Estabelecimento do devido processo legal para devolução de parcelas recebidas indevidamente pelos servidores públicos a luz da jurisprudência do STF e STJ

O cerne da questão cinge-se à análise jurídica da necessidade do estabelecimento do devido processo legal para devolução de parcelas recebidas indevidamente pelos servidores públicos.

A jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que a cobrança pela Administração de valores pagos indevidamente a servidor público deve observar o devido processo legal e a garantia da ampla defesa.

Confiram-se recentes julgados, da Primeira, Segunda, Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça especializas em Direito Público:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. SERVIDOR PÚBLICO. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. NECESSIDADE DE PRÉVIA OITIVA DO INTERESSADO. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. OBSERVÂNCIA.

1. A citada violação do artigo 535, do CPC, não se efetivou no caso dos autos, uma vez que não se vislumbra omissão, obscuridade ou contradição no acórdão recorrido capaz de tornar nula a decisão impugnada no especial. A Corte de origem apreciou a demanda de modo suficiente, havendo se pronunciado acerca de todas as questões relevantes.

2. Prevalece nesta Corte Superior a corrente segundo a qual, de fato, é possível à Administração Pública efetuar o desconto no contracheque dos servidores de valores indevidamente pagos. Tal procedimento encontra-se condicionado à ciência do interessado, oportunizando-lhe a observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório, em prévio procedimento administrativo, ou precedido de autorização do servidor público.

3. Havendo observância, por parte da Administração Pública, da prévia comunicação ao servidor interessado referente ao desconto na sua folha de salário a título de ressarcimento, este mostra-se cabível, conforme bem concluiu o Tribunal de origem.

4. Recurso especial não provido.

(REsp 1239362/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/04/2011, DJe 15/04/2011).

 

DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO. VALORES RECEBIDOS INDEVIDAMENTE. REPOSIÇÃO AO ERÁRIO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. NECESSIDADE. PRECEDENTE DO STJ. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A atividade do Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Poder Legislativo, é meramente fiscalizadora e suas decisões têm caráter técnico-administrativo, sendo revestidas de caráter opinativo, não fazendo coisa julgada. Precedente do STJ.

2. "Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão" (Súmula Vinculante 3/STF – Grifo nosso).

3. "A cobrança pela Administração de valores pagos indevidamente a servidor público deve observar o devido processo legal, com o imprescindível exercício da ampla defesa e do contraditório" (AgRg no REsp 979.050/PE, Rel. Min. JORGE MUSSI, Quinta Turma, DJe 6/10/08).

4. Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag 1239482/RJ, Rel. Ministro ARNALDO

ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 20/05/2010, DJe 21/06/2010).

 

RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. GRATIFICAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO. PAGAMENTO INDEVIDO. DESCONTO EM FOLHA. DEVIDO PROCESSO LEGAL, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. NÃO-OBSERVÂNCIA. RECURSO PROVIDO.

1. De acordo com a jurisprudência firmada neste Superior Tribunal de Justiça, a restituição de valores pagos indevidamente pela Administração a servidor público deve observar o devido processo legal, bem como respeitar o limite máximo legal de desconto, que, na espécie, é a quinta parte da remuneração ou provento do recorrente, nos termos do artigo 82 da Lei Complementar Estadual 10.098/94.

Precedentes.

2. Na espécie, contudo, não foi assegurado o imprescindível exercício da ampla defesa e do contraditório previamente ao desconto do contracheque do impetrante das parcelas a ele pagas indevidamente.

3. Recurso ordinário provido, para anular os descontos efetuados sobre a remuneração do recorrente e determinar a obediência ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório previamente a eventual restituição dos valores pagos ao impetrante a título de gratificação de substituição.

(RMS 10.116/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 14/12/2006, DJ 12/02/2007, p. 298).

 Analisando o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, verificou-se que a jurisprudência tem se firmado no sentido da necessidade de instauração de processo administrativo, respeitado o devido processo legal, sempre que houver restrições de direitos na esfera jurídica dos servidores públicos. Vejam-se os precedentes:

PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA. REVISÃO UNILATERAL. OFENSA AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. OCORRÊNCIA. ANÁLISE PELA INSTÂNCIA RECURSAL. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.

[...]

3. Estando devolvida ao STJ a análise da legalidade do ato de revisão da aposentadoria - apreciada na origem - a profundidade do efeito devolutivo é ampla, sendo possível que a instância revisora aprecie a higidez do ato coator também sob a ótica da observância do devido processo legal. Saliente-se que, na hipótese, a alegativa de ofensa ao contraditório e à ampla defesa foi suscitada pela impetrante, tanto na inicial, como no recurso interposto perante esta Corte.

4. Segundo a jurisprudência do STJ, a desconstituição de ato administrativo que repercuta na esfera individual dos servidores ouadministrados deve ser precedida de prévio procedimento administrativo que assegure a observância do contraditório e da ampla defesa.

5. No caso, a revisão do ato de aposentadoria ocorreu unilateralmente, sem a instauração de prévio processo administrativo, em flagrante desrespeito à ampla defesa e ao contraditório, o que acarreta o reconhecimento de sua nulidade.

6. Recurso ordinário em mandado de segurança provido. (RMS 31829 / GO

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2010/0055304-5   Relator(a)  Ministro CASTRO MEIRA (1125)  Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 28/09/2010 Data da Publicação/Fonte DJe 19/10/2010) (grifo nosso)

 

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. SUPRESSÃO DA PARCELA "BIENAL JUDICIAL". DECADÊNCIA. NÃO-OCORRÊNCIA. DEVIDO PROCESSO LEGAL. NECESSIDADE. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. Consoante inteligência da Súmula 473/STF, a Administração, com fundamento no seu poder de autotutela, pode anular seus próprios atos, desde que ilegais. Ocorre que, quando tais atos produzem efeitos na esfera de interesses individuais, mostra-se necessária a prévia instauração de processo administrativo, garantindo-se a ampla defesa e o contraditório, nos termos dos arts. 5º, LV, da Constituição Federal e 2º da Lei 9.784/99.

2. Recurso especial conhecido e improvido. (REsp 759.293/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 14/06/2007, DJ 06/08/2007, p. 632)

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL. CONTRARIEDADE AO ART 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. SERVIDOR PÚBLICO. REDUÇÃO DE VENCIMENTOS. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E AMPLA DEFESA.

[...]

2. Este Superior Tribunal possui entendimento de que todo ato administrativo que repercuta na esfera individual do administrado, no caso, servidor público, tem de ser precedido de processo administrativo que assegure a este o contraditório e a ampla defesa. Trata-se de mitigação do enunciado da Súmula 473/STF, com intuito de conferir segurança jurídica ao administrado, bem como resguardar direitos conquistados por este.

3. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 882200 / RJ AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2006/0196364-8   Relator(a)  Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (1131)   Órgão Julgador  T6 - SEXTA TURMA  Data do Julgamento  23/03/2010 Data da Publicação/Fonte DJe 12/04/2010 ) (grifo nosso)

Assim, nota-se ser remotíssima a possibilidade de reverter esse posicionamento. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, a necessidade do estabelecimento do devido processo legal decorre da própria Constituição da República. Salienta que “está estampadamente claro na Constituição do País que a Administração Pública não pode investir contra a liberdade ou contra a propriedade das pessoas sem antes cumprir a sequência itinerária de atos que se constituam em um processo regular, assegurada ampla defesa, quando se trate de adotar providência conducente a qualquer medida gravosa que intente tomar em relação a estes bens jurídicos. Vale dizer: a ‘privação’ deles está condicionada ao ‘devido processo legal’, sem o quê será nula, por inconstitucional.” (Grandes temas de Direito Administrativo. Malheiros, 2009. p. 101).

Ademais o posicionamento adotado pelo STJ não diverge da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Em 13/02/2009 foi reconhecida a repercussão geral do tema. O RE 594.296 foi adotado como paradigma. Veja-se a ementa:

                       

Em 21.09.2011, em sessão plenária, o STF julgando o RE 594.296 RG/MG, entendeu pela necessidade de se formalizar processo administrativo quando a atuação da entidade administrativa puder acarretar restrição ou perda de direito ou de alteração ou anulação de situação antes reconhecida ao interessado. Confira-se o teor da ementa:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DO PODER DE AUTOTUTELA ESTATAL. REVISÃO DE CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO E DE QUINQUÊNIOS DE SERVIDORA PÚBLICA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.

1. Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já decorreram efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo.

2. Ordem de revisão de contagem de tempo de serviço, de cancelamento de quinquênios e de devolução de valores tidos por indevidamente recebidos apenas pode ser imposta ao servidor depois de submetida a questão ao devido processo administrativo, em que se mostra de obrigatória observância o respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

3. Recurso extraordinário a que se nega provimento

Constam as seguintes conclusões no voto do Min. Relator Dias Toffoli:

“No caso presente, o cancelamento de averbação de tempo de serviço lançado no prontuário da recorrida, bem assim de quinquênios que lhe tinham sido concedidos, em razão dessa contagem de tempo, inegavelmente influíram em sua esfera de interesses, posto que alteraram o cômputo de seu tempo de serviço, para fins de concessão de quinquênios e mesmo de aposentadoria, e acarretaram devolução de valores que lhe haviam sido pagos pelo recorrente.

 

Indubitável, destarte, que essa retificação de seu tempo de serviço e essa ordem de devolução de valores que lhe foi imposta deveriam ter sido precedidas de regular processo administrativo, em que a servidora deveria ter respeitados seus direitos ao contraditório e à ampla defesa.

 

Não se está a discutir, nos autos deste recurso, se a recorrida tem efetivamente direito a essa contagem de tempo inicialmente deferida pelo recorrente, tampouco se faz jus aos aludidos quinquênios e, caso contrário, se deve devolver aos cofres públicos os valores recebidos a esse título.

 

O que está sub judice, neste processo, é apenas a análise do eventual direito da servidora de que essa intervenção estatal em sua esfera de interesses fosse precedida de um devido processo administrativo, conclusão que se tem por irrefutável, conforme exposto ao longo deste voto.

 

Assim, como isso inegavelmente não ocorreu, no caso em tela, conforme, aliás, reconhecido pelo próprio recorrente, corretas foram as decisões proferidas nos autos que determinaram a anulação do ato, restando facultado ao recorrente sua renovação, desde que respeitados os princípios constitucionais inerentes a esse tipo de intervenção estatal na esfera de interesses de uma sua servidora.”

 

Ao proferir seu voto o Ministro Luiz Fux, acompanhando o voto do Relator, assim ponderou:

“Quer dizer, sabemos que o Direito vive em função do homem, e não o homem em função do Direito. Ora, é possível que nós próprios recebamos alguma parcela no nosso contracheque, sem que saibamos a origem daquela parcela, sem que saibamos da necessidade até de ter que devolver aquela parcela. Então, realmente é uma intromissão abrupta no direito de propriedade do servidor essa supressão do adicional, e, mais ainda, o desconto imediato daquilo que unilateralmente a Administração entendeu indevido.

 

De sorte que, louvando o excepcional voto do Ministro Dias Toffoli, eu o acompanho integralmente para que essa supressão pretendida pela Administração Pública e esse desconto pretendido pela Administração Pública se submetam à ampla defesa e ao contraditório.

Não se está aqui afastando a possibilidade de a Administração, verificando a ilegalidade, suprimir esse adicional, mas que o faça obedecendo a esses cânones constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Acompanho Sua Excelência o Ministro Dias Toffoli.

Os ilustres estudiosos do Direito Administrativo pátrio também já se manifestaram sobre o tema, perfilhando entendimento semelhante. Como ensinam Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, “o processo administrativo aberto, visível, participativo é instrumento seguro de prevenção à arbitrariedade. Dele não se pode abrir mão, minimamente que seja. ... a garantia constitucional do direito à ampla defesa exige que seja dada ao acusado – ou a qualquer pessoa contra a qual se faça uma irrogação, em desfavor da qual se estabeleça uma apreciação desfavorável (ainda que implícita), ou que esteja sujeita a alguma espécie de sanção ou restrição de direitos – a possibilidade de apresentação de defesa prévia à decisão administrativa. Sempre que o patrimônio jurídico e moral de alguém puder ser afetado por uma decisão administrativa, deve a ele ser proporcionada a possibilidade de exercitar a ampla defesa, que só tem sentido em sua plenitude se for produzida previamente à decisão, para que possa ser conhecida e efetivamente considerada pela autoridade competente para decidir” (FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu – Princípios do processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, ps. 24 e 90).

Assim, conclui-se pela necessidade do estabelecimento do devido processo legal para devolução de parcelas recebidas indevidamente pelos servidores públicos, com o imprescindível exercício da ampla defesa e do contraditório.

 

Referências:

FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu – Princípios do processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007

DE MELLO, Celso Antônio Bandeira, Grandes temas de Direito Administrativo. São Paulo:Malheiros, 2009.).