Relativização da autonomia

 

É ocioso lembrar que os poderes constituídos do Estado são Executivo, Legislativo e Judiciário.  Teoricamente independentes e harmônicos, o funcionamento e o relacionamento entre eles são tão intensos, íntimos e intrincados que não é realmente possível verificar concretamente esta independência.

A grosso, o Executivo é responsável pela arrecadação e repasse de verbas aos outros poderes, além de ser responsável pela administração da coisa pública, pela ordem e manutenção dos serviços públicos essenciais.

O Legislativo dita como o executivo gastará anualmente estes recursos e produz o ordenamento jurídico que, após ser sancionado pelo Executivo, passa a vigorar indiscriminadamente para todos.

O Judiciário, por seu turno, é intérprete oficial e aplicador exclusivo das leis vigentes, único capaz de anular juridicamente atos dos outros poderes e zelador-mor do conjunto normativo expedido pelo legislativo. Como resguardo da harmonia, todos os membros das altas cortes são previamente indicados pelo Executivo e avaliados pelo Legislativo. Que independência há nisso?

Montesquieu, em sua obra “O Espírito das Leis” (1748), sintetizou essa correlação de forças chamando-a de “freios e contrapesos”. Eles previnem e limitam possíveis exacerbações ou excessiva concentração de força por um único Poder, impondo-lhe marcos assecuratório e impeditivo de sua hipertrofia, em detrimento dos outros dois.

Em síntese, esta regulação cruzada relativiza a autonomia e compromete parcela considerável da independência individual de cada um, em favor do equilíbrio da República,

Então, quando se afirma que a imprensa se configura num quarto poder, a análise não deve ficar adstrita somente aos aspectos externos da sua capacidade informativa dos atos de governo e da sociedade em geral. Vai mais além. A força que ela representa, noticiando a fricção diária entre os diversos componentes da nação, é denotativa também de sua autonomia editorial, em relação aos demais poderes formais e informais.

Não à toa, este paralelismo traçado entre a independência dos Poderes e a autonomia da imprensa, abre as reflexões sobre o assunto e vem a calhar com o modelo de abordagem que lhe será dado.

 

Subalternidade imposta ou adquirida

 

Sabe-se que parte considerável da riqueza proporcionada pela imprensa advém da venda direta de publicidade – assinaturas e vendas avulsas não viabilizam economicamente nenhuma publicação. É notório também que quem paga publicidade em larga escala cria a possibilidade de interferir diretamente na composição, oportunidade e conteúdo da notícia a ser publicada pela mídia jornalística escolhida.

De forma geral, as notícias, vinculadas ou avizinhadas a propaganda comercial, estimulam o consumo e, subjacente, favorecem seletivamente o grupo político apoiado ou apoiador do anunciante. Pode-se chamar esta situação de dependência indireta.

Além disso, os governos (União, Estados e Municípios) são os maiores propagandistas do país, desembolsando anualmente quantias milionárias em veiculação intensiva de campanhas institucionais ou auto-promocionais. Tal condição é encarada como dependência direta.

Ou seja, esta combinação obriga certa dose de promiscuidade entre o departamento comercial e o de jornalismo. Há intervenção comercial na orientação editorial, ditando a linha mais afinada economicamente à conveniência e saúde financeira do veículo. É a versão rebuscada da máxima popular que não se deve morder a mão que nos alimenta.

Em outra via, esta confusa inter-relação publicitária e jornalística é aproveitada em outras circunstâncias. Isto se dá quando o meio precisa de amparo do Estado em empréstimos de bancos estatais, perdão de dívidas, afrouxamento na fiscalização, manutenção da concessão para uso dos sinais de rádio e televisão, sentenças favoráveis em processos judiciais etc. É outra forma de dependência, só que com sinais invertidos.

Outro sintoma da falta de autonomia na notícia é o fato de a maioria dos meios de comunicação no Brasil, principalmente as retransmissoras estaduais das grandes redes de televisão e os jornais de grande tiragem dos estados centrais, estarem nas mãos de grupos familiares influentes politicamente, geralmente com cargos importantes no poder executivo (governadores, prefeitos e secretários de estado) ou no legislativo (vereadores, deputados estaduais, federais e senadores). Neste figurino não cabe a noção de dependência direta ou indireta.

Aliás, o meio de comunicação comandado, direta ou indiretamente, por detentor de cargo ou mandato, não passa de meio de propaganda político-partidária. É outro tipo de dependência.

Além das situações acima, há aquelas em que o presidente do veículo de comunicação - ou o editor-chefe - é simpatizante de determinada linha de pensamento com forte matiz ideológico, religioso, partidário. Assim, a informação jornalística é apresentada como uma catilinária patética e eminentemente caudatária da corrente abraçada, desnaturando sua isenção.

Para consumo externo, todos os órgãos de imprensa, sem exceção, são unânimes em afirmar que a independência é sua principal virtude. Por conta dela a sociedade pode acreditar naquilo que recebe como notícia.

Apesar disso, percebe-se não existir autonomia alguma em suas diversas formas. Portanto, leitores e espectadores estão automaticamente autorizados a desconfiar de tudo aquilo que vêem, lêem ou ouvem.

Neste contexto, a dependência econômica aparece como a mais obstrutiva ao desiderato de se alcançar uma imprensa imparcial, livre e autônoma. Ela corrompe a informação e inutiliza seu conteúdo, capacitando-a apenas como reclame deslocado.

Nota-se, assim, semelhanças tangíveis entre os freios e contrapesos da tripartição estatal e as vicissitudes que acompanham bem de perto o exercício do jornalismo. Aqueles, por imposição legal previamente estabelecida, moldam o funcionamento e o relacionamento mútuo entre os Poderes, negando-lhes individualmente a plena independência unitária. Ao passo que a subalternidade imposta ou adquirida pelos órgãos informativos infunde-lhe vinculação estreita à viabilidade econômica e ao oportunismo material.

 

Responsabilidade moral e ética

 

Sem sombra de dúvida, a imprensa é fundamental em qualquer Estado que se queira democrático. Sua liberdade e autonomia qualificam o regime. A luta para alcançá-las e aprimorá-las tomba muita gente boa aqui e alhures. Porque, indiscutivelmente, para toda sociedade civilizada, a imprensa é a maior fiadora do equilíbrio democrático e do pleno exercício da cidadania.

A falta de informação, corrente, atualizada e disponível, oferece atalhos seguros para medidas antidemocráticas; abriga toda sorte de atos violentos; estimula a tentação dos adeptos aos regimes de exceção. Não havendo denúncia dos desmandos, os detentores da força, desprovida de direito, sentem-se à vontade para qualquer tipo de aventura.

Mesmo diante deste argumento enaltecedor, é preciso ter em mente que o abuso, o desvio ou o uso impróprio do poder jornalístico é pernicioso, desnatura a democracia. Seu desregramento, sua pusilanimidade, por um ínfimo momento que seja, converte-a em ente nocivo, mais destruidor que a pior e mais truculenta das ditaduras.

O exercício do jornalismo com objetivos escancaradamente personalistas, visando benefício próprio ou de grupo, torna-o mofino; deserta seu determinismo basilar de informar com isenção, entreter com criatividade e educar com respeito.

Não raro, parte da imprensa se esforça em ir além do trivial. Divulga ações desacertadas de políticos, agentes públicos e até mesmo de gente do vulgo. Sempre com fumaças de imparcialidade, bombardeia, martela, instiga, persegue, denuncia fato que, muita vez mais adiante, revela-se despido da celeuma que lhe foi açodadamente imposta.

E a retratação? Ora, a retratação se faz depois, em letras apertadas, box reduzido. O importante é vender a notícia em primeira mão e posteriormente tentar acertá-la com a realidade. Onde está a ética nisso?...

Entretanto, mais perturbador é o fato de a maioria dos leitores, espectadores e ouvintes, via de regra, acreditar piamente em tudo que é veiculado pela mídia. Não lhe pregam sequer a pecha da dúvida. Sem crítica nem contestação, essa audiência tem por certo que a imprensa não mente, é independente, idônea, imparcial e, pelo incrível que pareça, dona da verdade absoluta.

 

Entraves educacionais

 

É por demais sabido que o Brasil é um país com grande número de analfabetos. Em 2009, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base em projeções da Pesquisa Nacional de Amostragem de Domicílio (PNAD) realizada em 2007, estimou em cerca de 14 milhões o número de analfabetos formais (10% da população com mais de 15 anos), excluído a grande legião de alfabetizados funcionais, incapazes de interpretar o que lêem e de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas.

Dentre os quase duzentos milhões de habitantes, efetivamente pouco mais de 2,4 milhões informam-se exclusivamente através de rádio e televisão, meios de muita velocidade e pouca profundidade.

A mídia impressa não é acessível a todos os alfabetizados, poucos podem ou querem comprar revistas e jornais. Além disso, pequena parte tem presente o gosto pela leitura. Outro complicador é a distância que se situa entre ler e entender aquilo que está impresso.

Temos então um país que, subtraída a soma de analfabetos formais, alfabetizados funcionais e desinteressados, ostenta pequeno número de pessoas com acesso a imprensa escrita.

Por conta disso, ações sócio-político-econômicas do governo e dos formadores de opinião, com seus respectivos sinais, somente são conhecidas em sua inteireza por pequena parte da população. O rápido noticiário do rádio e da TV é intercalado com excessiva massa de entretenimento e propaganda que estorva o aprofundamento das matérias. Em contraponto, os órgãos da chamada imprensa oficial carecem de dinamismo, são demasiado formais e estruturalmente incapazes de informar substantivamente os detalhes dos atos e fatos políticos, econômicos e sociais relevantes.

Por fim, verifica-se que o entrave educacional danifica a cultura em duas vertentes: impede a circulação universal da informação e prejudica a formação intelectual dos menos afortunados.

 

Conclusão

 

Mesmo em que pese as contingências brevemente descritas, de modo geral, a imprensa tem papel fundamental na formação e no desenvolvimento ético das nações, visto que ela censura, reprova e denuncia ações imorais e antiéticas de qualquer origem.

Sua atuação imparcial faculta a sedimentação da consciência cidadã; auxilia a aplicação dos freios e contrapesos, moderando tentativas de invasão de competência constitucional; impede ensaios aventureiros de ruptura do regime; dá equilíbrio ao exercício do poder constituído; denuncia inclinações totalitárias e desvios de finalidade.

Paralelamente, a imprensa vive momento crucial da sua existência. O crescimento exponencial da rede mundial de computadores encurtou o planeta, tornou relativas distâncias antes intransponíveis e, por derivação, encurralou o jornalismo profissional. A notícia transita livre e instantaneamente nas redes sociais, blogs, páginas pessoais, e-mails etc. As pessoas estão se comunicando muito mais. O não tão distante conceito de “aldeia global” foi literalmente substituído pela idéia de cidadania transnacional. O mundo virou uma única casa.

Tais fatos pressionam-na a rever seus postulados éticos; seus interesses empresariais; seus papel e posicionamento perante a nova realidade.

Outrora, depositária privativa da arte de informar, hoje se vê na contingência de lutar diariamente pela preferência de colocar seu produto altamente perecível diante de um leitor cada vez mais exigente.

Eticamente está em uma terrível encruzilhada: ou adere à nova onda, ou corre o risco de fenecer agarrada ao tradicionalismo em vias de agonizar. O fundamental, entretanto, nesta escolha é não perder de vista – e manter sempre viva - suas qualidades de guardiã do ideal democrático e de repositório da alma nacional.