Semana passada, fui ao concorrido lançamento do livro O homem com dois lados esquerdos, do jornalista, publicitário e advogado Ernani Buchmann (Ernani Lopes Buchmann, como vim a saber na crônica “Os Lopes”). Chegando em casa, não resisti: já comecei a leitura.

Sou fã de crônicas. Não costumo ler “in a row”, mas “per saltum”. Quando o livro é bom, após os primeiros saltos, ele nos obriga a ir na seqüência. Foi o que aconteceu. Difícil ter que interromper, às onze da noite, com a obrigação de acordar cedo. Marco Maciel, famoso por dormir só quatro horas, teria ido adiante. Como não sou Marco Maciel...

Ernani é um cronista de mão cheia. O humor, a ironia, episódios curiosos, opiniões, polêmicas (p.ex., contra o carnaval de rua curitibano, em “Não vale uma lantejoula”), pinceladas autobiográficas (com destaque para “O ser que me habita”), está tudo lá.

Eu poderia me obrigar a citar as cinco melhores. Ao bom estilo do filme Alta fidelidade. Ou d’O livro das listas. Mas o próprio Ernani me desobriga, na crônica “As maiores invenções”: “Jamais tive paciência com a tendência ao reducionismo, que explica tudo a partir de gráficos, listas”. Então, vou fazer menções “per saltum”, que é a minha especialidade – João do Pulo que se cuide (estou um tanto desatualizado nas minhas referências olímpicas).

O primeiro salto é curto, dentro dessa mesma crônica: “Nada pode me deixar mais irritado do que fórmulas para fazer amigos, conquistar pessoas”. Isso me lembrou Millôr Fernandes, que disse algo mais ou menos assim: desde que ele leu Como fazer amigos e influenciar pessoas, mais colecionou inimigos e se deixou influenciar por todo mundo. É isso aí. Esse clássico pioneiro de Dale Carnegie abriu a porteira por onde passou a boiada da auto-ajuda, que entope as livrarias de aeroportos, em que executivos compram a leitura de bordo que irá, ao fim, torturar seus funcionários pelos próximos anos. O antídoto é Scott Adams. Dilbert deveria ser distribuído gratuitamente pela rede LaSelva. Viajei... mas se estamos no aeroporto, é justificável.

Na seqüência, está a crônica “Sobre defesas, bigodes e buzinas”. Em que fala sobre como sofreu com uma derrota do América para o Caxias, clássico joinvillense, por um acachapante 6x2. Eu já sabia do interesse de Ernani pelos times de nome América. E que esse interesse vinha da infância, conforme se vê na crônica “Pavor e admiração”, do livro O ponta perna de pau. Aliás, foi justamente isso que estabeleceu nosso contato: uma pesquisa sobre esses clubes homônimos, que comecei há mais de dez anos e um dia hei de terminar. Antes desses livros, eu pensava que sua infância havia sido ferroviária, já que seu pai foi um dos fundadores do CA Ferroviário e o próprio Ernani foi presidente do sucessor Paraná Clube, conforme lemos em seu Quando o futebol andava de trem. Na realidade, seu primeiro time foi um América. E um dos atuais é o Fluminense, o que deduzo a partir da p. 42 do recente livro.

O futebol continua presente n’alma do cronista. Desde Cidades e chuteiras (1987), passa por O ponta perna de pau (2005) e por A camisa de ouro (2006), que conta a história da evolução da camisa da seleção brasileira. O detalhe é que ele mandou confeccionar réplicas dos modelos antigos nos padrões d’antanho. O resultado foi um livro primoroso, em que a exuberância das cores de todas as camisas hipnotiza o leitor – e, mais ainda, o torcedor.

Voltemos ao livro de agora. “Em tempos de Eça e Sapucaí”: crônica paradigmática de construção por ganchos. Engata assuntos díspares uns noutros, como elos duma corrente, em que o final retoma e mistura os elos anteriores. Valeu principalmente pela hilariante descrição dos procedimentos burocráticos de identificação dos alunos da escolinha do Detran.

Merece menção, é claro, a crônica que dá o título ao livro: “O homem com dois lados esquerdos”. Engraçadíssima (quase cortei o superlativo, com medo de me considerarem uma reencarnação de José Dias, o agregado de Dom Casmurro, mas vi que foi o primeiro, então tudo bem) autobiografia de duas páginas, feita somente com tropeções, esbarros, tombos etc., que Ernani atribui ao fato de ser canhoto. A auto-ironia é uma verdadeira bênção, nestes tempos de xaroposa auto-piedade.

“Um comunista na Fórmula 1”: na minha opinião, a melhor de todas (atenção, lista de apenas um item não é lista). Divertido relato de um encontro com João Amazonas. A ditadura estava nos estertores e o eterno presidente do PCdoB veio a Curitiba para uma reunião sindical num domingo de manhã. Ernani “abandonou a luta de classes” e ligou a TV, era dia de corrida de Fórmula 1. Quando se deu conta, viu ao seu lado o líder comunista “em um casaco muito simplório (albanês, por certo), (...) enquanto o governo era derrubado na copa ao lado”. Amazonas perguntou se Ernani torcia por Piquet ou Senna. Ernani respondeu: “Piquet”. Quer saber por quem João Amazonas torcia? Leia o livro.