Fico tonto. Meu corpo já não é mais controlado por mim mesmo. Preciso de ajuda, mas não consigo gritar. Ninguém me ouve. Vejo braços por cima de mim. Lágrimas caem sobre o meu peito. Quero abraçar esses braços.
Me sinto um grão de areia, na verdade eu acho que me sinto menor ainda. Entendo que já não tem volta. Passo a me conformar que meus dias terminarão ali, em poucos minutos. Minha visão escurece. Sinto meu pescoço enfraquecer ainda mais. Ouço alguns gritos e choros, ainda que sejam muito vagos e longínquos.
Já não sinto mais nada. Não vejo. Não respiro. Não ouço. Era inevitável.
Por um breve momento volto a ver, apenar ver, ou melhor, imaginar. Passam filmes no que eu não sei se ainda posso chamar de mente. Eu e minha filha vamos ao parque. Abraços e risos tornam o verde das gramas ainda mais vivo. Volto ainda mais no tempo e me vejo casando. Bons tempos. Maria Lúcia dizendo lindamente que estaria comigo na riqueza e na pobreza. Malu fala ?sim?. Eu sorrio, contente.
Ainda mais atrás na linha do tempo, eu me formo. Agora tenho um diploma. Sou um economista. Danço e me divirto com todos os meus amigos. Todos sorriem. Todos dançam. Todos bebem. Todos estão entusiasmados com a ideia de agora terem o terceiro grau completo.
Volto mais um pouquinho. Ganho minha primeira bicicleta. Não quero parar de andar nunca mais. Preciso saber como conduzi-la sem as rodinhas, por isso treino, e treino muito. Sem que eu veja, meu pai entorta um pouco uma das rodinhas. E lá vou eu para mais um dia de treinamento, sem ao menos perceber que estou ganhando equilíbrio. Com coragem, ranco as duas rodinhas com um martelo e tento andar na minha melhor amiga.
Caio várias vezes, mas me levanto e continuo a tentar. Finalmente consigo conduzi-la perfeitamente com apenas duas rodas. Fico feliz e me emociono.
Nunca imaginei que um dia lembraria dessa cena, mas lembrei. De repente fica tudo claro. Uma luz muito forte me cega por alguns segundos. Tento respirar mas não consigo. Choro de desespero. Como num passe de mágica, consigo respirar. Pessoas olham pra mim e sorriem.
Me colocam no colo de minha mãe. Me sinto quente, aconchegado. Lágrimas surgem nos olhos da mulher que me carregou em seu ventre por 8 meses e 13 dias. Sinto vontade de rir. Ela me faz tão bem. Sinto uma corrente de amor passar pelo meu corpo. Quero rir, mas ainda choro com medo de se parar, não conseguir respirar.
Volto a não ver mais nada. Quero mais filmes. Me esforço para buscá-los dentro de mim, mas não consigo. Alguma coisa muito forte me diz que me restam 5 segundo. E eu só agradeço pela vida que tive oportunidade de ter e nela conseguir ser feliz.