Ingrid Rayssa Araújo Barros

Priscila Mororó[1]

Sumário: Introdução. 1 Contrabando x descaminho 2. Fundamentos do Princípio da Insignificância. 2.1 A exclusões da tipicidade 3. A inaplicabilidade do princípio da insignificância ao crime de contrabando 3.1 O valor mínimo fixado em lei e o bem jurídico tutelado 3.2 A aplicação pela Jurisprudência do princípio da insignificância ao contrabando. Considerações Finais.

RESUMO

Neste artigo iremos compreender em que consiste o tipo penal e qual o bem jurídico tutelado do art. 334 do Código Penal, que trata do contrabando e descaminho. Além entender por que há uma distinção quanto ao crime de descaminho, em relação à aplicação do mínimo reputado pela lei para que sejam tipificados esses crimes, fazendo uma exploração do que se trata o principio da insignificância e sua incidência nessas duas tipicidades.

PALAVRAS-CHAVE: Principio da Insignificância. Contrabando. Descaminho.

 

            INTRODUÇÃO

A jurisprudência vem aplicando o principio da insignificância ao crime de descaminho e contrabando de modo de divergente, em razão do bem jurídico tutelado. Enquanto alguns aplicam o princípio tanto para o descaminho quanto para o contrabando, outros só aplicam ao descaminho.

O que ocorre é que no contrabando o objeto jurídico tutelado não se resume ao interesse arrecadador do fisco, mas sim na garantia do controle da entrada de determinadas mercadorias pela administração pública. Logo, visar um mínimo, como está na redação da Lei 10.522/02 que fixou o valor de R$ 10.000,00 na qual se aplica ao descaminho, para a tipificação da conduta de contrabando, não estaria de acordo com sua finalidade.

 Nesse sentido, a proposta do artigo é salientar que o bem jurídico tutelado não é o tributo, mas sim a saúde pública ou similar, razão pela qual não se poderia afirmar a inexpressividade da lesão jurídica ou a mínima ofensividade da conduta em virtude do pequeno valor do tributo, requisitos necessários à configuração da insignificância.

  1. 1.      CONTRABANDO X DESCAMINHO

Apesar de sinônimas, estando elencadas no mesmo art. 334 do Código Penal, há um distanciamento entre elas quando se estuda a fundo qual o bem jurídico realmente tutelado por cada uma das condutas.

Ao realizar a leitura do dispositivo, nota-se que se emprega o termo “ou”, o que dá a entender que são duas condutas diferentes, sejam elas contrabando, no caráter de importar ou exportar mercadoria proibida, e o descaminho, na qual se ilude, no todo ou em parte o imposto devido pela entrada, saída e consumo de mercadorias.

Damásio (2009 apud, NOSCHANG,2006) denota que:

“No sentido jurídico, a expressão contrabando quer dizer importação ou exportação de mercadorias ou gêneros cuja entrada ou saída do País é proibida, enquanto o termo descaminho significa fraude no pagamento de impostos e taxas devidos para o mesmo fim (entrada ou saída de mercadorias ou gêneros). A diferença entre contrabando e descaminho reside em que no primeiro a mercadoria é proibida; no segundo, sua entrada ou saída é permitida, porém o sujeito frauda o pagamento do tributo.”

            Dessa maneira, nota-se que o bem jurídico tutelado não é o mesmo nas duas condutas. Pois enquanto uma está relacionada com a proibição de determinada mercadoria no território brasileiro, a outra se relaciona com a permissão de sua entrada, porém há um desvio de pagamento. Assim, o contrabando não se caracteriza como um ilícito meramente fiscal.

Portanto, o contrabando se “trata de um crime pluriofensivo, pois agride, ao mesmo tempo, o erário público, a higiene, a moral ou a segurança pública, sendo idôneo ainda a prejudicar a indústria nacional.” (NOSCHANG, p.185, 2006) Enquanto isso, o descaminho representa um ilícito de natureza essencialmente tributária, pois há uma relação entre o fisco e o contribuinte.

  1. 2.      FUNDAMENTOS DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

2.1 EXCLUSÕES DE TIPICIDADE

Há uma adequação típica quando a conduta do agente se amolda perfeitamente ao tipo legal do crime. Assim, a tipicidade se caracteriza pela subsunção do tipo penal sobre aquela conduta. Porém, é necessário levar em consideração a relevância do bem jurídico tutelado.

“A palavra Tipicidade deriva do alemão tatbestand, que, por sua vez, provém do latim facti species. Significa o enquadramento de um fato nos elementos descritivos de um delito, contido na legislação penal. A conduta humana que se amolda à definição de um crime, preenchendo todas as suas características, é típica.” (LIMA, apud, NOSCHANG, p.178, 2006)

            Sabe-se que além do sentido formal, a tipicidade pode ser verificada em seu caráter material. Assim sendo, a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens importantes existentes na sociedade. “O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha dos bens a serem protegidos, assevera que nem todo e qualquer bem são passíveis de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa importância.” (GRECO, 2011, p. 159) Da mesma maneira, pode se entender aqui o principio da lesividade que também afasta a incidência de uma lei penal sobre condutas que, embora sejam desviadas, não afetam um bem jurídico relevante. Ainda que o legislador tenha elaborado os tipos penais, seu âmbito de abrangência será de acordo com uma interpretação.

            Rogério Greco (2011) traz um exemplo na qual uma pessoa imprudente, ao fazer uma manobra em seu carro, acaba por encostar-se à perna de um pedestre causando um pequeno arranhão. Analisando o sentido formal da tipicidade, a conduta foi culposa, houve um resultado, e nexo de causalidade entre elas, e há um tipo penal abstrato que prevê essa conduta. Entretanto, ao verificar a tipicidade material, apesar da integridade física ser tutelada pelo Direito Penal, nem toda e qualquer lesão será objeto, somente aquelas que tenham alguma importância significativa.

Desse modo, o fato que não tem importância, que tem caráter de bagatela, tem o principio da insignificância adotado. É no caso concreto que iremos aferir se o bem tem condão de ser protegido ou não pelo Direito Penal. Não deve haver a preocupação com questões insignificantes, pois, apesar de subsumir-se formalmente a norma, o fato pode ser irrelevante e não ser objeto de reprovação social.

  1. 3.      A INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO CRIME DE CONTRABANDO

3.1 O VALOR MÍNIMO EM LEI E O BEM JURÍDICO TUTELADO

De acordo com o art. 20 da Lei nº 10.522/02, a União dispensa executar os créditos fiscais em valor inferior ao patamar de R$ 10.000,00. Por analogia, aplica-se esse valor mínimo para a o ajuizamento para execuções ficais pela Fazenda Pública, ao quantum de insignificância do art. 334, Código Penal, “pois o que é insignificante para fins fiscais, não pode ser relevante para fins penais”. (GOMES, Luiz Flávio, apud. p. 195) Ainda que se encontrem no mesmo artigo, já observamos que o crime de contrabando e descaminho possuem bem jurídicos tutelados diferentes.

Destarte, a valoração dos créditos ficais estaria ligada tão somente ao crime de descaminho, pois este tem sua natureza essencialmente tributária, na qual se há a proteção do erário público. Enquanto ao crime de contrabando, não se pode reduzir o seu bem jurídico a um cunho tributário, visto que a entrada de mercadorias proibidas no território brasileiro podem colocar em riscos outros bens jurídicos.

Sabe-se que o Direito Penal só deve se preocupar com ações que representam um ataque importante ao bem jurídico em tutela, logo este não se preocupa com bagatelas, algo norteado pelos princípios da insignificância, da intervenção mínima, da lesividade e da fragmentariedade, onde, dentro da gama de ações e bens jurídicos, só se limita a castigar ações mais graves.

Desse modo, no âmbito do crime de descaminho, que trata da proteção do Estado quanto aos pagamentos dos impostos devidos decorrentes da introdução ou da saída de mercadorias do país, às vezes não gera o interesse em buscar a devida tutela penal devido o valor mínimo exigido para que se proceda a execução penal.

“No que tange a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho, nossos tribunais solidificam sua posição no seguinte pressuposto: além da conduta ser, em certas ocasiões, socialmente tolerada, principalmente pelo índice de desemprego no Brasil, também não atingirá de forma efetiva e relevante o bem jurídico protegido, no caso o erário, quando o valor do tributo iludido for mínimo.” (NOSCHANG, p. 194, 2006)

                Entretanto, há um posicionamento de inaplicabilidade desse princípio também ao contrabando. Diferentemente do descaminho, que é crime tributário, o bem jurídico tutelado não é tão somente o erário, mas também, como ensina Regis Prado (apud. ELIAS, 2006) “a proteção a saúde pública, a moralidade pública, no que se refere à proibição de importação de mercadorias proibidas e à tutela do produto nacional, que é beneficiado com a barreira alfandegária.”

             Ainda que se utilizem também do princípio da insignificância ao crime de contrabando, pela entrada de mercadorias de pouca expressão econômica, há uma diferença entre o ingresso irregular de mercadorias estrangeiras, na qual se pauta o descaminho, em que enseja a aplicação do princípio da insignificância devido a quantidade ínfima do valor sonegado, para o ingresso de mercadorias proibidas, que irão ferir não apenas a administração pública e a tutela do interesse econômico estatal.

            Dessa maneira, não se pode afirmar a inexpressividade da lesão jurídica ou o mínimo ofensivo da conduta, em virtude do pequeno valor do tributo mínimo aludido.  Por exemplo, a entrada de cigarro como sendo a mercadoria importada desacompanhada de regular documentação, sabe-se que é intrínseco ao produto sua periculosidade, devido os danos que causam a saúde. Havendo a elisão de impostos desse produto, não haveria somente uma lesão a atividade arrecadatória do Estado, mas também a outros interesses como a saúde pública e a atividade industrial interna. Nesse sentido, não se aplicaria o mínimo disposto do art. 20 da Lei 10.522/02, pois não se trata de um delito puramente fiscal.

            Diante do exposto, a tipicidade material do crime de contrabando deve ser analisada de forma diversa do descaminho, logo que se entende que não se aplicaria nessas hipóteses o princípio da insignificância, visto que o desvalor da ação seria maior.

3.2 A APLICAÇÃO PELA JURISPRUDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO CONTRABANDO

            Na jurisprudência, alguns aplicam o princípio da insignificância tanto ao contrabando quanto ao descaminho, enquanto outros aplicam só ao descaminho, excluindo o contrabando em razão do bem jurídico tutelado.

            De fato, quando ao descaminho, é pacifico que incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem R$ 10 mil.

           

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO (ART. 334, CAPUT, DOCP). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REQUISITOS PRESENTES. DELITO PURAMENTE FISCAL. TRIBUTO ILUDIDO EM VALOR INFERIOR A R$ 10.000,00 (DEZ MIL REAIS). ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. ART. 20DA LEI Nº 10.522/02. DISPENSA DA UNIÃO DE EXECUTAR OS CRÉDITOS FISCAIS EM VALOR INFERIOR A ESSE PATAMAR. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. (HC 100942/PR, Min Luix Fux, 09/08/2011)

            Porém algumas decisões tem colocado de forma paralela o descaminho e o contrabando, dando a entender que a aplicação do princípio da insignificância se dá nas duas formas. Assim exemplifica:

EMENTA. PENAL. DESCAMINHO/CONTRABANDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. EXCLUSÃO PARA O CÁLCULO DOS TRIBUTOS DO PIS E COFINS.Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de descaminho, quando o valor do tributo não recolhido é igual ou inferior a R$ R$ 10.000,00 (dez mil reais), patamar esse instituído pela Lei n.º 11.033/04.(  RECURSO CRIMINAL, Nº 0000650-06.2008.404.7118/RS, Des. Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, 27/04/11)

               

EMENTA. PENAL. ESCAMINHO/CONTRABANDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de descaminho quando o valor do tributo não recolhido mostra-se irrelevante, justificando, inclusive, o desinteresse da Administração Pública na sua cobrança.A mesma solução se dará quando do contrabando em caso de proibição relativa, à exemplo de cigarros ou componentes eletrônicos. (ACR 5485 PR 2004.70.01.005485-2, Des. Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, 22/06/10)

               

Mas, salienta-se que uma vez que o objeto jurídico tutelado não se resume ao interesse arrecadador do fisco, mas sim na garantia do controle da entrada de determinada mercadorias pela administração pública, o contrabando não poderia ser objeto da incidência do princípio da insignificância. Nesse sentido, o STJ no julgamento de agravo regimental, entendeu que:

“Em que pese ser entendimento consolidado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça a aplicação do princípio da insignificância à conduta descrita no art. 334 do Código Penal,seguindo orientação do Supremo Tribunal Federal, quando o valor a ser utilizado como parâmetro para sua incidência é o previsto noart. 20 da Lei 10.522/02, ou seja, tributo devido em quantia igualou inferior a R$10.000,00 (vide REsp 1.112.748/TO – representativo da controvérsia), in casu a conduta perquirida na ação penal é de"importar ou exportar mercadoria proibida", não havendo, daí, falarem valor da dívida tributária nos crimes de contrabando.  Assim, a atipia por insignificância da conduta daquele que pratica descaminho, sob o viés do quantum do tributo iludido (no máximo 10 mil reais), não encontra campo de aplicação analógica no crime do art. 334, primeira figura, do Código Penal.” (AgRg no REsp 1325931 RR 2012/0110585-1, Min. JORGE MUSSI, 23/10/12)

Retificando assim o entendimento que no contrabando, não há apenas uma lesão ao erário e à atividade arrecadatória do Estado Portanto, a insignificância em relação ao valor sonegado ser inferior ao fixado em lei, não se aplicaria, por parte da jurisprudência, ao crime de contrabando, pois não é meramente fiscal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS          

Diante do exposto, entende-se que apesar de ambas estarem no art. 334 do Código Penal, há um distanciamento entre elas no que tange o bem jurídico realmente tutelado por cada uma das condutas. Logo, se faz presente uma distinção do porque pode se aplicar o princípio da insignificância em um, de acordo com a Lei 10.522/02, e a impossibilidade da aplicação em outro.

Sabe-se que diferentemente do descaminho, o bem jurídico tutelado do contrabando não é o tributo, mas sim a saúde pública ou similar, razão pela qual não se poderia afirmar a inexpressividade da lesão jurídica ou a mínima ofensividade da conduta.

Portanto, enquanto por um lado se aplica o princípio da insignificância para o descaminho, entendendo por analogia o mínimo valor para que haja a configuração do delito, por outro não ocorre ao contrabando, em razão do bem jurídico resguardado, já que não há apenas uma lesão ao erário e à atividade arrecadatória do Estado, mas a outros interesses públicos.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIAS, Tânia de Sousa. O princípio da insignificância e os injustos contra a administração pública. Rio de Janeiro: Revista Doutrina, 2006. Disponível em: <http://download.rj.gov.br/documentos/10112/751060/DLFE45612.pdf/Revista_61_Doutrina_pg_319_a_337.pdf>  Acesso em 29 de abril de 2013

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 13. ed. v. I Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

NOSCHANG, Édna Marcia Marçon. A descriminalização do crime de descaminho em razão da aplicação do princípio da insignificância. Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, v. 2, n. 1, jan./jun.2006. p.167-205. Disponível em <http://revista.grupointegrado.br/revista/index.php/discursojuridico/article/viewFile/177/70>. Acesso em 29 de abril de 2013

 

   
   


[1] Alunas do 6º período vespertino, do curso de direito da UNDB.