"Eu não preciso ver-te, sentir-te me conforta e basta"

Muito além docampo dos sonhos, descendo pelo arroio da tristeza, incrustada ao pé da montanha triste da solidão, situa-se uma singela casinha azul-celeste de uma porta pálida e duas janelinhas brancas, cansada de sobrepujar invernos doentes e verões fastidiosos, outonos cinzas e primaveras suplicantes a um alento.

Na pequena varanda onde morre (ou nasce) uma estreita estrada de terra que se perde no horizonte baço do abandono,dormita uma cadeira de balanço cor-de-rosa sobre a qual se senta uma jovem e discreta mulher, palidamente nívea, com os olhos de um castanho lânguido perdidos na distância prima-irmã da saudade, com os pés descalços tateando o gélido chão da angústiasoberana e atroz. Sua terna boca, de lábios levemente arqueados para baixo, engole a saliva seca e angustiante que aguarda a estação das chuvas, a fim de que a cisterna solitária e paciente de seu corpo possa, enfim, transbordar sua alegria oculta .

E a mulher ali permanece, durante todo o tempo, estática como a escultura tétrica de um artista insano marcado pelo álcool e pela dor, mexendo-se tão somente ao cair da noite para acender um pequeno lampião a gás dependurado no teto da varanda, não com o fito de alumiar a noite escura e dormente mas com a missão de servir de alerta, como sinalizador ao navio do regresso, indicando que ainda está ali, e por certo sempre estará, aguardando paciente, reluzente, lutador, acessível aos rumores dos ventos da fé, parco na luz ante a imensidão sombria mas ardente no fogo da esperança que não quer, não pode, não aceita, pois, apagar.

E assim vão girando os ponteiros dos dias, dos meses, dos anos, até que a mulher vislumbra ao longe um ponto negro. Sim, ele vem na direção da casa. Aproxima-se lentamente como que não querendo, de fato, chegar. Encosta, defronte à varanda, um automóvel escuro com insígnias oficiais. Dele sai um homem hirto, empedernido e frio, o mensageiro das desilusões. Entrega, automaticamente, uma missiva oficial, a epístola fatal. Segura na aba de seu chapéu que insinua a circunspecção, menciona um cumprimento formal, retorna ao seu veículo e se vai, com o auto deixando para trás a poeira da realidade e a fumaça da desesperança.

A nossa heroína, com olhar perdido, deposita a carta em um velho baú de madeira sem abri-la, rapidamente, como se a mesma lhe queimasse as mãos, poluísse-lhe o ar ou estivesse pronta a se enterrar em seu coração como o punhal macabro do assassino cruel e louco da donzela a quem chamavam Luz. Com a serenidade dos sofridos e a paciência dos fiéis, retornou ao seu trono de infortúnios perdendo novamente seus olhos no horizonte lúgubre, sem querer pensar, sem buscar saber o que já sabia, aliviando seu espírito solitário na fé que transcende a explicação dos homens.

Muito tempo se passou...

O mundo já não era mais como antes...

Findara-se a guerra que durou cem anos. Um odor de renovação pairava tépido sobre todos os lares da Terra. De sul a norte, de leste a oeste, da saudade ao reencontro, da morte à vida.

Um vento ululante alisava a tez marcada pela vergasta do destino de nossa heroína que, encostada ao espaldar de sua cadeira companheira de uma vida, falecera, enfim, já muito velha, cega, não podendo divisar mais o horizonte de ilusões que fora seu quadro cruel e imutável durante os anos de espera inútil a que se reduziu sua existência; surda ao som da natureza morta; muda na solidão do desencanto.

Morrera muitos anos depois de receber a missiva oficial. Esta foi encontrada dentro do seu já aludido baú de madeira, quando a célebre cadeira de balanço cor-de-rosa, ainda na varanda da casa, cuidava, apenas, dos ossos da nossa querida centenária. A epístola fechada estava como fora entregue, junto a uma foto de um jovem casal feliz, imagem que parecia viva tal era a paz, alegria e sonhos que dela emanavam.

A carta foi aberta. Relatava sobre a morte no campo de batalha do soldado F., com vinte e cinco anos de idade, rogando a um companheiro, em meio a torpedos infames, gritos alucinantes e estertores de agonia, que sua jovem esposa soubesse como ele morrera sussurrando seu nome e o quanto cada segundo vivido no inferno só pôde ser suportado na lembrança do seu amor e no anseio do regresso.

Nossa heroína nunca abriu a carta, não havia qualquer sinal que demonstrasse o contrário.

Faleceu mirando o infinito, a princípio com os olhos do corpo; depois, apenascom o olhar do espírito, à espera do seu amado que, nos recônditos abissais de sua alma, sabia não regressaria jamais. Assim viveu porque era a única forma de permanecer viva. Viveu pela sua perene esperança. Viveu pelo seu imortal amor .

O vento balançava, ainda, a rósea cadeira das ilusões perdidas. A mulher flutuava por sobre uma estreita senda a passar pelo arroio da fé, singrar o campo dos sonhos e admirou, ao longe, no pé da esplêndida e cândida montanha da esperança, um pequeno ponto branco, que foi-se tornando cada vez maior, mais nítido, até que, esfuziante, pôde notar, em formas níveas, uma singela casinha clara, composta de duas janelinhas e uma porta, todas de um azul sublime. Na varanda estava F. com suas roupas de descanso, lindo, livre, com os braços abertos, sentado na cadeira de balanço cor-de-rosa.