José Souza Martins, em seu livro O poder do atraso, identifica a base da política brasileira, sua origem, a partir da inabilidade brasileira de distinguir o âmbito público do privado.

"(...) no Brasil a distinção entre o público e o privado nunca chegou a se constituir, na consciência popular, como distinção de direitos relativos á pessoa, ao cidadão. Ao contrário, foi distinção que permaneceu circunscrita ao patrimônio público e ao patrimônio privado. Portanto, uma distinção relativa ao direito de propriedade e não relativa aos direitos da pessoa".
(MARTINS, José de Souza; 1994. p.20)

Martins também aponta que as mudanças políticas no Brasil não ocorreram na força de movimentos sociais e por isso, não houve nenhuma transformação abrupta e radical na história da política nacional, mas sim uma continuidade de processos anteriores revestidos por um novo contexto. A cidadania brasileira, por exemplo, não foi conquistada por um movimento social como deveria ter sido, e sim imposta por uma república, pelo populismo de Vargas, por uma elite, e consequentemente não teve uma definição clara na mente popular. Tradicionalmente o brasileiro encara o favor político (clientelismo, mandonismo, oligarquias) como algo natural, pois sem distinguir claramente o público do privado, e o conceito de cidadão, é muito fácil utilizar bens públicos para realizar interesses pessoais, como explicita José de Souza,

"A tradição de um sistema político baseado na confusa relação do patrimônio público e do patrimônio privado tem sido a base a partir da qual essa relação foi dando lugar a procedimentos que começam a ser classificados como corruptos".
(MARTINS, José de Souza; 1994. p.40).

O primeiro sinal histórico de confusão entre a esfera pública e a privada no Brasil, começou com as capitanias hereditárias, o Rei com objetivo pessoal de manter o controle sobre as terras e seu poder, doa bens públicos brasileiros á portugueses que também têm interesses privados sobre o território. Nota-se, então, uma relação contratual na qual não havia outra regra que não fosse a vontade do rei. A questão da terra no Brasil, desde então, é tema polêmico, pois é um bem público que deveria ser usado para os cidadãos, no entanto é subordinada á interesses individuais e capitalistas.

Essa sombra sobre os conceitos de público e privado continuou durante o clientelismo que utilizava bens públicos a favor de interesses privados de poder. O mesmo acontece com patrimonialismo e o mandonismo, sendo que esse último ameaça diretamente a questão da cidadania, que abordaremos a seguir. Certamente houve alguma mudança na percepção desses dois conceitos nas últimas décadas, fato sustentado pelo episódio envolvendo o presidente Collor de Melo em que "os acontecimentos que culminaram com o afastamento do presidente tenham sido definidos como corrupção e assim aceitos pela opinião pública". (MARTINS, José de Souza; 1994. p.19). No entanto, Fernando Collor de Melo se candidatou ao Senado em Alagoas pelo PRTB e foi eleito com 44,03% dos votos válidos. (FONTE: O Globo Online). Fernando Collor é um exemplo forte de oligarquia nordestina, sua família é tradicional na política coronelista, e, portanto, não é difícil para ele conseguir conquistar apoio político de outras oligarquias e até do povo, utilizando a mídia, por exemplo.

Então, baseada em concepções morais do tipo tradicional, a política da "troca de favores" no Brasil é legitima, há uma relutância dos brasileiros em enxergar a ilegalidade em atos envolvendo patrimônios públicos á favor de interesses privados. No Brasil, nenhum grupo ou partido político consegue alcançar o poder sem alianças e concessões. O presidente Lula, por exemplo, se não tivesse feito alianças com alguns partidos de direita e amaciado seu discurso, jamais teria alcançado a presidência. Tais alianças, na década de 80, soariam como um absurdo incomensurável. A necessidade de construir laços com diversos grupos políticos no Brasil alcança a extremidade quando, por exemplo, Roberto Jefferson denuncia o governo de pagar uma "mesada" de R$ 30 mil a deputados da base aliada. Depois de toda crise, CPI´s e algumas cassações, muitos dos envolvidos continuam exercendo suas funções impunemente, e a população, que legitima a política brasileira da "troca de favores" e não tem um conceito firme de cidadania, senta-se à mesa dos políticos para comer pizza, afinal, tudo acaba nela mesmo.

A incapacidade dos brasileiros de reivindicarem seus direitos de cidadão se encontra exatamente em não conseguir identificar tais direitos. Na ditadura Militar, por exemplo, foi necessário anos de repressão para que o povo saísse ás ruas. Hoje não é diferente, existe uma minoria mais esclarecida que teve acesso á educação, por exemplo, o movimento "Caras Pintadas" no processo de impeachment do presidente Collor, era formado por estudantes e que, mesmo com investigações mais avançadas, demorou a colocar em prática à vontade de punição, pois demorou a identificar o ato como ilegal. A grande massa brasileira tem apenas o acesso á mídia, toda noção política que eles constroem é a mídia quem alimenta. É a hipótese da agenda setting, a mídia não diz como pensar, mas ela impõe em que pensar.

"(...) agenda setting. Trata-se de uma das formas possíveis de incidência da mídia sobre o público. É um tipo de efeito social da mídia. É a hipótese segundo a qual a mídia, pela seleção, disposição e incidência de suas notícias, vem determinar os temas sobre os quais o público falará e discutirá".
(FILHO, Clóvis de Barros; 1995. p.169).

No Brasil, a mídia além de pautar os temas de nossas discussões cotidianas, ela também tem a força para definir a opinião pública, e consequentemente, nossa ação na sociedade. Segundo Luis Felipe Miguel, nosso modo de agir no mundo está ligado ao nosso modo de entendê-lo, em como construímos uma representação da realidade.

"Nós agimos no mundo de acordo com o que sabemos dele, isto é, de acordo com a maneira como o vemos. A conservação ou a transformação da sociedade depende, em grande parte, dessas representações".
(MIGUEL, Luis Felipe; 1995. p.332).

A mídia, então, é um modo de representação do mundo e consequentemente responsável pela maneira como agimos em nossa realidade. Nota-se, portanto, a função, importantíssima, da mídia, pois tais representações influenciam diretamente na conservação ou na transformação do mundo em que vivemos. No caso da política no Brasil, a construção do papel midíático na política é crucial, pois esta, por conseguir manter ou retirar do poder um representante, ganha um forte poder de barganha, entrando também nessa dinâmica nacional de "troca de favores".

Os laços construídos entre Vargas e a mídia resultaram no populismo e em um presidente denominado "os país dos pobres". É verdade que Vargas foi importante na incorporação do povo na vida política, ele conferiu certo grau de legitimidade ao sistema político ao incorporar camadas populares através da legislação trabalhista e aprovou o voto feminino e dos analfabetos, no entanto, sem a mídia e toda construção simbólica feita em torno do presidente, Vargas jamais alcançaria a aceitação majoritária nacional e implantaria uma ditadura. A mídia ganhava isenções e preferências de Vargas e este ganhava apoio político da mídia e vice-versa, eis um exemplo de clientelismo, também encontrado nos dias atuais.

O brasileiro, então, está inserido em uma dinâmica onde um pequeno depende dos favores de um grande e assim por diante. É uma política extremamente tradicional, antiquada e absurda e enquanto a população enxergá-la como legitima nada poderá ser feito para modificá-la.