2 de outubro de 1900 – Cravinhos. Duas páginas de história esquecida.

O que se sabia é que era corajoso. Sair do Líbano sozinho e rumar para o Brasil apenas com uma carta onde alguns conhecidos recomendavam a nova terra era, no mínimo, loucura. No entanto nunca mais teve contado com parentes. Ninguém sabe quem eram. Do Líbano distante só restaram histórias e um velho passaporte expedido pelo Império Turco Otomano. 

A esperança daquele jovem era achar mais coisas no antigo baú. Enquanto fuçava lembrava de uma histórica de certa carta com o nome da cidade errada, algo meio confuso, não se sabe a pura verdade , pois a língua portuguesa não era bem dominada por aqueles árabes que buscavam melhores condições de vida no Brasil.

O silêncio imperava na casa antiga. Uns na ampla sala falavam muito baixo das antigas histórias, outros na varanda conversavam sobre a herança e o defunto quase que sozinho num canto da sala. O mais inquieto era o jovem curioso procurando não se sabe o quê naquele empoeirado baú.

Quando no meio das traças, restos de livros em inglês, outros em árabe e algumas folhas separadas todas muito amareladas e antigas o jovem limpou a poeira de uma folha com as costas de umas das mãos e com a outra mão limpou o suor que começava a escorrer da testa para o olho, sendo que o sal já fazia o olho esquerdo arder no verão de 35º daquela cidade.

O trem não chegava mais. Com muita dificuldade me comuniquei.Tentei confirmar se havia muitos turcos lá, como éramos conhecidos por aqui. Disseram-me que turcos havia por muitos lugares mas não como eu estava imaginando. Insisti dizendo que dos comércios centrais a maioria dos proprietários eram turcos. O fazendeiro num gesto negativo com a cabeça estranhou. Eu já estava ficando chato para aquele brasileiro meio pançudo  com terno caro e chapéu branco na cabeça. Mas, esforcei-me e mostrei a carta dos patrícios migrados. Pegou-a da minha mão, usou um óculos exclusivo para leitura, fitou-me nos olhos e começou a ler. Silêncio...ouvi: ‘acho que o senhor está indo para o lugar errado. Esse R. Preto não quer dizer Ribeirão Preto e sim Rio Preto. Isso é longe. Lá, pelo que falam, é sertão de Araraquara e nem há ferrovia que chegue naquelas bandas.’

O brasileiro parece que se comoveu,  quando eu, com muito esforço, resumi minha história. Falou que ele morava em Cravinhos,  na próxima estação,  e ali eu podia pernoitar para depois tomar o rumo certo.

A estação estava muito movimentada. Carroças com mercadorias, pessoas gritando, o lugar parecia muito agitado ali próximo a estação. Eu ficava tentando prestar a atenção e o brasileiro às vezes puxava o meu braço: ‘venha gringo, vamos descer a ladeira’. Parecia que era a rua mais movimentada, fazia alguns minutos que aquele brasileiro meio gordo mas ligeiro estava falando comigo, umas coisas eu entendia, outras não, mas sempre consentia com um gesto  positivo com a cabeça. Parece-me que aquela rua tinha um nome em homenagem a república que fora programada a pouco tempo.

Ao descer a rua pude perc....................................................lá em baixo as lavadeiras...........viramos à dir................................... ”

“Droga!” Disse o jovem.

“Meu Deus! Preciso achar outras folhas”  O jovem murmurou...é uma página do diário do meu avô. “Velho filho da p...nunca falou nada...” Aquele jovem não se lembrava mais do avô sendo velado. Em sua mente imaginava o velho a bordo de um trem em 1900, prestes a descer numa tal cidade de Cravinhos próxima a Ribeirão Preto.  “Tenho que achar as outras páginas.” Imaginou o jovem.

Quando os parentes estavam prestes a sentir falta de um dos netos e depois de muitos espirros, mãos cheias de poeiras, chineladas em traças e baratas...outra página. Essa parecia mais conservada, não havia partes rasgadas como a outra. O coração do jovem acelerou.  

“No outro dia cedo, como o prometido pelo brasileiro, eu estava diante de um patrício que já estava aqui há muito tempo. Não lembrava mais do Líbano, era criança quando saiu de lá, mas seu pai confirmava a presença de muitos libaneses nessa tal Rio Preto. E tornou a explicar o itinerário que eu tinha que fazer. ‘Ó’ ele dizia. ‘Araraquara, Ribeirãozinho, Capelinha, Cordão Escuro depois sim – Rio Preto. Muita mineirada viu...povo bom, mas toma cuidado eh.’

Subimos. Eu, o negociante de café que eu conhecera no trem, e já éramos quase amigos, e o velho libanês, que já estava abrasileirado. A tal rua XV de novembro era a mais agitada. Fizemos comentários sobre umas mocinhas bonitas que lavavam roupa no rio que passava na baixada, o riozinho cortava mais o menos o meio da cidade. Parecia que o progresso havia chegado ali de vez. Os dois diziam-me das riquezas que o café trazia e até tentaram me convencer a voltar ali e iniciar um comércio de roupas, como eu pretendia fazer em Rio Preto. 

Justificavam: ‘lá, pelo menos é o que falam, não tem nem ferrovia. O progresso está aqui, você precisa ver Ribeirão Preto, depois de Cravinhos é a cidade que mais cresce, prédios modernos, gente que parece da Europa.”

Mas eu estava decidido a me aprofundar no sertão. E subi a rua prestando atenção no movimento. Notei que já havia um sobrado , outros estavam sendo construídos. Lá em cima da rua, numa praça, o cavalo prometido estava a minha espera. Um negro acompanhado de um homem de meia idade esperavam-me para eu efetuar o pagamento. O velho libanês que eu havia conhecido olhou, questionou e se certificou de que era um bom animal para aguentar a jornada a qual eu estava disposto a fazer. Depois do pagamento efetuado não me deixaram ir embora.

‘Você vai almoça aqui gringo’. Dizia o brasileiro. ‘Antes vamos ver o lançamento da pedra inicial da nossa igreja matriz. Dizem que caberá mil pessoas nela.’    

O almoço saiu tarde, depois que as pessoas chegaram do lançamento inicial da pedra da tal igreja matriz. Enquanto isso, ficamos conversando sobre vários assuntos que envolviam religião, economia e perspectivas para o futuro.

Eu iria sair muito tarde, deram-me uma carta de apresentação para eu me hospedar na fazend.............(essa parte da folha estava ilegível) e depois entre Cravinhos e Araraquara havia um lugar onde eu poderia fazer outro poso para depois chegar a primeira cidade- Araraquara.

Na pracinha próxima à estação houve um tipo de despedida, deu a entender que minha curta presença foi agradável à todos...acho que eu também gostei do lugar. Com certeza ali seria um foco de progresso.

Parti ao cair da tarde seguindo a estrada que parecia nascer naquela praça, o sol estava na altura de minha testa. Pelas contas que fizeram eu iria chegar à Fazenda para pernoitar às 21h. Depois de uns dois quilômetros notei um cemitério do lado esquerdo. Túmulos altos. A tarde vermelha. O chão vermelho  soltava, ao trote do cavalo, uma poeira meio amarela. Cruzei com outro cavaleiro, o qual tirou o chapéu, fez um sinal cristão reverenciando o cemitério  e me acenou com a mão.  Nossa...que por do sol...eu estava indo para o oeste.”

Parece que o jovem voltou a si quando acabou de ler. Logo pensou: “tenho que imortalizar isso.” Pegou uma caneta, sentou-se numa pequena mesa e começou assim: “2 de outubro de 1900 – Cravinhos. Duas páginas de história esquecida.

Alexandre de Freitas, 08/04/2009. Cravinhos-SP.