CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR COMO CAUSAS EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE POR FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO: a prova da imprevisibilidade e inevitabilidade do fenômeno fático como fator preponderante para caracterizar a força maior em casos de assalto nas dependências do estabelecimento.

Cynthia Esteves de Andrade Veloso

Acadêmico de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB

Luandia Riganti

Acadêmico de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB

Trabalho orientado pelo Prof. Esp. Roberto de Oliveira Almeida, professor, Especialista em Direito Processual Civil, advogado.

DIREITO DO CONSUMIDOR

Resumo:

O presente trabalho pretende analisar o conceito de responsabilidade civil objetiva por fato do produto e do serviço sob a ótica do Direito do Consumidor, com apoio na doutrina, buscando identificar o caso fortuito e força maior como possíveis excludentes dessa responsabilidade no Brasil, tendo como base as diversas interpretações do §3º do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, conjugadas ao disposto no art. 393, p.u. do Código Civil. Em seguida, analisar-se-á a quebra do nexo de causalidade como forma de caracterização da força maior nos casos de assaltos ocorridos nas dependências do estabelecimento, cuja vítima seja o consumidor, com base na prova da imprevisibilidade e inevitabilidade do fenômeno fático, trazendo posições jurisprudenciais relevantes para o caso.

Palavras-chave: Direito do Consumidor. Caso fortuito. Força maior.

 

Abstract:

This paper analyzes the concept of objective liability by the fact that the product and service from the perspective of consumer law, supported the doctrine, seeking to identify the unforeseeable circumstances and force majeure as possible exclusionary of this responsibility in Brazil, based on the different interpretations of paragraph 3 of article n. 12 of the Consumer Protection Code, combined with article n. 393, unique pagragraph of the Civil Code. Then it will be analyzing the breakdown of causation as a way to characterize the force majeure in cases of robberies occurred on the premises of the establishment, whose victim is the consumer, based on the evidence of the unpredictability and inevitability of factual phenomenon, bringing relevant jurisprudential positions for the case.

Keywords: Consumer Law. Unforeseeable circumstances. Force majeure.

 

Sumário: Introdução. 1. Responsabilidade civil por fato do produto e do serviço. 1.1 Excludentes de responsabilidade – possibilidade de aplicação do caso fortuito e força maior na seara do Direito do Consumidor. 2. Caracterização do caso fortuito ou força maior no caso concreto. 2.1 Prova da imprevisibilidade e inevitabilidade do fenômeno fático nos casos de assaltos nas dependências do estabelecimento comercial. Considerações Finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A obrigação de indenizar advinda da responsabilidade civil objetiva, com previsão no Código de Defesa do Consumidor, surge a partir da identificação do nexo de causalidade entre o fornecedor e o dano decorrente do fato do produto ou do serviço. Para parte mais conservadora da doutrina, inexiste exclusão da responsabilidade por caso fortuito ou força maior, vez que a responsabilidade a que se obriga o fornecedor acarreta assumir risco integral, tomando como base o princípio da liberdade de empreendimento, garantido na Constituição Federal (NUNES, 2006, p.271).

Nada obstante, o assunto continua gerando entendimentos diversos porquanto, a despeito de não haver previsão expressa de exclusão de responsabilidade por caso fortuito ou força maior dentre as hipóteses previstas no §3º do art. 12 do CDC, seria possível, para parte da doutrina, a aplicação do disposto no p.u. do art. 393 do Código Civil para efeito de isenção da obrigação de indenizar, conforme decidiu a 3ª Turma do STJ em sede de Recurso Especial (STOCO, 2011, p.216).

No presente trabalho, far-se-á um estudo da possível caracterização da força maior em se tratando de ocorrência de assalto nas dependências do estabelecimento, cuja vítima seja cliente, e portanto consumidor protegido pelo CDC. Demontrar-se-á, por meio de pesquisa jurisprudencial e leitura da doutrina, a necessidade de comprovação do binômio imprevisibilidade e inevitabilidade para restar configurada a existência de caso fortuito ou força maior, passíveis de provocar a isenção da responsabilidade civil por fato do serviço.

Objetivando calcar o presente estudo, a metodologia empregada dar-se-á por meio de pesquisa bibliográfica, permitindo a elucidação do assunto abordado tendo em vista as diversas posições doutrinárias sobre a matéria, utilizando-se do método de abordagem hipotético-dedutivo, bem como da hermenêutica aliada à análise das posições jurisprudenciais em relação às divergências apontadas.

 

1. RESPONSABILIDADE CIVIL POR FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO

O capítulo IV do Título I do Código de Defesa do Consumidor procura garantir a qualidade de produtos e serviços, com o fito de prevenir e reparar possíveis danos causados ao consumidor por meio dos acidentes de consumo, que passaram a ser mais comuns “após o advento da produção e do consumo em massa”, e cujas sanções estão previstas nas searas administrativa, penal e civil (DENARI, 2007, p.171). No âmbito civil, que concerne o objeto de pesquisa do presente paper, está prevista a responsabilidade dos fornecedores por eventuais danos ao consumidor, ocorridos devido à nocividade ou periculosidade dos produtos e serviços (DENARI, 2007).

Os modelos de responsabilidade adotados pelo Código de Defesa do Consumidor nos arts. 12 a 17 tratam da chamada “Responsabilidade pelo Fato do Produto e do Serviço”, que compreende a responsabilidade por vício de segurança. A utilização de produtos e a prestação de serviços podem ser potenciais causadores de danos ao consumidor ou terceiros, gerando riscos à segurança dos mesmos, “podendo ocasionar evento danoso denominado de acidente de consumo” (GARCIA, 2010, p.114).

Os vícios de adequação do produto, elencados nos arts. 18 a 25 do CDC, de outro lado, são produtos ou serviços que “não correspondem às expectativas geradas pelo consumidor quando da utilização ou fruição, afetando, assim, a prestabilidade, tornando-os inadequados.” (GARCIA, 2010, p.114). Deste modo, havendo um determinado produto que não corresponda à expectativa do consumidor, não funcionando do modo previsto ao seu uso, estar-se-á diante de um “vício de adequação do produto, gerando responsabilidade por vícios (arts. 18 a 25)”, cujo prejuízo decorrido é intrínseco ao produto, pois não gerou danos além do uso do produto ao consumidor; a responsabilidade por esse vício, portanto, visa garantir a “incolumidade econômica do consumidor” (GARCIA, 2010, p.114).

Acaso o produto, além de apresentar um vício, também provoque danos físicos, patrimoniais ou morais, não só ao consumidor, mas a terceiros, configurar-se-á o acidente de consumo, que acarreta responsabilidade pelo fato do produto, prevista nos arts. 12 e 13 do CDC (GARCIA, 2010). Assim, o que se deve garantir é a incolumidade físico-psíquica do consumidor, visando proteger sua saúde e segurança, ressaltando, ainda, que o prazo de prescrição da pretensão à reparação por danos causados por fato do produto ou do serviço é de cinco anos, contados a partir do conhecimento do dano e de sua autoria (art. 27 do CDC).   

Para Zelmo Denari (2007), não existe uma dicotomia entre vício de qualidade e defeito, uma vez que “não há diferença entre os conceitos de defeito e vício de qualidade, pois ambos significam a qualificação de desvalor atribuída a um bem ou serviço” (DENARI, 2007, p.184). Ainda segundo o mesmo autor, existem as seguintes possibilidades: “a) um produto ou serviço pode ser defeituoso sem ser inseguro; b) um produto ou serviço pode ser defeituoso, e ao mesmo tempo inseguro” (DENARI, 2007, p.184). A insegurança, desta forma, é um vício de qualidade agregado ao produto ou serviço como característica de desvalia.

A responsabilidade prevista no Código Civil, em seu art. 186, é caracterizada pela necessária fundamentação em culpa no sentido subjetivo, ou seja, quando o agente atua com negligência ou imprudência (DENARI, 2007).  Entretanto, a responsabilidade subjetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor, quando da ocorrência de danos, passou a ser desconsiderada, pois, no âmbito da relação de consumo, “não interessava investigar a conduta do fornecedor de bens ou serviços, mas somente se deu causa (responsabilidade causal) ao produto ou serviço, sendo responsável pela sua colocação no mercado de consumo” (DENARI, 2007, p.188). Deste modo, o art. 12 do CDC se apóia na teoria unitária da responsabilidade civil. No âmbito do Direito Civil a configuração contratual está calcada na teoria aquiliana no que tange à responsabilidade contratual e extracontratual, mas esta não se aplica à relação de consumo, pois “no âmbito do Direito do Consumidor, por força da necessidade de uma atuação mais eficiente de suas medidas tutelares”, a teoria unitária é a mais adequada, com a previsão da responsabilidade objetiva (BECKER apud GARCIA, 2010, p.116). O fornecedor, isto posto, tem o dever de apresentar em seus produtos e serviços um padrão de qualidade, firmando sua credibilidade no mercado de consumo, devendo garantir, ainda, nas palavras de Leonardo de Medeiros Garcia:

“[...] a ausência de vício de qualidade por insegurança ou por inadequação, funcionando, assim, como fundamento único de responsabilidade, contratual e extracontratual, da cadeia de fornecedores em relação aos consumidores e fazendo prescindir inteiramente da existência de vínculo contratual entre uns e outros para a responsabilização dos primeiros” (GARCIA, 2010, p.116).   

O Código de Defesa do Consumidor disciplina a responsabilidade pelo fato do produto e do serviço dos fornecedores – o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador – em seu art. 12, e diferencia a responsabilidade dos comerciantes no art.13. A responsabilidade do fornecedor aparenta ser muito mais ampla do que a do comerciante, pois é ele (o fornecedor) o agente principal do ciclo produtivo e distributivo, sendo o comerciante responsável apenas no ciclo distributivo. Com efeito, a classificação de fornecedor envolve três subtipos: fornecedor real, que consiste no fabricante, produtor e construtor; fornecedor aparente, ou aquele que detém o nome, marca ou signo no produto final; e o fornecedor presumido, que abrange o importador de produto industrializado ou in natura, bem como o comerciante de produto anônimo, com previsão no art. 13 do CDC (GARCIA, 2010).

A tutela civil é assegurada, nos moldes do Código de Defesa do Consumidor, pela intervenção estatal, para garantir a máxima efetivação de reparação de danos ao consumidor, e, sendo essa presunção de vulnerabilidade absoluta na relação de consumo, a lei busca prever mecanismos eficazes para garantir tais direitos, visando o pronto ressarcimento dos danos ocasionados na relação de consumo, que repercutem não só no âmbito dos interesses individuais, mas também dos interesses coletivos. O ordenamento jurídico amplia essa proteção “ao instituir novas regras aptas a conduzirem a uma ampla e efetiva proteção do consumidor’’ (ALMEIDA, 2008, p.80).

 

1.1 Excludentes de responsabilidade – possibilidade de aplicação do caso fortuito e força maior na seara do Direito do Consumidor

A responsabilidade objetiva adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, para maioria da doutrina, é a que envolve o risco da atividade e não o risco integrado, de acordo com o §3º do art.12, in verbis:

§3º O fabricante, o construtor, o produtor ou o importador só não será responsabilizado quando provar:

I – que não colocou produto no mercado;

II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

De acordo com este dispositivo, muitos doutrinadores, dentre eles Leonardo de Medeiros Garcia e Zelmo Denari, acreditam estar afastada a teoria do risco integral (DENARI, 2007, p.196-200; GARCIA, 2010, p.117-119).

Sendo assim, o fornecedor não se responsabiliza quando o produto for inserido no mercado de consumo sem seu consentimento ou autorização, se este produto for causador de danos ao consumidor, e, na hipótese do inciso II, inexistirá a responsabilidade se houver determinados produtos com inovações tecnológicas da mesma linha daquela oferecida, não podendo o consumidor alegar defeitos pelo simples fato de o produto não possuir a mesma tecnologia, por exemplo. Além disso, existirá a isenção da responsabilidade do fornecedor em caso de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. O Código de Defesa do Consumidor atribui a inversão do ônus da prova ao fornecedor para que seja dada a exclusão de sua responsabilidade, de tal forma que “o defeito é presumido, bastando o consumidor demonstrar o dano e o nexo causal com o produto adquirido”, ou seja, o ônus de provar que o defeito existe é do fornecedor, uma vez que o mesmo é detentor do conhecimento do produto (GARCIA, 2010, p.121, grifo nosso). Será aplicável a inversão do ônus da prova para o fornecedor, ainda, “quando o juiz considera verossímeis as alegações do consumidor, segundo regras de experiência” (DENARI, 2007, p.197, grifo nosso).

É cediço que o Código de Defesa do Consumidor possui uma relação de subsidiariedade e complementariedade com o Código Civil, assim sendo, ocorre o que é conhecido como diálogo das fontes, ou seja, as normas aí inscritas devem ser interpretadas de forma a produzirem um entendimento uníssono, evitando disparidades (SOBRINHO, 2010). O art. 393 do Código Civil trata de excludente de responsabilidade por ocorrência de caso fortuito ou força maior, entretanto o Código de Defesa do Consumidor não elencou essas eximentes da responsabilidade entre as previstas para o caso de fato do produto ou serviço, como já aduzido. Surge aí um questionamento pertinente: seriam caso fortuito ou força maior causas de excludente de responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto ou serviço, no âmbito do Direito do Consumidor?

Para o doutrinador Luiz Antonio Rizzatto Nunes, caso fortuito e força maior não excluem a responsabilidade do fornecedor, ao que explica:

“Se a hipótese é de caso fortuito ou de força maior e em função disso o consumidor sofre acidente de consumo, o mal há de ser remediado pelo agente produtor, na verdade o fundamento dessa ampla responsabilização é em primeiro lugar o princípio na Carta Magna da liberdade de empreendimento que acarreta direito legítimo ao lucro e responsabilidade integral pelo risco assumido” (NUNES, 2006, p. 271, grifo nosso).

Luiz Antonio Rizzato Nunes se contrapõe aos fundamentos de Zelmo Denari e Leonardo de Medeiros Garcia, alegando que a “responsabilidade objetiva do fornecedor estabelecida no CDC é de risco integral” (NUNES, 2006, p.270). Como visto, para que se possa aduzir a impossibilidade de exclusão da responsabilidade do fornecedor por ocorrência de caso fortuito ou força maior, faz-se necessário incorporar a ideia do risco integral aplicado à relação de consumo, o que contraria própria disposição do CDC, em seu art.12, §3º e incisos, já esmiuçados anteriormente.

Destarte, há a possibilidade de aplicação do art. 393 do Código Civil no âmbito do Direito do Consumidor por se tratar de risco da atividade, excluindo-se a responsabilidade do fornecedor por fato do produto ou serviço mediante a verificação de caso fortuito ou força maior (ALMEIDA, 2008; DENARI, 2007; GARCIA, 2010).

 

2. CARACTERIZAÇÃO DO CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR NO CASO CONCRETO

Consolidado o entendimento de que o caso fortuito e a força maior excluem a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, ainda que não elencados  no §3º do art. 12 do CDC, conduzir-se-á o presente trabalho na tentativa de conceituá-los, nos moldes do p.u. do art. 393 do Código Civil, in verbis:

 

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Em que pese a divergência de entendimento existente acerca do conceito de tais termos, tem-se, na doutrina mais conservadora, que caso fortuito é o “acontecimento natural”, aquele que deriva da força da natureza, “como o raio, a inundação, o terremoto ou o temporal”, já a força maior ocorre quando observa-se um elemento humano como “a ação das autoridades”, “a revolução, o furto ou o roubo, o assalto”, por exemplo (STOCO, 2011, p.212, grifo nosso). Percebida a diferença abstrata entre os polêmicos termos aqui esmiuçados, importa frisar que em nada se diferenciam quando se trata do efeito que ambos possuem no tocante à responsabilidade, ou seja, “o que é indiscutível é que tanto um como outro estão fora dos limites da culpa” (CAVALIERI FILHO apud STOCO, 2011, p.212). O atual Código Civil, de 2002, em nada alterou a redação já conhecida do Código revogado, de 1916, reforçando a ideia de que caso fortuito e força maior, na realidade, são considerados sinônimos para o legislador, ou seja, na existência de um deles restará afastada a responsabilidade, a menos que haja a expressa previsão em contrário (STOCO, 2011).

Nesse ponto importa mencionar que durante a fase de concepção do produto ou mesmo durante o processo de sua produção, o fornecedor não está coberto pela abrangência da afastabilidade da responsabilidade por ocorrência de caso fortuito ou força maior, pois que nesses momentos, anteriores ao ingresso do produto no mercado de consumo, é dele (do fornecedor) a total responsabilidade por garantir um produto livre de defeitos que possam oferecer riscos à saúde e segurança do consumidor. Entretanto, no momento em que o produto já está no mercado de consumo e observa-se a manifestação de caso fortuito ou força maior, ocorre uma quebra do nexo de causalidade, não havendo mais ligação entre um possível defeito do produto e o evento danoso. Resta, portanto afastada a responsabilidade do fornecedor nesses casos (DENARI, 2007).

Adentrando a delimitação a que se propõe o presente paper, nos casos de assalto[1] nas dependências do estabelecimento comercial, há que se seguir algumas orientações para que se consiga caracterizar a força maior na situação concreta e observável, para fins de afastamento da responsabilidade. Continuando a interpretação do dispositivo citado do Código Civil, observa-se que, em seu parágrafo único, o legislador condiciona a ocorrência do caso fortuito ou força maior ao fato necessário, impossível de se evitar ou impedir. Daí a importância da análise da prova da imprevisibilidade e inevitabilidade do fenômeno fático, como será visto no item a seguir.

 

2.1 Prova da imprevisibilidade e inevitabilidade do fenômeno fático nos casos de assaltos nas dependências do estabelecimento comercial

A prova da imprevisibilidade e inevitabilidade do fenômeno fático constitui fator preponderante para caracterizar a força maior nos casos de assaltos nas dependências do estabelecimento e afastar, por consequência, a responsabilidade do fornecedor perante os danos decorrentes. Esclarece-nos Ênio Santarelli Zuliani que a imprevisibilidade no caso fortuito, em sua faceta externa, exclui a culpa e o nexo causal, como por exemplo “a queda de um raio sobre o ônibus em movimento, provocando desastre e danos”, para cujo evento danoso não concorreu a empresa de transportes, ficando afastada a sua responsabilidade. Para o citado autor, diferente é o caso em que há o fortuito interno, ou seja, quando a empresa sabe que determinada linha é perigosa, ocorrendo diversos assaltos rotineiramente, pelos quais se torna responsável devido à “falha no gerenciamento da escala de movimentação dos ônibus” ou porque não foram observadas medidas de segurança eficazes (ZULLIANI apud STOCO, 2011, p.212). Lembra-nos, entretanto, Caio Mário, que a imprevisibilidade não é de todo condição sine qua non para configurar o caso fortuito ou força maior, pois que em alguns casos observa-se que o evento, ainda que previsível, reveste-se de inafastabilidade por conta de sua “força indomável e irresistível” (apud STOCO, 2011, p.213). Portanto a imprevisibilidade deve estar sempre aliada à inevitabilidade para a exclusão da responsabilidade na ocorrência de caso fortuito ou força maior.

Nesse sentido, completa-nos o entendimento a colocação do Senhor Ministro Eduardo Ribeiro, em seu voto durante julgamento do REsp nº 120.647/SP, que assim observou:

“[...] o que realmente importa não é a imprevisibilidade, mas a inevitabilidade. Mesmo essa última é de considerar-se dentro de certa relatividade. O acontecimento pode ter-se como inevitável, tendo-se em conta o que normalmente seria possível exigir-se” (STJ – 3ªT. – REsp 120.647/SP, j. 16/03/2000, grifo nosso).

Outrossim, fica claro que até a inevitabilidade fica condicionada à verificação daquilo que no caso concreto seria razoável exigir-se para evitar um evento danoso, ainda que previsível. No citado julgado, o Senhor Ministro Eduardo Ribeiro, que foi o relator e teve seu voto acompanhado com unanimidade, considerou que não seria razoável exigir-se que em postos de lavagem houvesse segurança armada, ainda que fosse previsível o acontecimento de roubos de automóveis devido à consciência de que violências como essa ocorrem com certa frequência em grandes cidades. Portanto, no caso em apreço, foi afastada a responsabilidade do fornecedor por configuração de força maior: “a culpa exclusiva de terceiros é bastante para fazer não responsável o fornecedor de serviços” (STJ – 3ªT. – REsp 120.647/SP, j. 16/03/2000).

Diferente situação se observa quando o assalto se dá nas dependências de instituição bancária, que, conforme pontuou o Senhor Ministro Antonio Carlos Ferreira em recente julgamento de Recurso Especial, tem o “dever de segurança em relação aos clientes e usuários”, não tendo fatos dolosos de terceiro (roubo e assalto) o condão de afastar a sua responsabilidade, não sendo, portanto, admitida a alegação de caso fortuito ou força maior nesses casos devido à “previsibilidade de ocorrência de tais eventos na atividade bancária” (STJ – 4ªT. – Ag Reg nos EDcl no REsp 844186/RS – j. 19/06/2012). A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu por unanimidade que a instituição financeira responderá pelo evento danoso ocorrido nas dependências de estacionamento oferecido aos seus clientes e não se desonera por haver contratado empresa especializada para realizar a segurança do local: serão solidárias tanto a instituição bancária quanto a empresa contratada na reparação dos danos causados.

Mister pontuar que o estacionamento para clientes configura-se num serviço acessório prestado pelo fornecedor para oferecer comodidade e captar novos clientes, por isso é considerado “dependência” do estabelecimento principal, responsabilizando-se o fornecedor por danos ocorridos neste local[2]. Entretanto, conforme o julgado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial, não haverá responsabilidade do fornecedor no caso de assalto em estacionamento, se esta for a atividade fim e não um serviço acessório oferecido aos clientes, ou seja, um estacionamento particular e autônomo, não vinculado à agência bancária na qual o cliente houvesse sacado significante valor (STJ – 3ªT. – REsp 1.232.795 – SP, j. 02/04/2013). Neste julgado, a relatora, Senhora Ministra Nancy Andrighi, entendeu não ter o estacionamento independente a responsabilidade pela guarda pessoal de seus clientes, respondendo somente nos casos de roubo de veículos ali depositados:

“Em situações como esta, o estacionamento se responsabiliza apenas pela guarda do veículo, não sendo razoável lhe impor o dever de garantir a segurança do usuário, sobretudo quando este realiza operação sabidamente de risco, consistente no saque de valores em agência bancária” (STJ – 3ªT. – REsp 1.232.795 – SP, j. 02/04/2013).

Mais trabalhoso é quando não há parâmetros tão seguros quanto à razoabilidade ou não da exigência de segurança armada no estabelecimento comercial, como no caso de shoppings centers e supermercados. Exempli gratia, no caso do Recurso Especial nº 582.047/RS, o Tribunal a quo havia considerado que o roubo à mão armada sofrido em estacionamento de supermercado não ensejaria a responsabilização do fornecedor uma vez que a guarda de veículos não é a atividade-núcleo desse tipo de estabelecimento, ficando caracterizada a força maior. Já a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conheceu e deu provimento ao recurso, acompanhando o voto do Senhor Ministro Relator Massami Uyeda, que julgou não poder o estabelecimento eximir-se da “responsabilidade civil decorrente de assaltos violentos aos consumidores”,  pois tem o dever de zelar pela segurança de seus consumidores, ainda que no estacionamento oferecido de forma gratuita (Recurso Especial nº 582.047 – RS, 2003/0152697-5, da Terceira Turma do STJ, 17/02/2009, voto do relator). Em suas próprias palavras, pondera o supracitado Ministro:

“É certo que, em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto, a empresa deverá assumir o dever de velar pela segurança do estacionamento e pela integridade física dos seus usuários. Por essa razão, revela-se descabida a intenção da empresa de desonerar-se dessa incumbência, a pretexto de caso fortuito ou de força maior. Com efeito, o proveito financeiro indireto obtido pela empresa atrai-lhe o correspondente ônus de proteger o consumidor de eventuais furtos, roubos ou latrocínios” (Recurso Especial nº 582.047 – RS, 2003/0152697-5, da Terceira Turma do STJ, 17/02/2009, voto do relator, grifo nosso).

Percebe-se, pois, que somente mediante a análise criteriosa da situação concreta, caso a caso, será possível verificar a inevitabilidade do evento danoso, ainda que previsível, para então afastar a responsabilidade civil do fornecedor por configuração de  força maior nos casos de assalto nas dependências de estabelecimento comercial, cuja vítima seja cliente, protegido pelo Código de Defesa do Consumidor.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao examinar o Capítulo IV do Título I do Código de Defesa do Consumidor, que trata da qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos, especialmente no que toca à responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, prevista nos arts. 12 ao 17, verificou-se que consiste na proteção do consumidor a eventuais danos decorrentes de acidente de consumo, com a finalidade de garantir a incolumidade físico-psíquica do mesmo, visando proteger sua saúde e segurança na utilização de produtos ou fruição de serviços potencialmente nocivos ou perigosos. A responsabilidade objetiva prevista pelo CDC é um dos mecanismos que visam suprir a vulnerabilidade do consumidor, a exemplo da inversão do ônus da prova para o fornecedor.

Observou-se, no decorrer da construção deste paper, a discussão na doutrina quanto à aplicação ou não das excludentes de responsabilidade previstas no art. 393 do Código Civil no âmbito do Direito do Consumidor, ainda que não estejam expressamente previstos o caso fortuito e a força maior dentre as eximentes de responsabilidade elencadas no §3º do art. 12 do CDC. Nada obstante as divergências apontadas, constatou-se que a ocorrência de caso fortuito ou força maior podem excluir a responsabilidade do fornecedor por fato do produto ou do serviço, porquanto a responsabilidade adotada pelo CDC envolve o risco da atividade e não o risco integral, como pensam aqueles que defendem a não exclusão da responsabilidade com base no disposto na citada norma do Código Civil.

Como entendimento adicional, pode-se perceber que a exclusão da responsabilidade do fornecedor por caso fortuito ou força maior, nos casos de fato do produto ou serviço, depende de demonstração da quebra do nexo de causalidade, desconectando um possível defeito inerente ao produto do evento danoso ocorrido, o qual deve ser necessário, ou seja, impossível de se evitar ou impedir.

Isto posto, conduziu-se análise de diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça tratando de casos de assalto ocorrido nas dependências de estabelecimento comercial, mediante a qual constatou-se que a imprevisibilidade deve estar sempre aliada à inevitabilidade para restar afastada a responsabilidade do fornecedor na ocorrência de força maior. Ou seja, ainda que previsível o evento danoso há que se observar a exigibilidade ou não de conduta diversa por parte do fornecedor, diante do caso concreto estudado. A força maior afastará a responsabilidade se for verificada a quebra do nexo causal entre o dano e o serviço prestado, mediante análise da atividade fim daquele estabelecimento, que definirá, portanto, a abrangência da responsabilidade do fornecedor pelo evento danoso.

 

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[1] Entende-se pelo termo assalto a prática de roubo mediante grave ameaça ou violência à pessoa, nos moldes do art. 157 do Código Penal (STOCO, 2011).

[2] Em conformidade com a Súmula 130 do STJ.