutar músicas e enviar torpedos. E ele ali. Analisando e escrevendo. Fiquei surpreso ao vê-lo, pois quando da primeira vez, me chamou a atenção o seu porte, a sua forma de vestir, o rosto nada incomum. Mas já apresentava alguns cabelos grisalhos. Uma pessoa simples. E sempre a sua mala e o carrinho que a transportava.


CULTURA.
O nosso novo encontro se deu em um museu. Notei que havia certa demora na fila, para aquisição dos ingressos. E a causa era um senhor, do qual estamos falando. Ele insistia em entrar nas dependências do estabelecimento, com o seu carrinho que transportava uma mala. Depois de muito parlamentarem, o bom senso prevaleceu. A mala e o carrinho ficariam na secretaria do museu.
No interior o museu, lá estava ele de posse de um caderno e uma caneta. Parava enfrente aos quadros. Afastava-se, ora para a direita, ora para a esquerda. Voltava a se aproximar e anotava algo. Era uma exposição itinerante de Arte e Cultura Japonesa, Para que se possa desfrutar daquela exposição, provavelmente uma pessoa, levaria algo como 90 minutos. Praticamente já havia percorrido todos os salões e por curiosidade antes de sair, procurei o tal senhor. A mala e o carrinho encontravam-se na portaria do museu. Voltei para verificar se realmente ele ainda se encontrava no interior do museu. E de fato lá estava. Ora se afastava, ora ia para esquerda, depois para a direita. Aproximava-se e lia sobre o autor e a obra. E anotava provavelmente suas impressões a respeito das telas, as obras expostas, das armaduras, espadas dos Samurais, capacetes dos Shoguns, a delicadeza das pinturas nas finíssimas porcelanas. Era uma cultura milenar que ele agora anotava e dava para ver, se encantava. Deixei-o com suas anotrações.

FAMÍLIA.
Estava eu na França estudando formas alternativas de se produzir alimentos, com o mínimo impacto ambiental e de forma sustentada. Descobri que tal é possível e que o futuro da humanidade estará na produção intensificada e concentrada. O novo modo de habitação vertical será moldado em condomínios horti-granjeiro-residencial. Uma nova versão em que a urbis se associa ao ruralis, As moradias deixaram o estilo horizontal e o espaço por estas construções ocupados, darão lugar a produção de alimentos do tipo horti-granjeiro-residencial. E foi então que se aproximou a data de voltar ao Brasil, para a cerimônia de casamento da minha filha.
A cerimônia linda. A noiva mais linda ainda. Se a mãe estivesse presente, ficaria encantada. Mas no plano espiritual, deve ter ficado encantada da mesma maneira. A emoção de conduzir uma filha ao altar é indescritível. A emoção jorra por todos os poros. O coração bate de forma não sincopada. Ela estava linda. Por sinal sempre foi linda.
A igreja, decorada de forma singela e linda. Mas como estava a falar, ao sairmos da igreja, o meu olhar foi desviado para o último banco da nave da igreja. Sentado ali, discreto, imperceptível, modesto e praticamente anônimo. Pelo que vi e entendi estava anotando. Provavelmente algo sobre a cerimônia. O quem sabe escrevendo a respeito do matrimônio, da união de duas pessoas, da constituição de uma nova família. Provavelmente as suas anotações lhe davam enorme prazer e consumiam parte do seu tempo. Ali absorto e indiferente ao mundo e a todos, continuava a apontar, o quê? Quem saberá um dia ?
Ao lado a sua mala e o carrinho de rodas. Não consegui vê-lo após a cerimônia. Mas acredito que estava ali, com algum intuito.


MORTE.
A vida nos ensina que a cada segundo vivido, não existirá outro segundo semelhante.
A vida não é uma repetição de fatos e de situações. Podem até serem repetidas, mas não em termos do mesmo espaço e tempo. A viagem no tempo da vida, não tem retorno, quando muito, alguns desembarques, mas muito rápidos. E um dia recebi a notícia que um grande amigo estava muito doente. Por consideração aos anos de amizade, de carinho e considerando como um irmão. Voltei para visitá-lo. Tardiamente. Falecerá, na noite anterior. A tempo de poder prestar o meu sentimento e dor. Consternado e com o coração triste, permaneci ali com os amigos comuns e familiares.
Ao sair para aliviar a tensão do momento, notei que estava sentado em um banco, sobre um pé de Ipê amarelo em flor, que atapetava aquele gramado verde. Indiferente ao que por ali acontecia, ele simplesmente anotava, escrevia e por certo o seu espírito arguto pesquisava algo. A morte? Os sentimentos? A passagem? A ritualística de permanecer horas e horas ao lado de um ser sem vida? Ou o fato de lhe enviarem flores e flores, enquanto morto, mas em vida sequer recebeu uma sequer. O ímpeto era de se aproximar e tentar uma abordagem pessoal, para saber algo a respeito desta pessoa que para mim era um enigma. Mas uma amiga que não a via há tempo, desviou-me do propósito.
Mas a sua presença era emblemática. Explico. Os seus cabelos agora totalmente brancos. Aparentava um ar de cansado. Podia notar, se bem que à distância, que o seu rosto apresentava algumas marcas. Marcas da erosão do tempo. Os sulcos pronunciados. E usava óculos. Notei ainda mais. A sua mala agora era maior. E o carrinho idem. Provavelmente a mala deveria estar cheia de roupas, sapatos, utensílio pessoais.



O RETORNO
O meu tempo na França já findava. As pesquisas, os estudos comprovavam que a teoria poderia ser colocada em prática. Foi meio complicado colocar livros, apontamentos, computadores, coleções de artigos técnicos, diplomas e certificados em malas e caixas.
A volta foi precedida de algumas providências que iriam permitir manter os vínculos com entidades e pesquisadores, praticamente em tempo real. Afora a necessidade de pedir para a minha filha que providenciasse a devida limpeza da minha casa. Se bem que toda a semana ela, o marido e minha neta se encarregavam de abrir todas as dependências e verificação do sistema elétrico e hidráulico. Uma casa enorme, pois minha esposa e eu pretendíamos ter uma família numerosa. Infelizmente tal não ocorreu. Fazia parte de um condomínio fechado, onde as residências fixavam seus limites territoriais, por cercas vivas.
No dia que desembarquei no Brasil, o sol estava brincando de se esconder com as nuvens de um cinza-claro. Uma brisa fresca e leve soprava de forma marota, levantando pequenas nuvens de pós, folhas, papéis e até de saias de algumas moças desprevenidas.
Estava cheio de alegria e feliz. Voltava agora para o ceio da família. A casa enorme, continuaria semi-vazia. Mas pretendia dar continuidade a vida.
A vida então deu o seu compasso na orquestração dos acontecimentos. Pelo interfone fui informado que havia algo na recepção e que seria entregue dentro de minutos.
Dizer que fiquei estupefato, seria redundância. Curioso? Por demais.
Um carrinho e uma mala. Quem a deixou? Um senhor de cabelos brancos, usava óculos, muito bem vestido e com os sapatos de um brilho maravilhoso. Não perguntou o nome? Não deu tempo, simplesmente ele como que se evaporou? Evaporou? È. Na forma de dizer que sumiu.
E agora? Abrir ou não abrir a mala? Eis a questão. Não deixou nenhum envelope ou algo assim? Mas como ele sabia o meu nome e endereço? Também não sei.
Coloquei a mala em cima de uma mesa e com os nervos à flor da pele, abri aquela mala. Dizer que era minha conhecida, provavelmente sim. Esta era mais nova.
Surpreso e fascinado. Estava repleta de cadernos. Uma quantidade enorme de cadernos.
Separados e amarrados com fitas coloridas.
A cor Branca contornava todos os cadernos da Vida.
A cor Azul circundava os cadernos da Educação.
A Cultura envolta com fita de cor Rosa.
A cor Ouro envolvia os cadernos da Família.
A Morte representada pela cor Preta.

E o Retorno?
Este Caderno não tinha nenhuma fita. Era um caderno diferente de todos os demais.
A tentação em abrir cada Caderno era enorme.
Mas seria uma indelicadeza e até uma afronta.
Provavelmente os escritos de cada Caderno, trariam algumas anotações sobre a vida, em algumas de suas facetas. Algumas divagações e pensamentos a respeito da nossa existência. Ou filosofias a respeito de vários motivos mundanos, espirituais, morais, sociais, naturais e quem sabe divinos.

E então encontrei um pequeno envelope de cor Ouro. Seria correspondente aos Cadernos da Família?

A letra era cursiva, caligráfica, serena e limpa.

A mensagem era curta, elegante e direta. Se apresentava como um mero expectador do espetáculo da vida e que as vezes que nos encontramos, sem nos apresentarmos formalmente, já éramos velhos conhecidos. Conhecidos?
E quem tempo nos conhecemos? Perguntei a mim mesmo. E a resposta estava no final da missiva: Abra cada livro e ali você encontrará as respostas.

Até hoje reluto em abrir qualquer um deles.
Quem sabe muitas das indagações a respeito da vida, dos costumes, dos hábitos, da cultura e de um vasto e enorme horizonte, permeiem as verdades que muitas vezes insistimos em não aceitar e ver, se encontrem nos Cadernos do Apontador da Vida.

Apontador da Vida.

Assim era como assinava a sua Carta, fazendo-me guardião dos seus Cadernos Apontadores da Vida.