A tutela penal do porte de entorpecentes para consumo próprio: O Estado-pai protegendo o indivíduo de si mesmo.[1]

 

Andre Crescenti Abdalla Saad Helal  

Sumário: Introdução; 1. O paternalismo jurídico na esfera penal; 2. A legislação anti-drogas e a criminalização do porte de entorpecentes para consumo; 3. A saída: o modelo europeu de “redução de danos”; Conclusão; Referências

 

Resumo: Este paper propõe-se a analisar a problemática da legislação anti-drogas, tecendo um olhar crítico sobre a atuação paternalista do Estado, defendendo a tese de que não faz parte da esfera penal a tutela da conduta do usuário de drogas.

Palavras-chave:  Paternalismo Jurídico; Paternalismo Direto; Legislação Anti-drogas;

 

Introdução:

            O Direito Penal, pelo seu caráter extremamente invasivo, deveria ser uma área cautelosa do Direito. A intervenção penal, segundo o princípio da ultima ratio do Direito Penal, deveria ser a última forma de controle social, sendo acionada somente quando qualquer outro ramo do ordenamento jurídico fosse incapaz completamente de tutelar certa situação.

            Primeiramente, demonstraremos que nem sempre é assim que acontece. O caráter subsidiário do Direito Penal se dissolve em condutas da sociedade “nervosa” na qual estamos nos tornando, e a tutela penal tem passado por cima de princípios que são o cerne da sociedade na coletividade: a liberdade e a privacidade. E o Estado-Pai age de forma a “proteger” os seus súditos, mascarando uma auto-proteção de situações com as quais o Poder Público não procurar lidar de maneira melhor: é o paternalismo jurídico.

            Ademais, procura-se inserir a discussão da criminalização repreensiva do uso e da posse para o uso de entorpecentes e a invasão do Estado na esfera privada e na autodeterminação do indivíduo.

1 – O paternalismo jurídico na esfera penal:

Em um Estado liberal, como o Brasil, a priori, cabe a cada cidadão decidir sobre sua própria vida, baseado no princípio da autonomia, segundo o qual o individuo pode agir de acordo com sua vontade, desde que não atinja terceiros.

Sendo assim, o direito penal deve ser o apenas o ultimo instrumento de resolução de conflitos, deve ser o ultimo ratio do controle social, não cabendo a ele interferir nas escolhas pessoais, quando essa não prejudicar interesses alheios (von Hirsch, 2007).

Paternalismo penal é a intervenção do Estado na liberdade pessoal, que utiliza leis penais para proibir determinadas condutas, com o fim de proteger o indivíduo de seu ato lesivo, contra a vontade da pessoa, para evitar-lhe um mal. Denomina-se paternalismo direto aquele em que o Estado impede o agente de fazer mal a si mesmo, e paternalismo indireto o impedimento de conduta de terceiros que auxiliam o agente na autolesão.

2 – A legislação anti-drogas e a criminalização do porte de entorpecentes para consumo:

            A lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, o Sisnad, que prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, além de definir crimes.

            O uso de drogas é uma auto-lesão, que afeta apenas o usuário, e por essa razão não deveria ser considerado conduta criminosa, mas caracteriza-se como tal pela legislação brasileira. A referida lei 11.343/06, no seu artigo 28, tipifica o crime de porte de drogas e prevê as penas para o mesmo:

Art. 28 – Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II- prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa de curso educativo.

            Em seus parágrafos posteriores, alei especifica mais a tutela penal da posse de entorpecentes, deixando a cargo do juiz definir se a quantidade encontrada era destinada ao consumo próprio ou ao tráfico ilegal de drogas, cuja pena é a privativa de liberdade, mais invasiva ainda. Giacomolli (2008) afirma que esse viés é  extremamente subjetivo, pois a diferenciação entre tráfico e consumo, pelo juiz, é feita através de critérios e elementos que são extremamente conflituosos entre si. Os antecedentes, que segundo a lei também  podem dizer se o agente é consumidor ou traficante, é um retrocesso na modernização e humanização do direito penal, é uma volta ao direito penal do autor, em detrimento do direito penal do fato. Ainda segundo Giacomolli esse tipo de criminalização de conduta é  exemplo típico do paternalismo jurídico no Direito brasileiro:

“Ao punir o consumo, a lei está punindo o desejo, o sentimento do indivíduo, o direito de disponibilidade de si próprio. Ao admitirmos que o bem jurídico tutelado é a saúde pública, desaparece a razão da punição do usuário. Isso porque o consumo pode atingir a saúde própria, a saúde individual, mas não a saúde pública e nem a saúde coletiva.”

Portanto, o a proteção do bem jurídico da saúde pública serve como lastro para que o Estado tutele o porte de drogas como crime, mas uma análise mais atenta por trás do tipo penal leva à conclusão de que o fato incriminador, o de portar e consumir drogas, não é de fato lesivo à saúde pública, já que esta diz respeito a problemas sanitário que vão de encontro ao interesse de toda a sociedade. Por mais que seja um problema de interesse geral da sociedade, o consumo de drogas não afeta a saúde de todos. A argumentação falaciosa de que a repreensão ao usuário é feito tendo em vistas a manutenção da saúde pública deu ao crime do artigo 28 da lei 11.343/06 um viés inverso do que a o da maioria dos crimes do Direito Penal brasileiro: procurou-se um bem jurídico para apoiar-se o tipo penal de repreensão às drogas.

Outra questão que deve ser levado em consideração é de que se é, de fato, o Direito Penal que deve se ocupar com o problema social que representa as drogas.

A fundamentação que levou o legislador a incriminar o porte de drogas da forma que é previsto na Lei Antidrogas objetiva, em geral, a prevenção do uso, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas, e a proibição e repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.  A respeito do delito previsto no artigo 28 da legislação antidrogas, o próprio ato de portar a droga já é considerado conduta criminosa, e a justificativa para tanto é a que o usuário, ao portar a droga, mesmo que para ela ainda não tenha destinação  definida, pois o Direito Brasileiro, ao adotar a teoria dos Estados Unidos de tolerância zero na guerra as drogas, admite que o mero ato de ter no bolso, ter consigo qualquer quantidade de drogas, sem que seja provado que a sua destinação é mesmo o consumo já representariam, segundo Vicente Greco Filho (2008) um “perigo social”,  pois o consumo já é fator decisivo na difusão social dos entorpecentes ilícitos, razão pela qual a tutela penal desse tipo de conduta seja legítima. Não é o que pensamos.

            Ademais de fundada a afirmação de que, a longo prazo, a difusão do uso de entorpecentes pode de fato vir a afetar a saúde pública, e portanto colocando em questão o seu caráter perigoso-social, a tutela penal é abusiva demais para que seja dela o encargo de lidar com a situação do consumo de entorpecentes ilícitos. Pelo princípio da ultima ratio do Direito Penal, segundo Rogério Greco (2011, p 120), o Direito Penal deve ocupar-se somente onde as diversas outras formas de controle social não foram exitosas, pois a intervenção penal é mais intensa e agressiva. O apregoamento da Guerra às Drogas não é de fato a maneira mais eficiente de lidar com o problema.

            Levando agora em consideração os efeitos da criminalização para os usuários, Souza (2011) afirma:

“O crime de porte de drogas para uso pessoal fere os princípios constitucionais da igualdade e da intimidade o vida privada das pessoas. O princípio da igualdade é vilipendiado eis que há uma injustificada distinção legal de tratamento para os usuários de drogas lícitas ou ilícitas. A intimidade ou vida privada vê-se cerceada em razão da imposição de referenciais morais pelo Estado aos cidadãos com  a vedação estudada.”

            Ao defender que a criminalização do uso de entorpecentes fere o princípio constitucional da isonomia, o autor sinaliza com veemência o fato de que as drogas que são proibidas são selecionadas dentre outras de potencial entorpecente tão grande ou maior que são permitidas, uma atitude arbitrária dos órgãos de controle de drogas e medicamentos.

            Quanto ao sistema de penas, o mesmo autor afirma:

“Quanto ao ponto de vista do sistema de penas, tampouco se revela adequada a punição criminal em foco. A retribuição a quem apenas se autolesiona é injusta. A prevenção geral negativa vê-se neutralizada pelo irracionalismo atrelado a um vício (portanto uma questão médica) e pela pouca intimidação de resposta legalmente adotada. A prevenção geral positiva mostra-se ilegítima na medida em que tenciona à mera conformação de consequências. A prevenção especial negativa, com seu ideal de neutralização do delinquente, é inadequada na hipótese em questão, pois a autolesão perpretada consiste em uma opção pessoal ou algo de teor médico (vício). Por fim, a pretendida ressocialização mostra-se como absurda ingerência estatal em uma conduta de foro íntimo.”(Grifo nosso)

            A pena, pois, por mais que não seja privativa de liberdade, é falha no que diz respeito aos seus objetivos de ressocialização, retribuição, prevenção geral negativa e positiva. É um ato insensato do Estado tentar punir o usuário de entorpecentes ilícitos através do sistema penal.

3 – A saída: o modelo europeu de “redução de danos”:

            O que se defende aqui não é a mera descriminalização do porte e consumo de entorpecentes, mas sim uma adequação da tutela estatal no que concerne a esse tipo de fato social. A retirada desta conduta da tutela penal, destipificando a posse e o uso de entorpecentes, seria um primeiro grande passo para que houvesse a humanização da prestação jurisdicional e da proteção estatal nesses casos.

            O modelo Europeu de combate às drogas, diferente do war on drugs norte-americano adotado pelo Brasil, prevê a descriminalização pacífica e gradual do uso de entorpecentes, com o intuito de educar, antes de tudo, o usuário. Segundo Carvalho (2006) o modelo adotado pela Europa prega pela redução de danos causados aos usuários e a terceiros, utilizando-se de serviços sociais de prestação à sociedade, tais como a entrega de seringas devidamente higienizadas, a demarcação de locais adequados para consumo, para que não haja uma exposição exacerbada dos usuários, controle do consumo, assistência médica especializada, dentre outros,  seria o correto enfoque para o problema. Esse modelo propugna pela descriminalização gradual das drogas através de uma  política de controle, qual seja, regulamentando o uso dos entorpecentes e também através de iniciativas educacionais do Poder Público para a conscientização de que a droga é um problema de saúde, motivo pelo qual é tratada desta forma, e não na esfera penal.

            Todavia, o Poder Público brasileiro anda longe de atitudes que condizem com essa forma de controle. Segundo Souza Ferreira (2009, p 185) no Brasil, há décadas que nem ao menos campanhas de esclarecimento a respeito do uso de entorpecentes são feitas por iniciativa do governo federal. A prevenção deu lugar à repressão e as consequências disso têm sido catastróficas.

            Giacomolli (2008, p 193) também é adepto da política de redução de danos para o caso brasileiro:

“Na atual situação brasileira, a saída possível, urgente e necessária é a conscientização, a informação sobre todas as drogas, lícitas e ilícitas, bem como uma política de redução de danos, com esclarecimento à população, de tratamento ao dependente. Mas este não é o norte seguido pela política sanitária e nem pela política criminal. Portanto, está na hora de enfrentar o problema sem preconceitos, com competência e seriedade, abandonando-se a estratégia do braccio armato e da war on drugs.”.

Observadas a ineficácia da política de luta armada contra as drogas, e o sucesso da forma com que a Europa, dentre outros, lida com o problema, é cabível a aplicação do modelo de redução de danos no Brasil, considerando também que esse tipo de política, por ser menos repreensivo e não punir o usuário pela sua conduta de, voluntariamente, usar entorpecentes que são tóxicos para si próprio, não configura uma violação aos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade e nem ao princípio da autodeterminação do individuo.

Conclusão:

            O paternalismo jurídico é a ação do Estado que visa impedir que o indivíduo cause mal a si próprio. O paternalismo jurídico penal é a criminalização desse tipo de conduta. A modalidade direta de paternalismo penal é a repreensão do próprio agente em se autolesar, enquanto a indireta é a proibição de que alguém ajude outrem a se causar alguma lesão.

            Analisou-se que no Brasil ocorrem alguns casos de paternalismo no Direito Penal, dentre eles o da problemática das drogas, condensado na legislação anti-drogas, a Lei n. 11.343/06, que considera crime portar e consumir entorpecentes ilícitos. Aferiu-se que o Estado usa da desculpa de que as drogas são um problema de saúde pública para combatê-las como se o fizesse em nome da coletividade. Entendeu-se que o consumo de drogas faz parte da intimidade do indivíduo enquanto este não causa mal a terceiros, e na esfera privada deve ficar, sendo ilegítima a intervenção penal estatal nos casos de consumo e posse para consumo de drogas ilícitas.

            Por último, demonstrou-se que o modelo europeu de redução de danos no combate às drogas é mais eficiente por não reprimir de forma invasiva a ação do indivíduo, mas sim por procurar o caminho da conscientização de que as drogas fazem mal para a saúde particular apenas, educando os usuários e oferecendo condições para que minimizem os riscos à sua saúde. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006. Revista brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 71, p. 181-205, mar./abr. 2008. Ed. Revista dos Tribunais.

GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de drogas anotada: Lei n. 11.343/06. 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2008.

GRECO,  Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 8ª ed. Ed. Impetus. Niteroi, 2011.

ORSINI MARTINELLI, João Paulo. Paternalismo Jurídico-Penal. 2010. 297 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

_________.Paternalismo na lei de drogas. Disponível em: <http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=15#_ftn4>. Acesso em: 31.nov.2011

SOUZA, Luciano Anderson de. Punição Criminal ao porte de entorpecentes para uso próprio e irracionalismo repressivo: uma ainda necessária reflexão. Revista brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 88, p. 167-186, jan./fev. 2011. Ed. Revista dos Tribunais.

VON HISRCH, Andrew. Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente?  Revista brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 67, p. 12-27, jul./ago. 2007. Ed. Revista dos Tribunais.



[1] Paper apresentado para a disciplina de Direito Penal Especial I, ministrada pelo Prof. Ms. Cleopas Isaías, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.