Justiça fiscal e o Princípio da Não-Cumulatividade 

          Entre os diversos impostos que compõem o Sistema Tributário Nacional, a Constituição de 1988 atribui aplicação da não-cumulatividade nos impostos de competência da União, no imposto sobre produtos industrializados IPI[1] e, em especial, nos impostos na competência residual[2], às contribuições sociais residuais, às contribuições sociais sobre receita ou faturamento, às contribuições sociais do importador de bens ou de serviços do exterior, ou de quem a ele equiparar e, na competência impositiva dos Estados e do Distrito Federal, o imposto sobre operações relativas a mercadorias e prestações de serviços ICMS.

          Defende Rosa[3] que esse princípio constitucional que consiste em, para efeito de apuração do tributo devido, deduzir-se do imposto incidente sobre a saída de mercadorias o imposto já cobrado nas operações anteriores relativamente à circulação daquelas mesmas mercadorias ou às matérias-primas necessárias à sua industrialização. Deste modo, a tendência é que o valor da mercadoria seja menos onerosa ao consumidor final, tornado o mercado consumista mais atrativo ao comprador.

          O contribuinte de direito do imposto não deve suportar toda essa carga tributária do imposto, pois se tornaria demasiadamente custosa para o consumo. É assim, através do princípio da não-cumulatividade que se repassa este ônus ao consumidor final, contribuinte de fato.

          Salienta Ives Granda da Silva Martins[4] que a expressão “não-cumulatividade do tributo” nós trás o significado de que sobre o mesmo fato não poderiam incidir vários tributos, ou ainda que um tributo sobre fato integrante de uma sucessão de fatos da mesma natureza não pode incidir sobre cada um desses fatos de forma autônoma, acumulando-se cada incidência com as incidências anteriores. E assim, com esse significado que a expressão tem sido empregada no nosso sistema tributário.

          Os impostos não cumulativos são a rigor impostos sobre o consumo, não devendo onerar a produção ou o comércio, consequentemente, numa operação entre empresas, cada uma delas pode se livrar da onerosidade do imposto deduzindo o imposto anterior do imposto dela cobrado, e assim sucessivamente até o consumidor final.

          Há atualmente uma discussão sobre a nossa Justiça Fiscal, no sentido de indagarmos sobre os nossos altíssimos custos de tributos para propiciar uma política social mínima para a nação. É no campo tributário que as implicações atingem toda a sociedade e definem a estrutura econômica da nação. É imprescindível que esta arrecadação esteja em harmonia com a dimensão social do país, portanto é crucial e indispensável que todo este sistema atenda, desde a sua origem até a concretização do imposto, as razões de justiça em relação à oneração do tributo.

          É pacífico que nossa política tributaria deve ocupar-se do planejamento e analise dos impostos que devem ser instituídos e cobrados, fazendo com que eles tornem-se instrumentos indicativos para alcançar uma arrecadação desejada pela política financeira, não confrontando a política social de nosso país.

          Descreve Leandro Paulsen[5] que a não-cumulatividade constitui uma técnica de tributação que visa a impedir que as incidências sucessivas nas diversas operações da cadeia econômica de um produto implique um ônus tributário muito elevado, decorrente da múltipla tributação da mesma base econômica, hora como insumo, hora como integrante de outro insumo ou de um produto final. Em outras palavras, consiste em fazer como que o tributo não onere em cascata a produção.

          Percebe-se que o principio constitucional da não-cumulatividade considera a capacidade contributiva do contribuinte, fazendo com que este não seja onerado em demasia, atendendo o que podemos chamar de justiça fiscal, pois mesmo que custosa seria amplamente mais cara ao consumidor se este princípio não fosse compensado nas operações posteriores.

          É observado em algumas doutrinas o seguinte posicionamento sobre o princípio da não-cumulatividade: Este princípio leva em conta o ciclo econômico de produção e circulação como um todo, e visa distribuir equanimemente a carga tributária de modo que cada contribuinte suporte apenas a fração que lhe cabe no conjunto. Esta fração é identificada pelo mecanismo de dedução, cabendo sublinhar que a existência de cumulação deve ser vista não apenas numa etapa, mas sim à luz das etapas anteriores e subsequentes que estiverem ou estarão sujeitas ao imposto. A cumulação que a Constituição proíbe, muitas vezes não detectada numa única operação, mas só resulta clara mediante um exame de todo o ciclo de operações.

            Em virtude de a sistemática da não-cumulatividade ser observada quanto aos fatos geradores (operações ou prestações) ocorridos num ciclo econômico, deve-se ter em mente que há sempre uma dualidade de sujeitos a considerar. Além disso, um único fato gerador, ao mesmo tempo, gera um duplo efeito jurídico: o débito para o sujeito que promove a saída do bem ou a prestação dos serviços e o crédito para o sujeito destinatário daqueles bens ou serviços. O processo econômico é complexo, por isso, a distribuição da carga tributária só é obtida com um mecanismo também complexo.

            Com o advento da Revolução Industrial aumentou quase ao infinito a capacidade produtiva do ser humano, a produção e o consumo passaram a ser em massa e em grande escala. Comparato afirma que “para o capitalismo industrial, o aumento constante do consumo é a condição sine qua non do equilíbrio do sistema. O movimento de formação do mercado mundial conduziu, necessariamente, à homogeneização cosmopolita não só das técnicas de produção, mas também dos atos de consumo” [6]. O consumo passou a ser parte indissociável do ser humano e essa massificação se tem demonstrado ser um dos grandes problemas a ser enfrentado pela sociedade contemporânea, pois, atualmente esse consumo em massa desencadeia um processo tributário exaustivo ao consumidor final.

            Com o desenvolvimento dessas relações mercadológicas, as relações de consumo tornaram-se terras de grandes empresários que começaram a praticar e a contratar da forma que lhes interessavam, transferindo suas responsabilidades como proprietários aos vulneráveis consumidores que adquiriam seus produtos ou serviços. Desta mesma forma, transferiram também ao consumidor final o ônus tributário, pois é o adquirente do produto ou serviço que paga esta conta, ou seja, a tributação em cascata ainda tem forma retrograda  ao adquirente.

            O nosso sistema tributário é deficiente e necessita de alterações. Este sistema prejudica a competitividade dos produtos nacionais frente aos produtos do exterior. O nosso sistema é totalmente complexo, é ele que facilita e estimula a sonegação. Ademais o mesmo não é harmônico aos sistemas tributários de nossos parceiros mundiais porque tranca o processo de abertura da economia nacional.

            A grande mudança deve haver na necessidade de minimizar o efeito negativo da tributação sobre a eficiência e a competitividade externa e interna. O que torna, a mudança tributaria uma ilusão é a crise fiscal do Estado brasileiro.

Como se sabe todo esse corte realizado recentemente nas despesas do governo e o aumento de políticas sociais que visam apenas à doação e não o crescimento das pessoas faz com que essa máquina apenas aumente os impostos para não arcar com o tempo uma divida pública inimaginável e onerosa para a nação, impossibilitando de alguma forma o desenvolvimento pessoal individual para uma série de indivíduos aumentando a carga tributaria em geral para a nossa nação.

Como se sabe é impossível nutrir uma ilusão de uma justiça fiscal. Para haver alteração há necessidade de mudanças que se altere o status quo dos entes federativos fazendo mudanças, onde alguns irão arrecadar mais e outros menos. Por obvio que o ente federativo que receber menos não aceitara essa modificação. Portanto assegurar que nenhuma unidade federativa, União, Estados e Distrito federal e Municípios, alem dos contribuintes de fato percam ou sofram alguma perda em ralação uns aos outros é realmente confirmar que a mudança é uma fantasia.

É nessa festa a fantasia que cada ente federativo feste a sua máscara e tenta preservar os seus percentuais estabelecidos constitucionalmente nas repartições das receitas tributárias, todavia não se pode assegurar uma solução para todos os casos, mas sim, tentar minimizar os problemas sociais de cada ente.

A propósito devemos indagar quem realmente paga esta conta tributária? Quem realmente financia o Estado? Um princípio consagrado em nossa Carta Magna é o da capacidade contributiva, que é o principio que realmente consagra a justiça fiscal, este princípio é salutar para falarmos em redução das desigualdades. Associado também a este princípio existe ainda o princípio da progressividade e o da seletividade, princípios estes que asseguram uma tributação proporcionalmente maior para auferir rendimentos mais elevados, que consome mais produtos e por consequência detém maior patrimônio.

Hugo de Brito Machado[7] comenta que é progressivo o imposto cuja alíquota é maior na medida em que aumenta a base tributaria. Como a base imponível é sempre uma expressão da riqueza de cada um, a progressividade faz com que o imposto onere mais quem tem riqueza maior, e é seletivo o imposto cujas alíquotas são diferentes, para objetos diferentes. Na seletividade não importa o sujeito, importa exclusivamente o objeto da nossa complexa tributação.

A questão crucial levantada acima, e de propósito não respondida é de quem realmente paga essa conta, onde cada vez mais a elevação do desemprego, dificuldades econômicas da população, queda de renda dos trabalhadores, aumento do custo de vida, inflação principalmente dos produtos básicos para o sustento familiar e por incrível que pareça, a arrecadação dos impostos continua quebrando, ano a ano, todos os recordes históricos e reforça a injusta e desonesta estrutura da carga tributaria existente em nossa federação.

É de fato considerável, analisarmos a importância do princípio da seletividade do Imposto na consecução da justiça fiscal, que esta entendida sob os aspectos tributação com base na capacidade contributiva e redistribuição de renda, utilizando para tanto aspectos econômicos e instrumentos vinculados ao estudo do orçamento familiar, da estrutura de gastos das famílias, dos índices de desemprego na indústria analisada e da arrecadação de tributos federais, notadamente com o intuito de analisar quem de fato arca com os custos da instituição deste princípio.

A política tributária deve ser antes de tudo, um modelo e um instrumento de distribuição de renda capaz de harmonizar a discrepância de nosso desenvolvimento econômico e social do nosso país. A ilusão para uns ou sonho para outros é um modelo tributário que assegure a sustentação do Estado e preconize as políticas sociais.

Para a construção de uma tributação mais justa é necessário resgatar os pilares e reafirmar os princípios tributários, que já estão existentes em todo nosso ordenamento jurídico e que por vezes, ou sempre, não são tratados da forma que deveriam ser sem os pilares não há uma construção resistente que se mantenha forte o suficiente. Entre estes pilares, a seletividade, progressividade, capacidade contributiva, não-cumulatividade e o não confisco do mínimo existencial, o Estado não poderia cobrar impostos sobre uma parcela de renda que as pessoas destinam as necessidades vitais, entre elas, a educação, saúde, moradia, segurança, ou seja, as necessidades básicas do ser humano.

A capacidade contributiva deveria ocorrer após a dedução dos gastos necessários para uma existência digna do contribuinte e de sua família, estas despesas, não deveriam ser cobradas com uma carga tão onerosa como a dos nossos tributos.

Para a justiça fiscal é necessário aplicar a máxima de tratar desigualmente os desiguais, garantir um sistema tributário de caráter pessoal e gradativo de acordo com a capacidade econômica do contribuinte fazendo com que as classes de elevado poder aquisitivo arcassem um maior ônus tributário, permitindo assim, na pratica uma redistribuição de renda no nosso país. Os donos dos maiores capitais financeiros seriam chamados a contribuir com uma maior parcela do financiamento do Estado brasileiro.

Toda essa crise fiscal do Estado brasileiro praticamente elimina e engessa qualquer proposta que implique uma diminuição do patamar atual na carga tributaria, pois, os entes federativos não iriam admitir sua arrecadação tributaria.

Contudo, o objetivo essencial de uma mudança ou reforma tributaria é minimizar o efeito negativo da tributação sobre a nossa competitividade em frente a todo o mercado. É necessário repensarmos para não ficarmos atrás da concorrência neste processo de globalização mundial.



[1]Art. 153, § 3°, II, in verbis “Artigo 153. Compete à União instituir impostos sobre: [...] IV – produtos industrializados; [...] § 3º - O imposto previsto no inciso IV: [...] II - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;”

[2] Art.154, I, in verbis: “Artigo 154. A União poderá instituir: I - mediante Lei Complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam nãocumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;”.

 

12 COELHO, Sacha. princípio da não-cumulatividade. nova série n 10, 2004, p.70.

[5] PAULSEN, Leandro. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. 6ª Ed. Poa. Livraria do advogado.2011. p. 90.

[6]  COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 416

[7] MACHADO, Hugo de Brito. Progressividade e Socialismo. Artigo publicado no jornal Zero Hora de 18/08/1998.p.15.