“HERMENÊUTICA DOS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS”

 

O presente artigo busca delinear a hermenêutica dos conceitos jurídicos indeterminados com base no caso hipotético a seguir: o Presidente Braulino Vieira Lima editou Medida Provisória (MP) alterando o texto da Lei 2.997/60 (Lei das Terras), deixando proprietários de terra de todo p Brasil insatisfeitos e levando a Associação Brasileira Viva Terra Brasilis, que representa a categoria, a ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

A entidade questionou não o conteúdo, mas a legalidade da MP, ressaltando que a mesma foi editada em inobservância aos imperativos formais de relevância e urgência. A inicial da ADI lembrou que, em que pese o constituinte de 1988 ter dotado o Poder Executivo de mecanismos capazes de atender a situações emergenciais que não pudessem aguardar procedimentos ordinários, sua edição estava condicionada à irrestrita obediência aos requisitos de relevância e urgência, e que, apesar da relevância da questão fundiária, o Governo teria editado a MP “na calada da noite”, descaracterizando a urgência requerida pela Constituição Federal (CF).

Por meio da Advocacia Geral da União (AGU), o presidente prestou informações ao STF, sustentando que a MP atendeu, integralmente, os requisitos mencionados: relevância do significado sócio-político da reforma agrária e urgência, com base nos crescentes números de invasões e bloqueios de prédios públicos descritos em relatórios oficiais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A Procuradoria-Geral da República (PGR) defendeu a natureza política dos requisitos de relevância e urgência, corroborando que o Executivo forneceu informações sobre estas condições ao apontar os relatórios oficiais do MDA que descrevem relatos de servidores submetidos a atos de coerção e constrangimento pela internet, pelo próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Partindo de uma análise teórico-científica dos conceitos jurídicos indeterminados, destaca-se que há normas que em seus próprios enunciados, delimitam suas exatas extensões e compreensões, são definidas. Outras, no entanto, explicitam apenas parcialmente esses limites ou extensões, apresentam-se, na forma como foram enunciadas, como conceitos. Todos os conceitos, por sua vez, revelam uma zona fixa (um núcleo), onde são estabelecidas as certezas, e uma zona periférica, onde as dúvidas começam. A doutrina os identifica como indeterminados quando suas zonas periféricas apresentam-se de forma extensa e difusa, e as zonas nucleares de forma reduzida.

Diante desses conceitos, apesar de sua indeterminação, há sempre uma zona de certeza negativa (o que não é) e positiva (o que é), onde é possível o controle para afastar as interpretações e aplicações incorretas, embora sempre permaneça uma zona de penumbra, de incerteza. Nesse sentido, afirma Gustavo Binenbojm (2006):

[...] quando é possível identificar os fatos que, com certeza, se enquadram no conceito (zona de certeza positiva) e aqueles que, com igual convicção, não se enquadram no enunciado (zona de certeza negativa), o controle jurisdicional é pleno. Entretanto, na zona de penumbra ou incerteza, em que remanesce uma série de situações duvidosas, sobre as quais não há certeza sobre se se ajustam à hipótese abstrata, somente se admite controle jurisdicional parcial (BINENBOJM, 2006).

Nosso ordenamento tem como pressuposto que toda e qualquer ação ou decisão de autoridade pública deve ser fundamentada e que esta motivação deve ser feita utilizando-se do próprio Direito, fundada na juridicidade. Assim, a única resposta possível sobre quais os meios admitidos para o preenchimento de um conceito jurídico indeterminado, é que esse deve se dar com a busca de elementos densificantes que já se encontram dentro do sistema jurídico. Esse preenchimento diminui a abrangência daquela zona cinzenta, e embora não a elimine, somente será possível nos termos do que já estiver pré-determinado pela análise sistemática, pela interpretação sistemática do próprio Direito positivado.

Celso Antônio Bandeira de Mello (1990) complementa, por sua vez, que embora indeterminado, o enunciado traz em si um conteúdo que será identificado em relação ao caso concreto pelo aplicador do direito, e esse conteúdo pode variar ao longo do tempo, sofrendo alterações de significado, pois recebe influências de caráter social, econômico, político, cultural, entre outros.

O direito é, em grande medida, um fenômeno de linguagem, detendo um aparato coativo. Mas a coercibilidade só não basta. Assim, legislar é uma tarefa que exige grande responsabilidade. A sensibilidade de quem legisla, embora a fixação da sanção ocupe um papel relevante como fixador da vontade, não pode desconhecer os valores mais caros que movimentam a comunidade. É, em parte, por isto, que um determinado dispositivo pode funcionar razoavelmente em um país, e não funcionar em outro.

Não se pode relegar a realidade histórico-social, e dificilmente um caso levado ao Judiciário recebe a resposta baseada numa norma singular. É, geralmente, necessária a utilização de várias normas simultaneamente, a aplicação do ordenamento jurídico como um todo. É no intervalo das possibilidades normativas que o juiz se movimentará, reconhecendo os limites que o sistema de referências normativas lhe impõe. Leituras diferentes do mesmo sistema serão possíveis, o que não é de provocar surpresa, pois o direito se apresenta como um objeto cultural, verificando, nele, a presença de valores realizáveis, não sendo um produto pronto em parte alguma.

Os conceitos jurídicos indeterminados ganham mais relevância no Direito Administrativo, uma vez que se relaciona com o tema da discricionariedade, que envolve margem de liberdade para o administrador que, diante de mais de um comportamento cabível, opta por um deles. O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Eros Grau, segue a doutrina alemã e defende que a técnica dos conceitos jurídicos indeterminados nada tem a ver com a técnica da discricionariedade. A primeira enseja interpretação e é baseada em juízos de legalidade. A segunda, por sua vez, enseja liberdade de escolha e é baseada em juízos de oportunidade. A discricionariedade só pode resultar de expressa atribuição legal à autoridade administrativa, e não da circunstância de os termos da lei serem ambíguos, equívocos ou suscetíveis de receber qualificações diversas.

A Teoria da Adequabilidade Normativa demonstra que a adequação da norma a um determinado caso só acontece por meio de um processo que descobre todas as características da situação e analisa todas as normas que porventura possam ser aplicadas ao caso concreto. Como o significado da norma se altera, “dependemos da história, cada momento que encaramos uma situação que não poderíamos prever e que nos força a alterar nossa interpretação de todas as normas que aceitamos como válidas” (PEREIRA, 2007).

No que tange à relevância e à urgência como conceitos jurídicos indeterminados, temos que a MP, apesar das constantes críticas que sofre, e que não raro têm fundamento, é espécie normativa necessária ao Governo, pois situações relevantes e urgentes surgem e impõem providências imediatas para resolvê-las, tornando imperioso que o Executivo disponha de mecanismo célere, capaz de fazer frente a tais problemas. A problemática surge no momento da adoção da medida. A prática mostra que nem sempre as hipóteses que a albergam podem ser tidas como relevantes e urgentes, ou seja, a sua edição, muitas vezes, prescinde dos requisitos que a legitimam: a relevância e a urgência. Quando a criação da Medida, por sua vez, se dá sem a presença dos pressupostos que a justificam, impõe-se o controle jurisdicional.

            A partir da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, relevância e urgência encontram-se em um âmbito de realidade cuja delimitação não é precisa, embora se refira a uma hipótese. A urgência deve ser entendida como inadiável, consubstanciando-se em uma hipótese em que, comprovadamente, inexista tempo hábil para que uma dada matéria, sem grandes inilidíveis prejuízos à Nação, venha a ser disciplina por meio de lei ordinária. Logo, em nosso direito positivo, só há urgência se realmente não se puder aguardar 45 dias para que uma lei ordinária venha a ser aprovada, regulando o assunto.

Segundo Celso de Mello, em se tratando de medidas provisórias, a pragmatização da urgência se opera conforme o senso comum, sendo urgente aquilo que não pode ser adiado sem provocar sérios riscos de efeitos desastrosos. A própria Constituição, ao prever a possibilidade de o Presidente da República solicitar urgência para os projetos de sua iniciativa, revelou que se for possível esperar o decurso deste prazo, não haverá a urgência habilitadora para utilização do expediente excepcional da medida provisória. É preciso descobrir diferentes degraus de urgência no Texto Constitucional brasileiro, entre eles a urgência das medidas provisórias:

Mesmo que a palavra contenha em si algum teor de fluidez, qualquer pessoa entenderá que só é urgente o que tem de ser enfrentado imediatamente, o que não pode aguardar o decurso do tempo, caso contrário o benefício pretendido será inalcançável ou o dano que se quer evitar consumar-se-á ou no mínimo, existirão sérios efeitos desastrosos em caso de demora. Acresce, que, ante o Texto Constitucional, existe ainda um parâmetro suplementar: para fins do art. 62 não será em hipótese alguma configurável como urgente aquilo que possa aguardar (MELLO, 1990).

A relevância, por sua vez, deve ser entendida como o insuperável. É a providência que se impõe em determinada situação para tutelar interesse público, cujas peculiaridades e especificidades da matéria que veicula reclamam especial atenção e excepcional atuação do Estado, e cujo objetivo só será alcançado por meio da MP, inexistindo outro instrumento hábil a fazê-lo.

Por fim, Celso Antônio Bandeira de Mello orienta que “a circunstância de relevância e urgência serem conceitos ‘vagos’, ‘fluidos’, não implica que lhes faleça densidade significativa. Se dela carecessem não seriam conceitos e as expressões com que são designados não passariam de ruídos ininteligíveis, sons ocos, vazios de qualquer conteúdo, faltando-lhes o caráter de palavras, isto é, de signos que se remetem a um significado”.

Com base nos textos sugeridos para a elaboração do referido case, observamos três teorias que podem ser aplicadas à situação colocada. A primeira não admite controle jurisdicional, permitindo total discricionariedade para a interpretação das normas; a segunda, mais moderada, também possibilita escolhas para a resolução do caso, mas permite controle jurisdicional; na terceira, a mais radical, baseada na Teoria da Adequabilidade Normativa, não há discricionariedade, e o controle jurisdicional é amplo.

A corrente que admite total discricionariedade para interpretação permite que dentre as várias opções, os vários caminhos a se tomar, o juiz opte por um deles na resolução do caso concreto. Essa liberdade se reflete no controle do judiciário, que não é admitido. Nas situações excepcionais e relevantes, que exijam medidas céleres para resolvê-las ou amenizá-las, não faria sentido e não seria razoável que o presidente fosse mantido de “mãos atadas”. O STF firmou posicionamento no sentido da impossibilidade do controle jurisdicional sobre os pressupostos materiais do decreto-lei, entendendo tratar-se de juízo discricionário do Presidente, e, portanto, sujeito apenas ao controle político a ser exercido pelo Congresso Nacional. À luz desta teoria, a MP seria constitucional, e a ADIN, improcedente.

A segunda corrente ora enseja vinculação, ora enseja liberdade. Esse pensamento é colocado por Celso Antônio Bandeira de Melo, que defende o conceito de discricionariedade como, na verdade, um conceito jurídico indeterminado. Por esta teoria, há um “certo” controle jurisdicional, limitado e excepcional. Aqui, a MP também seria constitucional, visto que o presidente demonstrou a existência dos pressupostos exigidos para a edição da medida.

            Na última, por sua vez, não há discricionariedade. Considerando as peculiaridades de cada caso, não há opção de escolha da norma a ser aplicada, mas sim, adequação normativa. Esta teoria tem fundamento na Teoria da Adequabilidade Normativa, de Klaus Gunther, e critica Celso de Melo (PEREIRA, 2007, p. 35), que acaba por reconhecer que diante do caso concreto a suposta discricionariedade acaba por reduzindo-se a zero. A situação discricionária não é só aquela prevista em lei, mas deve ser analisada caso a caso, e o controle do judiciário é amplo, sendo a interpretação feita pelo juízo de legalidade. Quando se fala em controle concentrado, o STF, no controle abstrato de normas, ensejaria desempenho de típica função política e de governo. É no exercício da atividade jurídico-política que se insere a principal possibilidade de controle judicial dos pressupostos de relevância e urgência. Abrindo espaço para a interferência jurisdicional, a MP seria inconstitucional, e a ADIN, procedente.

 

REFERÊNCIAS

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006.

CORDEIRO, ANTÓNIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

MAIA, Cleusa Aparecida da Costa. Medida Provisória: controle jurisdicional dos pressupostos que a legitimam – relevância e urgência. Revista Imes, Direito, ano VII, n. 12, 2006. Disponível em: <http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article/viewFile/811/677>. Acesso em: 10 de mar. 2011.

MARIOTTI, Alexandre. Medidas provisórias. São Paulo: Saraiva, 1999.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Perfil Constitucional das Medidas Provisórias. São Paulo: Revista de Direito Público nº 95, 1990.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São

Paulo: Atlas, 2002.

PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Conceitos Jurídicos Indeterminados e Discricionariedade Administrativa à Luz da Teoria da Adequabilidade Normativa. Revista CEJ, n. 36. Brasília, 2007