ANÁLISE DA DESPENALIZAÇÃO NO ÂMBITO DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO*                                                                                                  

Jéssica Gaspar Miranda**

                                                                                            Luciana Ericeira de Paiva** 

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a despenalização no âmbito do sistema processual penal brasileiro, demonstrando os pós e os contras da adoção dessa alternativa. Demonstrar-se-á algumas medidas despenalizadoras utilizadas no Brasil, fazendo uma comparação com as de outros países, como os Estados Unidos e a Itália. Dentre essas medidas, será analisada a técnica do dilema do prisioneiro enquanto aplicação da Teoria dos Jogos, os institutos da transação e da suspensão condicional do processo da Lei dos Juizados Especiais Criminais, a delação premiada e os institutos da plea bargaining, do guilty plea e do nollo contedere. 

PALAVRAS-CHAVE:

Despenalização. Medidas alternativas. Sistema processual penal.

Introdução

O tema abordado neste trabalho tem significativa importância sob a ótica do processo penal: uma análise jurídica da despenalização no âmbito do sistema processual penal brasileiro. Para melhor entendimento do assunto, foi o mesmo disposto em tópicos, sobre os quais se discorreu, enfrentando a questão, de início, com o conceito de despenalização.

Em continuidade ao quanto proposto, abordou-se a teoria dos jogos, traçando um relato histórico, sua definição para, em seguida, falar sobre o dilema do prisioneiro, levando em conta a aplicação da teoria dos jogos na esfera jurídica.

Como não poderia deixar de ser, objetivando assentar a importância da questão tratada, foram examinados os institutos despenalizadores brasileiros na realidade dos Juizados Especiais Criminais, ocasião em que se estudou a transação penal e a suspensão condicional do processo.

O próximo tópico (delação premiada) levou aos dois últimos: os institutos despenalizadores no Direito Comparado e a indagação sobre as medidas despenalizadoras serem ou não uma evolução no sistema penal.

Como ocorre em todo trabalho, buscou-se mostrar os caminhos trilhados, tendo em vista os fins de política criminal a serem alcançados quando se trata da despenalização.

Por fim, registra-se que a abordagem aqui produzida não visou exaurir o assunto ou apresentar uma obra pronta, até porque ele é complexo, mas contribuir para a discussão que se travará a partir dos pontos colocados como indispensáveis para o conhecimento da matéria.

 

1 Da despenalização

A criminalidade é uma consequência da realidade social, não tendo, pois, como desaparecer. O que ocorre é apenas a sua modificação no tempo e no espaço, em quantidade e qualidade, acompanhando as variações sociais e estruturais do ser humano.

Atualmente, vive-se na era da globalização, onde o tempo passa demasiadamente rápido e, juntamente com ele, os comportamentos, que correm o risco de serem normatizados como ilícitos penais, colocando em questão a eficácia do sistema penal, visto que há um alargamento no âmbito de incidência do campo penal a partir desses comportamentos que vão surgindo em passos acelerados nos dias de hoje; é o chamado processo de inflação penal, isto é:

[...] percebe-se que o direito penal atual, devido ao processo de alta demanda criminalizadora, fruto do ingresso de novas formas de violação aos bens jurídicos (conflitos coletivos e transidividuais), padece de uma inflação legislativa e resulta na perda dos limites substanciais entre ilícitos penais e administrativos (CARVALHO, p. 82).

Destarte, houve a necessidade de se criar alternativas para minimizar os problemas enfrentados pelo  sistema penitenciário, que se encontra desestruturado e a beira da falência (se já não está falido). Dentre essas alternativas, há aquela que sustenta a abolição do sistema penal, fundamentada no entendimento de que a justiça criminal só nasceu para distribuir atormentações e seu desaparecimento “não faria falta na sociedade moderna, dando lugar a ajustes espontâneos realizados pela própria comunidade, estimulando-se o respeito mútuo e a solidariedade” (MACHADO, 2006, p.69), visão que parece mais utópica do que prática − pelo menos em relação à realidade das sociedades contemporâneas.

Há, entretanto, aqueles que defendem a despenalização do sistema penal, que consiste em transferir as intervenções sobre determinados comportamentos para outras modalidades de controle social, diferente da justiça penal. Não se confunde com a descriminalização que é a retirada da repressão penal em condutas que a sociedade não julga mais como cabíveis para o sistema penal, nem a nenhum outro tipo de controle social. Na despenalização “as condutas continuam sendo criminosas, somente sendo punidas de uma maneira diferente, alternativa” (MENEZES, 2008, p. 09).

A despenalização não objetiva a impunidade dos criminosos, fazendo com que o infrator não “pague” pelo crime cometido, mas, verdadeiramente:

[...] adotar institutos ou penas e medidas substitutivas ou alternativas, de natureza penal ou processual, que visam a, sem rejeitar o caráter ilícito da conduta, dificultar ou evitar ou restringir a aplicação da pena de prisão ou pelo menos, diminuir sua incidência de aplicação (MACHADO, 2006, p. 75)

E dentro dessa conjuntura, surgiram medidas despenalizadoras no sistema penal brasileiro, a fim de tentar substituir as penas privativas de liberdade por outras sanções, como exemplos: a transação penal e a suspensão condicional do processo, introduzidas pela Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) e influenciadas por alguns institutos despenalizadores dos Estados Unidos e da Itália. O Direito Penal Brasileiro passou a adotar, pois, tendências mundiais.

Ademais, tem-se nessa mesma ótica da mínima intervenção estatal e de substituição ou redução da pena de prisão, o instituto da delação premiada e a técnica do dilema do prisioneiro enquanto aplicação da Teoria dos Jogos.

Cada uma dessas medidas despenalizadoras possui suas especificidades, como será analisado ao longo deste.

 

2 Teoria dos Jogos:

2.1 Relato histórico:

A teoria dos jogos é um dos ramos da matemática cujo desenvolvimento se deu no Século XX, em especial após a Primeira Guerra Mundial.

Émile Borel foi o primeiro matemático a vislumbrar o sistema sobre o qual se consolidou a teoria dos jogos, no entanto não é considerado o pai da teoria por não ter desenvolvido com profundidade suas idéias.

O título de pai da teoria dos jogos foi dado a John Von Neumann, por ter sido ele o primeiro a sistematizar e a formular com profundidade os principais arcabouços teóricos sobre os quais a teoria foi construída. Embora tenha publicado trabalhos desde 1928 sobre a teoria, apenas em 1944 sua obra maior, Theory of Games and Economic Behavior, escrita em conjunto com Oskar Morgenstern, foi publicada. Neste livro formularam diversos conceitos básicos da teoria dos jogos.

Outro grande nome dessa teoria, depois de John Von Neumann, foi o norte-americano John Forbes Nash, que trouxe novos conceitos e revolucionou a economia com a sua idéia de Equilibrium. Nash, aluno de Neumann em Princeton e pesquisador da RAND, rompeu com o paradigma econômico que era pressuposto básico da teoria de Neumann e da própria economia como um todo.

Enquanto Neumann partia da idéia de competição, John Nash introduziu o elemento cooperativo na teoria dos jogos.

A idéia de cooperação não é totalmente incompatível com o pensamento de ganho individual, já que para Nash, a cooperação traz a idéia de que é possível maximizar ganhos individuais cooperando com o adversário. Não é uma idéia ingênua, pois ao invés de introduzir somente o elemento cooperativo, traz dois ângulos sob os quais o jogador deve pensar ao formular sua estratégia: o individual e o coletivo, que contém aquela noção de que se todos fizerem o melhor para si e para os outros, todos ganham. (ALMEIDA, 2003, p. 03)

2.2 Definição:

Para Fernando Barrichelo, estudioso desse assunto, a teoria dos jogos é o “estudo das tomadas de decisão entre indivíduos quando o resultado de cada um depende das decisões dos outros, numa interdependência similar a um jogo”.

Essa teoria visa estudar cenários onde existem vários interessados em otimizar seus próprios ganhos. Nela, o resultado – ganho ou perda – de uma decisão, depende obrigatoriamente da movimentação de dois concorrentes, tornando a tomada de decisão muito mais complexa. Por isso, é necessário saber quais são os ganhos ou perdas de cada combinação e identificar quais os incentivos mais atraentes para seu adversário, sabendo que ele está imaginando quais são os seus ganhos para também tomar uma decisão.

Devido a isso, tem-se que a melhor recomendação quando se trata de teoria dos jogos é: antes de tomar qualquer decisão, deve-se colocar no lugar do concorrente e imaginar qual seria a reação dele levando em consideração as ações e incentivos existentes. Do mesmo modo ele também agirá e este é um ciclo sem fim onde você pensa que ele pensa que você pensa que ele pensa...

No mesmo sentido, para Fábio Portela Lopes de Almeida, a teoria dos jogos é, em linhas gerais, “a análise matemática de qualquer situação que envolva um conflito de interesses, com o fito de descobrir as melhores opções que, dadas certas condições, devem conduzir ao objetivo desejado por um jogador racional” (2003, p. 05). E tem como seu objeto de estudo o conflito, “que pode ser entendido como a situação na qual duas pessoas têm que desenvolver estratégias para maximizar seus ganhos, de acordo com certas regras pré-estabelecidas” (2003, p. 01).

Em síntese, a teoria dos jogos é isso: entender que sua decisão não é independente e que todos os ganhos dependem da combinação de muitas ações até chegar a um equilíbrio, pois a base da teoria é colocar-se na posição do outro e raciocinar o que você faria em cada situação, chegando, desse modo, a tomar a melhor ação estratégica.

2.3 Dilema do prisioneiro considerando a aplicação da Teoria dos Jogos no âmbito jurídico:

O chamado “Dilema do Prisioneiro” foi apresentado na Universidade de Princeton, em 1950, pela primeira vez, como um exemplo da teoria dos jogos, e “tem sido usado para estudar o problema da cooperação entre indivíduos, grupos e nações em diversos tipos de problema”. (FURTADO, 2002, p.02)

Foi originalmente criado por Albert Tucker, a partir de elaborações prévias de Merrill Flood e Melvin Dresher.

Sua descrição clássica é a seguinte: dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para condená-los, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros confessar (trair o outro) e o outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos, se ambos ficarem em silêncio (colaborarem mutuamente), a polícia só pode condená-los a 1 ano cada um, e se ambos confessarem (traírem) o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia.

Cada prisioneiro decide sem saber a decisão do outro, pois eles não podem conversar e estão separados.

Levando em consideração o exemplo acima exposto, percebe-se que a melhor opção é trair sempre, visto que você não sabe o que seu companheiro dirá, se irá traí-lo ou se irá silenciar. Suponhamos que B escolhe colaborar e A também escolher colaborar, levam os dois 1 ano de prisão, porém, se A trair, ele sai livre; se B escolhe trair e A escolher colaborar, A leva 10 anos de prisão e, se escolher trair, fica apenas com 5 anos.

Na teoria dos jogos, diz-se que trair é a estratégia dominante, ou seja, aquela que apresenta melhores resultados independentemente da decisão do outro jogador.

Contudo, apesar de a melhor estratégia individual ser “trair sempre”, isso não é verdadeiro quando se pensa coletivamente, pois o dilema do prisioneiro é um jogo de soma não-zero. Quando os dois prisioneiros traem, a soma das penas é de 10 anos; quando um trai e o outro coopera, a soma das penas é de 10 anos; porém, quando ambos cooperam, a soma das penas é de 2 anos.

Em síntese, o que se tem nesse dilema é um aparente paradoxo. Por um lado, a melhor opção individual é trair. Contudo, levando-se em conta “ambos” os prisioneiros, a melhor opção é que ambos cooperem.

3 Os institutos despenalizadores brasileiros na realidade dos Juizados Especiais Criminais

Os Juizados Especiais Criminais (art. 60 e ss., da Lei 9.099, de 26.09.1995) foram o marco na reformulação do direito penal pátrio que acompanha a evolução do Estado e das penas, inspirado na política de despenalização e descarcerização (direito penal mínimo) para os crimes de menor potencial ofensivo.

Portanto, esse “órgão” da justiça serve para resolver as pequenas causas com rapidez, de forma simples, sem despesas e sempre buscando um acordo entre as partes.

Com a criação dos Juizados Especiais Criminais, passaram a ser admitidas a conciliação civil (art. 74), a transação penal (art. 76), a suspensão condicional do processo (sursis processual - art. 89) e a representação para os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa (art. 88).

Desses novos institutos introduzidos pelos Juizados Especiais, interessa-nos tecer considerações neste trabalho sobre a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Além desses institutos despenalizadores, falaremos também, nesse tópico, acerca da delação premiada, instituto onde o acusado, no processo penal, tem sua pena diminuída e, por vezes, extinta, quando colabora com a justiça, confessando o crime e entregando seus parceiros.

3.1 Transação Penal

Transação é “consenso entre as partes, é convergência de vontades, é acordo de propostas, é ajuste de medidas etc.; enfim, tudo o mais que se queira definir como uma verdadeira conciliação de interesses.” (ZANATTA, 2001, p. 47).

A transação penal, da forma como foi disciplinada pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, consiste na proposta de substituição da pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos como forma de evitar a instauração da ação penal.

A aceitação da proposta de imediata substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos é o resultado de concessões mútuas das partes – o Ministério Público transige com sua pretensão punitiva e o acusado com o seu direito de tentar se vê absolvido, com o escopo de evitar a formação do processo. (GRINOVER FILHO; FERNANDES; GOMES, 1996, p. 91).

A transação é proposta pelo Ministério Público e será homologada pelo juiz, não importando na caracterização de reincidência, nem maus antecedentes, registrando-se a aplicação da penalidade apenas com vista a impedir que o autor do fato, no período de 5 anos, se veja novamente alcançado pela medida benéfica.

A oportunidade para a apresentação da proposta de transação é a da audiência preliminar, logo que frustrada a conciliação, podendo ser renovada essa proposta no início da audiência de instrução e julgamento.

Tem como requisitos objetivos e subjetivos os previstos no art. 76 da Lei nº 9.099/95, e se assemelha com o nollo contedere, instituto do direito italiano, que será abordado mais adiante.

3.2 Suspensão condicional do processo

O art. 89 da Lei dos Juizados Especiais Criminais instituiu a suspensão condicional do processo como forma de evitar a aplicação da pena, suspendendo o desenrolar do processo com eventual possibilidade de extinção da punibilidade, caso o acusado atenda a determinadas exigências em certo período de tempo.

Ada Pellegrini Grinover (1996, p.189), conceituou tal instituto da seguinte forma:

Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, o Ministério Público, por força do art. 89 da Lei n° 9.099/95, ao oferecer a denúncia, pode propor a suspensão condicional do processo, desde que o acusado preencha alguns requisitos legais.

Portanto, o que se tem aqui é a paralisação do processo, com potencialidade extintiva da punibilidade, caso todas as condições acordadas sejam cumpridas, durante o período de prova.

A suspensão condicional do processo é ato bilateral, só pode ocorrer em ação penal pública ou ação penal privada subsidiária da pública e depende da aceitação da proposta feita pelo Ministério Público. Essa aceitação cabe ao acusado e seu defensor, porém nada impede que o acusado não aceite os termos da proposta e faça outra. E tudo é feito de forma oral, por isso é necessária a presença do juiz.  Aqui, ao Ministério Público cabe propor, ao acusado aceitar, ao juiz suspender.

Por fim, são requisitos de admissibilidade da suspensão condicional do processo a inexistência de processo em curso, a inexistência de condenação anterior por outro crime e a presença dos demais requisitos do art. 77, do CP, que são: que o condenado não seja reincidente em crime doloso e que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício.

4 Delação Premiada

Esse instituto está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde as Ordenações Filipinas. Foi inserido em nosso direito em janeiro de 1603, vigorou até o advento do Código Criminal de 1830 que o extinguiu, e retornou ao nosso direito mais recentemente através de diversas leis espaças sob a justificativa de ser parte da política criminal do Estado.

Atualmente está prevista nos seguintes diplomas: Lei dos Crimes Hediondos, Lei do Crime Organizado, Código Penal (art.159, 4º - extorsão mediante seqüestro), Lei de Lavagem de Capitais, Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas e Lei Antitóxicos.

Nesse instituto, o acusado no processo penal é, de acordo com Damásio E. de Jesus (2005, p.01), incitado pelo Estado a contribuir com as investigações, confessando sua autoria e denunciando seus companheiros com o fim de obter, ao final do processo, prêmios como, por exemplo, algumas vantagens na aplicação de sua pena, ou até mesmo a extinção da punibilidade.

Uma vez aceitando a proposta de cooperar com a elucidação dos fatos, o réu abre mão de seu direito ao silêncio e à ampla defesa, assegurados pela Constituição Federal, trai seus companheiros, e se beneficia da sua própria perfídia ao obter uma atenuação em sua pena.

Para Rafael Boldt (2005, p.04), delação premiada é:

A possibilidade que tem o participante ou associado de ato criminoso de ter a sua pena reduzida ou até mesmo extinta, mediante a denúncia de seus comparsas às autoridades, permitindo o desmantelamento do bando ou quadrilha, ou ainda facilitando a libertação do seqüestrado, possível no caso do crime de extorsão mediante sequestro cometido em concurso de agentes.

Ainda na mesma linha, para Nucci:

Delação premiada é a denúncia, que tem como objeto narrar às autoridades o cometimento do delito e, quando existente, os co-autores e partícipes, com ou sem resultado concreto, conforme o caso, recebendo, em troca, do Estado, um benefício qualquer, consistente em diminuição de pena ou, até mesmo, em perdão judicial. (1999, p.213)

Esse instituto está presente em vários lugares do mundo, como nos Estados Unidos (Plea Bargaining – que será estudado no próximo tópico), na Itália, na Alemanha e na Espanha, e vem sofrendo, no Brasil, várias críticas, devido a sua inegável carga moral e ética (incentivo à traição), e por ser visto como incoerente perante o nosso Estado Democrático de Direito, além de que o legislador brasileiro não se preocupou em estabelecer nenhum regramento de ordem processual para a delação premiada, o que cria dificuldades e incertezas, principalmente na solução de questões práticas como o procedimento a ser utilizado e a valoração dos elementos de provas trazidos aos autos pelo colaborador. (PEREIRA, 2009, p. 176)

 

5 Os institutos despenalizadores no Direito Comparado

Antes da Lei n° 9.099/95, vigorava no ordenamento jurídico brasileiro a obrigatoriedade, em todos os casos, da propositura da ação penal em observância ao princípio da legalidade. Porém, baseado no art. 98, inciso I, da Constituição Federal, referida lei criou os Juizados Especiais Criminais que constituíram institutos despenalizadores do sistema penal. A maioria desses institutos tem como origem o Direito anglo-saxão, mais precisamente o Direito norte-americano.

Dentre os institutos despenalizadores, o mais expressivo é aquele que manifesta explicitamente a discricionariedade do promotor americano, qual seja: a plea bargaining. Através deste, há uma negociação entre o membro do Ministério Público e a defesa (o réu), com o intuito de obter a confissão de culpa do acusado em troca de uma acusação por delito de menor gravidade ou por uma redução na quantidade de crimes, ou seja, “permite amplo acordo entre o acusador e o acusado sobre os fatos, a qualificação jurídica e a pena” (MACHADO, 2006, p.56).

A plea barganing possibilita ao acusado a oportunidade de confessar seu crime e a redução do seu tempo preso, sob o regime da pena privativa de liberdade, por isso, não é assustador quando se afirma que “através desse instituto são solucionados nos Estados Unidos 80% a 95% de todos os crimes; inquéritos feitos por uma amostragem significativa de promotores revelaram que estes consideram cerca de 85% dos casos da sua experiência como adequados a uma solução de  plea barganing” (FIGUEIRA JUNIOR; LOPES, 1997, p.495).

No Direito norte-americano, observa-se, também, a presença de outro instituto despenalizador, a saber: o guilty plea. Este ocorre quando, definida a atuação de um crime e passada a fase preliminar de averiguação, permite-se ao acusado se pronunciar a respeito de sua culpabilidade (possibilita-se ao arguido o pleading). Se o acusado confessar a prática do crime (pleads guilty), declarando-se culpado, há a manifestação da resposta da defesa (plea) e, assim, o juiz se pronunciará quanto à data para a sentença, que será proferida sem a necessidade de processo. No caso do acusado não confessar (not guilty), há a obrigatoriedade de se instaurar ou prosseguir com um processo penal.

Além dos Estados Unidos, países como Inglaterra, Holanda e Áustria utilizam institutos semelhantes ao da plea bargaining e do guilty plea nos seus ordenamentos jurídicos. Na Itália, também, há um instituto denominado de patteggiamento que possibilita um acordo entre o Ministério Público e o acusado na tentativa de solucionar o processo de forma mais rápida, sem a necessidade do procedimento ordinário.

Tal instituto do ordenamento italiano consiste em o Ministério Público, com autorização do acusado, ou vice e versa, propor ao juiz, até a abertura dos debates, que se aplique sanções substitutivas nos casos previstos, ou da pena aplicável para o crime quando  essa não superar dois anos de reclusão ou detenção, só ou conjuntamente com a pena pecuniária, considerando-se as circunstâncias e diminuída de até um terço (MENEZES, 2008, p.17)

Ainda no ordenamento jurídico italiano existe o instituto do nollo contedere que é uma forma de defesa do acusado através do qual este não contesta a imputação que lhe foi atribuída, não assume sua culpa e nem manifesta sua inocência. Este instituto muito se assemelha aos institutos despenalizadores brasileiros estabelecidos pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, haja vista que “no sistema da Lei 9.099/95, a aceitação da imposição imediata da pena, não corresponde a qualquer reconhecimento de culpabilidade penal (e, aliás, nem mesmo de responsabilidade civil)” (GRINOVER, 2001, p. 41). O instituto italiano nollo contedere é utilizado pelo acusado que prefere a via do consenso à do litígio.

6 Medidas despenalizadoras: uma evolução no sistema penal?

A despenalização, marcada ao longo deste, através do dilema do prisioneiro enquanto aplicação da Teoria dos Jogos, dos institutos da Lei dos Juizados Especiais, e daqueles utilizados pelos Estados Unidos e Itália, bem como pela delação premiada, desde o início de sua introdução no sistema penal sempre foi alvo de inúmeros questionamentos.

 Alguns reacionários se manifestam contrários à ela, argumentando que tal medida gera insegurança à população, desequilibrando as estruturas sociais através do temor. Advogam que os institutos despenalizadores ferem a cidadania do indivíduo, de modo que, o Estado nega sua prestação jurisdicional com o discurso descabido de aliviar o Judiciário, acomodando os operadores (juízes, promotores e defensores) do Direito que ficam ociosos.

Alegam, ainda, que o crime tem um custo altíssimo para a sociedade, com a estrutura institucional e a manutenção do sistema judicial, policial e penitenciário, devendo o Estado garantir um retorno dessas finanças ao punir os criminosos e, não, simplesmente argumentar que a aplicação da pena proporciona prejuízos econômicos elevados.

No entanto, o que se precisa entender é que o Direito Penal possui como corolário a subsidiariedade e a intervenção mínima na função de tutela da sociedade, ao passo que, apenas os bens e interesses sociais considerados mais relevantes pela comunidade são por ele protegidos. Ao Direito Penal lhe é reservado a tarefa de intervir somente nos casos cujas demais esferas do ordenamento jurídico se mostrarem ineficazes, insuficientes. No entanto o que se verifica:

[...] é uma indevida apropriação do direito penal pelo Estado, que o utiliza como poderoso instrumento de política populista, capaz de dar resposta rápida e muitas vezes ilusória as situações aflitivas emergentes e que causam clamor público, ou seja, tem-se o uso do direto penal como instrumento de política de segurança pública, em flagrante contradição com a sua natureza subsidiária. Tal fato é, como visto, uma característica do direito penal na era da globalização, havendo uma deliberada política de “criminalização”, antes que de “ descriminalização” ou de despenalização (MACHADO, 2006, p. 75).

 E é, por isso, que no atual panorama estrutural do ordenamento jurídico, faz-se necessário substituir, em determinados casos, o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública pelo da verdade real, pelo da verdade consensual, bem como, instituir medidas despenalizadoras para substituir a pena privativa de liberdade, por alternativas de sanção, devendo-se utilizar aquela apenas como último recurso. O Judiciário encontra-se cada vez mais sobrecarregado, onde os processos são cada vez mais numerosos, os procedimentos são cada vez mais lentos e as leis são cada vez em maiores quantidades, dificultando a atividade do sistema penal.

As medidas despenalizadoras associadas a uma intervenção penal mínima do Estado é uma alternativa para desafogar o cárcere no Brasil, reduzindo de maneira radical a pena de prisão. A pena privativa de liberdade, sempre que possível, deve ser substituída, ficando limitada apenas aos condenados por crimes graves, perigosos e que possuem raríssimas chances de recuperação. Uma vez que, diversos criminalistas já constaram que as probabilidades de ressocialização na prisão são ínfimas e não há redução da criminalidade, ao contrário, há o aumento da impunidade. Em outras palavras:

[...] penas privativas de liberdade, ao contrário do que se imaginou, não trouxeram e não trarão os resultados desejados quer na contenção das condutas delituosas, quer na ressocialização ou recuperação dos delinqüentes e não bastasse, o custo da sua execução é altíssima para o erário, eis que, consoante as estatísticas divulgadas, o preso no Brasil tem um custo médio mensal de três salários mínimos e meio. Daí, a necessidade de se buscar novas alternativas às penas privativas de liberdade (PAIVA, 07).

A despenalização aparecereu, então, para promover o consenso, interessando-lhes mais a ressocialização do infrator e a reparação dos danos sofridos pela vítima, do que a manifestação punitiva do Estado.

No que tange os institutos depenalizadores no Direito comparado – que influenciaram decisivamente os institutos dos Juizados Brasileiros −, encontram-se, também, divergências quanto a sua aplicação. Alguns juristas americanos acreditam na desigualdade que se reflete nas figuras do plea bargaining e guilty plea haja vista a superioridade do Ministério Público na realização das negociações, isto é:

[...] os acordos são efetuados nos gabinetes dos promotores ou nos corredores no tribunal, sem a sindicância da publicidade, os resultados concretos dependem exclusivamente do poder das partes em confronto, ficando a promotoria com o domínio efetivo do processo, pois muitas vezes a defesa desconhece, ou encontra-se insegura ou incerta em relação aos aspectos decisivos para a negociação. Assim, é notório o risco de injustiça, de flagrante desigualdade entre as partes, de falta de publicidade e de lealdade processual (MENEZES, 2008, p.16).

Porém, a realidade é outra. Os números demonstrados no tópico acima (80% a 95% de todos os crimes nos Estados Unidos são solucionados por plea bargaining; inquéritos feitos por uma amostragem significativa de promotores revelaram que estes consideram cerca de 85% dos casos da sua experiência como adequados a uma solução de  plea bargaining”)  e a constatação de que mais de três quartos das condenações nos Estados Unidos são realizadas por meio das “pleas”, evidenciam que na prática a utilização desses institutos está funcionando.

Ademais, os referidos institutos proporcionam celeridade processual frente à burocratização dos procedimentos judiciais, obtendo de forma mais rápida a prestação da pretensão postulada pelo cidadão.

Considerações finais

É necessária a mudança de mentalidade dos operadores jurídicos em relação ao Direito Penal e Processual Penal. Não se pode acomodar à simplicidade de reproduzir mecanicamente os padrões estabelecidos nas leis, sem que haja um acompanhamento constante da evolução da sociedade. As resistências serão evidenciadas quanto às mudanças, mas é imprescindível vencê-las.

A despenalização é uma idéia nova que está sendo implementada ao longo do tempo na realidade do sistema penal brasileiro, pretendendo solucionar o sobrecarregamento das penitenciárias, com a tentativa de se buscar alternativas de sanções ou de se reduzir as penas dos infratores frente à tradicional imposição da pena privativa de liberdade. Quer-se incorporar, na prática jurídica, o consenso, o acordo, a negociação, beneficiando tanto o Judiciário quanto os litigantes e a comunidade em geral.

Não se pretende com a despenalização descartar o processo judicial, uma vez que, existem demandas que requerem obrigatoriamente a intervenção do Estado, mas em outras situações, o Poder Judiciário pode apenas determinar um estado de descontentamento social, provocando, com o passar do tempo, a deslegitimação do Estado frente à sociedade.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. A teoria dos jogos: uma fundamentação teórica dos métodos de resolução de disputa. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-mediacao-e-negociacao vol2/terceira-parte-artigo-dos-pesquisadores/a-teoria-dos-jogos-uma-fundamentacao-teorica-dos-metodos-de-resolucao-de-disputa/>. Acesso em: 23 out. 2010.

 

BARICHELLO, Fernando. O que é teoria dos jogos: uma breve introdução intuitiva. Disponível em: <http://www.teoriadosjogos.net/teoriadosjogos/list-trechos.asp?id=24>. Acesso em: 30 ago. 2010.

 

BOLDT, Raphael. Delação premiada: o dilema ético. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7196>. Acesso em: 27 out. 2010

FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias; e LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Comentários à lei dos juizados especiais cíveis e criminais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

 

FURTADO. Geraldo.  O dilema do prisioneiro e a crítica ao reducionismo. Disponível em: http://biologiaevolutiva.wordpress.com/2009/12/08/o-dilema-do-prisioneiro-e-a-critica-ao-reducionismo/. Acesso em: 23 out. 2010.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FILHO, Antonio Magalhães Gomes; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.

 

 _______________________________. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 

JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal brasileiro.  Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 30 ago. 2010.

 

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* Paper apresentado à disciplina Direito Processual Penal II, ministrada pelo professor José Cláudio Cabral Marques, para a obtenção da segunda nota.

** Alunas do 7º Período do Curso de Direito Noturno da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB).