Ouro Preto, 20 de abril de 2004.

       Oi Rodolfo, espero que esteja tudo bem contigo. Não estranhe essa carta, você não deve se lembrar de mim, mas logo vou te explicar. Bem Rodolfo, fiquei anos pensando se deveria ou não te escrever, me sentia insegura, mas uma coisa mandava-me escrever, uma força do inconsciente, mesmo você não se lembrando de mim. E esta carta é justamente para isso. 

      Bom, vamos lá, eu já fui vizinha sua, você deve se lembrar, minha mãe era a dona Neide, tinha um sotaque arrastado mineiro. Na época eu e você tínhamos 5 anos, eu lembro que brincávamos o dia inteiro na frente de sua casa. Lembra? Lembro também do necrotério que tem ai no bairro, e o mau cheiro que ele deixava no bairro. Como não tinha seu e-mail, o único meio foi essa carta, e como tudo que eu sabia era seu endereço, isso foi o suficiente.

       Dois anos depois, você não deve se lembrar, meu pai faleceu, e minha mãe resolveu voltar pra Minas Gerais e estamos aqui agora, em Ouro Preto, cidade maravilhosa, cidade histórica. Eu me formei em turismo, mas te falo a verdade Rodolfo, não me sinto à vontade aqui, algo me falta. E nesses dias andei pensando, e resolvi que assim não dá mais pra ser. O que adianta viver e ser infeliz?

       Rodolfo, eu não sei se você está namorando ou casado ou doente, preciso voltar pra te ver, pra rever a cidade que nasci, o meu lugar, e confesso também que sinto uma falta de você, do seu jeito, dos seus cabelos cacheados, das suas piadas bobas.

       Em breve apareço Rodolfo, em breve.

                                                                                                                                                                                                                                                                             

                                               Morrendo de saudades.

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            Rodolfo morava com seu tio numa cidade grande, num bairro distante do centro, onde funcionava um antigo necrotério. O bairro era conhecido pelo cheiro desagradável que exalava do morgue por causa dos corpos em decomposição, que por falta de espaço, eram deixados a céu aberto. Era um odor que entranhava em tudo e que se espalhava feito gás.

            Depois que Rodolfo leu a carta, ele e a deixou no sofá da sala...

            Seu tio sentou no sofá pra assistir sua novela, estranhou aquela folha ali e pensou – Quem é que manda carta nos dias de hoje? - e leu.

            -Quem é essa moça que te escreveu Rodolfo?

            -Você leu a carta tio?

            -Ela estava jogada aqui no sofá.

            -Devo ter esquecido...

            -Então, quem é essa moça?

            -Amiga de infância... Nem lembrava mais dela...

            -Olha ai, enfim apareceu uma mulher pra você, e olha que pensei que isso nunca ia acontecer hein, seu tartaruga.

            -Ela... Ela tá vindo pra cá... Ela já foi nossa vizinha...

            -Como? Se só agora essas outras casas foram construídas? Você passou a infância toda sozinho moleque!

            -Foi antes do tio vir pra cá...

            -Foi? Só se for...

             E Rodolfo disse torcendo o nariz:

            -Esse mau cheiro está insuportável.

            -Todo mundo por aqui já se acostumou, só você que não.

            -Acostumar com cheiro de corpo em decomposição? Nunca me acostumei e nunca vou me acostumar. Nunca vi um necrotério onde deixam corpos ao ar livre por falta de espaço, só nessa cidade mesmo...

        

         Na semana seguinte...

         Rodolfo foi na padaria do bairro.

          -E aí Rodolfo, seu tio me falou que arranjou uma namorada, que bom!

         

         No supermercado.

        -Fala Rodolfo, nem pareço seu amigo.

        -Por quê?

        -Tá namorando e nem avisa a gente?

        

        Na farmácia.

        -Ontem seu tio veio aqui e disse que você está namorando, é verdade Rodolfo?

       

         Até a Jaciara disse oi e sorriu pra ele. Até a Jaciara!

   

         Na loja de discos.

        -Quem diria hein Rodolfo, você com esse jeitão desengonçado conseguiu alguém.

       Andando pelas ruas, Rodolfo sentia-se como se fosse realmente parte dos outros, parte do social, igual aos outros. Sentia um calor no peito e na região do plexo solar de tanta alegria ansiosa. Sentiu-se grande, inflado.

       - Eles sorriram pra mim; notaram minha presença; não passei despercebido; eu mesmo estou até sorrindo, fazia tempo; a Jaciara me cumprimentou! - Rodolfo esqueceu até do mau cheiro do bairro. 

       Um ano se passou...

       Rodolfo e seu tio jantavam sentados no sofá assistindo televisão.

       

       -Rodolfo.

       -Fala tio.

       -E a moça daquela carta, ela não disse que ia vir te visitar?

       -!

       -Uh?

       -Que tem...

       -Ela veio?

       -Até agora...

       -Até agora, se acha que ela vai aparecer ainda? Você é um sonhador, cai na real palerma!

       Rodolfo foi à farmácia, mas ninguém falou nada. Passou na padaria, no mercado, ninguém o notou, se sentiu como uma formiguinha no chão entre os gigantes humanos, por isso evitou ir à loja de discos, prevendo sua solidão entre os outros. Sozinho e aborrecido, voltou a sentir o mau cheiro do bairro, e sentia um aperto no peito.

       - Cheiro podre do caramba – exclamou.

       Voltou pra casa, foi direto pro seu quarto, pra sua escrivaninha.  Ficou ali pensando, pensando, olhando pras paredes mordendo o lábio inferior. 

      - Não vou fazer isso, de novo.

      Levantava, andava em círculos e depois voltava a se sentar. Passava os dedos nos lábios, cofiava a barba. Pegou uma folha de caderno em branco e a pôs na escrivaninha. Olhava cheio de dúvidas pra folha, a folha olhava muda pra ele. Imaginava palavras na folha, imaginava os sorrisos sociais, Jaciara. Mordia mais os lábios com os dentes cheios de indecisão. 

      - Mas eu vou escrever o que agora? Vou fazer isso de novo?

     Pensou no sorriso quente da Jaciara, nos comentários aconchegantes dos outros e pegou uma caneta. E sorrindo pra imagem do sorriso da Jaciara que ele trazia em seu arquivo mental, começou a escrever. 

   

                                                                                                       

Ouro Preto, 31 de agosto de 2.005

Olá Rodolfo, não pude ir te visitar pois tive um contratempo...