INCIDÊNCIAS FRAUDULENTAS À RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL NA EXECUÇÃO: da fraude contra credores à alienação de bem penhorado.

 

Francisco Geraldo Matos Santos[1]

Marcus Vinícius Anaice Lopes[2]

 

RESUMO:

A responsabilidade patrimonial pode surgir quando o devedor não cumpre com sua obrigação originária. Desta feita, diante do inadimplemento de uma obrigação, o prejudicado pode pleitear que sobre o patrimônio do devedor recaia a satisfação de seu crédito. Ocorre que o devedor tem utilizado alguns meios fraudulentos para que seu patrimônio não venha ser responsabilizado por seu inadimplemento, eis o objeto de estudo do presente artigo. O objetivo desse texto é discorrer acerca das principais diferenças existentes entre a fraude contra credores, a fraude à execução e a alienação de bem penhorado, bem como, suas consequências jurídicas tanto para a ação executiva (cumprimento de sentença e processo executivo autônomo), como também, para o terceiro adquirente. O artigo foi construído por meio de pesquisa bibliográfica, abordando doutrinadores do direito material, bem como, o processual. Com isso, percebe-se que o terceiro adquirente, embora configurado as mencionadas fraudes, terá direito ao equivalente pago em face do alienante, que se trata, do fraudador, uma vez que o negócio jurídico, conforme o caso, deixará de ser válido ou, se continuar, é ineficaz em relação ao credor exequente.

 

Palavras chave: terceiro de boa-fé; validade; (in)eficácia; ato jurídico; ação executiva.

 

1. INTRODUÇÃO

            Os conflitos levados ao Judiciário para serem solucionados versam sob as mais diversas alegações, ainda mais, quando o assunto é regulado pelo direito processual civil, em que o caráter abrangente é bastante significativo. Diferentemente do Direito Penal, que em razão dos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade, é considerado como de “ultima ratio”.

            Diante dos conflitos apresentados pelo direito processual civil, verifica-se, em sua grande maioria, a configuração de um dano patrimonial e, que por isso, se revestirá em obrigações de dar coisa diferente de dinheiro, fazer ou não fazer e entregar quantia certa.

            Ocorre que, em se tratando de obrigação de dar quantia certa existem meios que o devedor utiliza para se esquivar dessa responsabilidade, quando na verdade, deixou de cumprir um contrato, ou mesmo, o próprio Judiciário, com seu caráter substitutivo decidiu sobre as vontades dos litigantes.

            É nessa conjuntura que se funda o objeto de estudo desse artigo, ou seja, a incidência fraudulenta que o devedor / executado utiliza para burlar que a responsabilidade de seu inadimplemento recaia sobre o seu patrimônio.

            Na verdade, a legislação brasileira apresenta, de modo geral, três hipóteses que esse devedor utiliza com tal intento. Trata-se da fraude contra credores, fraude à execução e alienação de bem penhorado. São três institutos completamente diferentes entre si.

            E essas diferenças que se tornam o grande objetivo desse artigo, pois sobre elas se configura a totalidade de consequências dessas atividades para o processo de execução ou cumprimento de sentença.

            Sendo assim, ao longo desse artigo, o leitor irá compreender qual a relação dessas fraudes para com o processo executivo e o cumprimento de sentença, de modo a entender, a relevância jurídica de cada instituto, e inclusive, a incidência do Direito Penal, como na segunda modalidade específica, uma vez que a fraude à execução é tipificada na própria legislação penal brasileira.

            O presente artigo foi construído por meio de uma pesquisa bibliográfica, caracterizando-se pela utilização de materiais já disponíveis na doutrina jurídica brasileira, bem como, na interpretação dos dispositivos legais aplicáveis à temática. Foram utilizados doutrinadores tanto do direito substancial como também, do processual, como se verificará ao longo do texto.

            Visando um acesso fácil e prático ao leitor, o texto é composto por cinco seções e mais as considerações finais. Na seção seguinte, será abordada a teoria dos atos jurídicos / processuais, visto sua extrema necessidade de percepção para o perfeito entendimento dos institutos a serem apresentados posteriormente.

Em seguida, a responsabilidade patrimonial ganhará destaque, pois é sobre esta, que se pauta as modalidades de fraude à execução autônoma e eclética.

            Em sequência se ingressará sobre a fraude contra credores, como sendo, a mais simples de compreensão, e, no âmbito jurídico, a que gera menos efeitos danosos.

            Na próxima seção, em ordem, será discorrido acerca da fraude à execução, em que o leitor compreenderá a natureza jurídica e sua consequência para a ação executiva. Da mesma forma, que incidência do Direito Penal, como regulamentador da situação, haja vista a complexidade e rigorosidade da matéria, explicando o porquê de ser assim.

            A última seção do desenvolvimento do presente artigo é a alienação do bem penhorado, que na verdade, se analisado numa escala hierárquica, trata-se da mais grave, pois infringe de maneira total a atividade substitutiva do Estado e, com isso, enseja a insegurança jurídica.

            E, por fim, as considerações finais, que tecerão as principais diferenças entre cada instituto, bem como, as consequências práticas para o terceiro adquirente.

2. TEORIA GERAL DOS ATOS JURÍDICOS

            A possibilidade de compreender a essência dos institutos que fraudam a responsabilidade patrimonial do devedor na obrigação originária é mínima, sem que haja, primeiramente, uma abordagem, mesmo que superficial, acerca dos atos jurídicos e seus três planos necessários, a saber: existência, validade e eficácia. Isso porque, a própria natureza jurídica de cada instituto a ser analisado nesse artigo, alberga por esses ensinamentos que são aplicáveis na teoria geral do direito civil e, quando iniciado o estudo em teoria geral do processo, com a ênfase recaindo sobre os atos processuais.

            Antes de tudo, é imperioso pontuar que, de forma analógica, a doutrina apresenta como sendo a teoria dos atos jurídicos como a mesma dos atos processuais, daí não haver nessa seção, a distinção teórica, embora na prática isso é perfeitamente visível.

            A primeira dúvida que surge no imaginário do leitor é qual diferença existente entre ato jurídico e fato jurídico. Venosa (2004, p. 377) esclarece que os fatos jurídicos são:

[...] todos os acontecimentos que, de forma direta ou indireta, ocasionam efeito jurídico. Nesse contexto, admitimos a existência de fatos jurídicos em geral, em sentido amplo, que compreendem tanto os fatos naturais, sem interferência do homem, como os fatos humanos, relacionados com a vontade humana.

            Percebe-se então que o conceito fornecido pelo grandioso estudioso do direito substancial nada mais se refere do que ao conceito lato de fato jurídico. Sendo que o mesmo sobre especificações, a entender: fato jurídico stricto sensu e ato jurídico lato sensu. E este se subdivide em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico.

            O fato jurídico stricto sensu é todo acontecimento que tem a capacidade de produzir consequências jurídicas e que, se produza independentemente de uma vontade humana lícita. São exemplos a morte e o nascimento, pois decorrem de efeitos naturais (CÂMARA, 2012-a).

            Diferentemente, os atos jurídicos em sentido geral, também chamados de atos humanos ou atos jurígenos são aqueles eventos que, segundo Venosa (2004) emana de uma vontade, quer tenham intenção precípua de ocasionar efeitos jurídicos ou não.

            De forma didática Câmara (2012-a) diferencia os atos jurídicos em sentido estrito dos negócios jurídicos. Enquanto estes o ato é mero instrumento destinado à consecução de um fim, ou seja, a produção do efeito, como ocorre com uma doação, compra e venda, aquele, a vontade humana é dirigida tão somente à prática dos mesmos, decorrendo seus efeitos da lei, como exemplo, o casamento.

            Passando dessa concepção do que vem a ser um fato jurídico em sentido lato, e suas ramificações, se passará, agora, a entender os requisitos para que os atos jurídicos (ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico) se tornam existentes, válidos e eficazes.

            Primeiramente, verifica-se se o ato jurídico é existente, ou seja, no mundo fático ele pode ser exteriorizado a ponto de que se verifique sua validade e eficácia. Em outros dizeres, não há como verificar a validade de um ato sem que este, ao menos, tenha se quer existido. Da mesma forma a eficácia. Agora, nada impede que um ato nulo venha produzir efeitos no mundo jurídico, da mesma forma que um ato válido possa ser ineficaz.[3]

            A existência de um ato jurídico estrito senso se consuma quando esse ato é revestido de todos os elementos mínimos. Diferentemente da validade, que se restringe a submissão desse ato ao ordenamento jurídico positivado vigente. Em outras palavras, Câmara (2012-a, p. 289):  “A lei estabelece uma série de ditames, os quais devem ser respeitados por aquele que vai praticar um ato processual. O descumprimento do ônus de praticar o ato processual de acordo com as regras estabelecidas em lei tem como consequência a sua invalidade”.

            Finalizando, a terceira esfera a ser analisada é a da eficácia. Nesse plano, verifica-se se o ato jurídico está apto a produzir os efeitos que lhe são direcionados. Nesse sentido, existem atos jurídicos inválidos que produzem seus efeitos até o momento em que se declare a sua invalidade, como é o caso da fraude contra credores. E existem também, os atos jurídicos válidos que são ineficazes, como é o caso da fraude à execução, uma vez que nem precisa do ajuizamento de uma ação anulatória do ato, pois originariamente o mesmo é ineficaz.

           

3. RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL

            Pertinente, a priori, entendermos que a dívida é pessoal, mas a responsabilidade é patrimonial. Em outras palavras, destaca-se que o devedor é a pessoa presente no polo passivo da relação jurídica cível, contudo, quem há de arcar com o ônus obrigacional, caso o mesmo não adimpla sua obrigação originaria nas mesmas medidas em que foi pactuada é o patrimônio – bens presentes e futuros, atendendo às restrições legais - do mesmo, e não o próprio, a não ser casos expressamente apresentado em lei, como é o caso de executado de pensão alimentícia  e depositário infiel.

            Desta forma, quando nos depararmos com dívida de alimentos e depositário infiel, a própria lei transige com o princípio da responsabilidade exclusivamente patrimonial, pois permite atos de coação física sobre a pessoa do devedor, sujeitando-o a prisão cível, conforme apresenta o próprio Código de Processo Civil (CPC), em seu art. 733, § 1º e o 904, parágrafo único.

            No tocante, Theodoro Junior (2010, p 179) complementa:

Em virtude da adesão do Brasil aos Tratados Internacionais de Defesa dos Direitos do Homem, o STF vem decidindo que não mais vigoram os dispositivos da legislação interna que autorizavam a prisão cível do depositário infiel (STF, Pleno, RE 349.703/RS, Rel, Min. Carlos Britto, AC. 03.12.2008, DJe 05.06.2009). A prisão do devedor, como meio coercitivo indireto, prevalece, portanto, apenas para a execução de dívidas de alimento.

            Ora, se o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já vem decidindo reiteradamente que o dispositivo do CPC que apresenta o depositário infiel como uma das hipóteses de responsabilidade pessoal já se encontra ultrapassado, não há mais que se discutir a não ser considerar a única exceção de a responsabilidade patrimonial ser, a priori, o devedor de pensão alimentícia. Essa posição da nossa Suprema Corte veio se configurar a partir do momento em que o Brasil aderiu ao Tratado de São José da Costa Rica.

            Câmara (2012-b) entende que a responsabilidade patrimonial, na verdade, consiste apenas na sujeição do patrimônio do devedor à execução patrimonial, ou seja, na possibilidade de que esse patrimônio esteja sujeito às medidas executivas que se dirigem a fazer cumprir a vontade concreta do direito substancial.

            Sendo assim, percebe-se que nem sempre a responsabilidade patrimonial ocorrerá. Isso implica afirmar que apenas nos casos de inadimplemento da obrigação principal é que o Estado, com seu caráter substitutivo, como meio de coerção, irá penhorar o bem do inadimplente para que, posteriormente, seja expropriado e assim, com o rendimento dessa expropriação, seja satisfeito o crédito do exequente, perdurado pela insatisfação da obrigação originária, configurando-se assim a aplicação do princípio do desfecho único, bem como, da efetividade do processo executivo. É fato que, essa responsabilidade somente ocorrerá quando houver o requerimento do credor, pois em razão do princípio da disponibilidade da execução, pode o exequente dispor do seu direito a qualquer tempo, sem menos, que o devedor consinta.

            Antes de continuar a próxima seção, é importante que se aplique alguns conceitos chave no entendimento do assunto. Pois bem, passaremos a analisa-los.

Diante de uma relação jurídica obrigacional encontramos direitos subjetivos a uma prestação, os quais são titulares os credores, e deveres jurídicos, os quais incumbem aos devedores. Da mesma forma, esses credores, uma ora eram portadores de deveres, e os devedores, de direitos. Dá-se o sinalágma da relação contratual.

O dever jurídico de realizar a prestação denomina-se dívida e o direito subjetivo a uma prestação configura o crédito. Ao lado deste dever do direito material encontra-se a responsabilidade, ou seja, uma possibilidade de sujeição do patrimônio do devedor para assegurar a satisfação do direito do credor (CÂMARA, 2013-b).

            A dívida é uma obrigação, a qual compreende um dever para o devedor, e por consequência, uma sujeição de responsabilidade para seu patrimônio, caso não venha a cumprir com sua obrigação na exata forma pactuada.

            A dívida atua no campo do direito substancial e a responsabilidade no campo do direito processual. Podendo então existir a ocorrência de responsabilidade sem dívida e vice e versa.

            Para corroborar as ideias já mencionadas, é de suma importância apresentar os dizeres do processualista Câmara (2012-b, p. 216) ao dizer que a responsabilidade patrimonial:

[...] opera, como dito, no campo processual, e não substancial. Isto se dá porque a responsabilidade patrimonial não corresponde a uma relação entre credor e devedor, mas entre o Estado e o responsável, podendo aquele invadir o patrimônio deste, para o fim de sujeitar bens que o integram, para permitir, assim, a atuação da vontade concreta do direito objetivo.

Humberto Theodoro Júnior (2010, p 179) ainda contempla “A obrigação como dívida é objeto do direito material. A responsabilidade, como sujeição dos bens do devedor à sanção, que atua pela submissão à expropriação executiva, é uma noção absolutamente processual”.

            Desta feita, mais uma vez entende-se que nem sempre o patrimônio do devedor irá ser utilizado. Na verdade, o mesmo somente irá ser responsabilizado, caso o sujeito passivo da obrigação não cumpra com sua função. E isso é tão notório, que mesmo não cumprindo a obrigação na exata forma, caso o credor venha ingressar com ação executiva autônoma ou cumprimento de sentença, e o bem venha a ser penhorado, a qualquer momento, antes da expropriação, pode o executado requerer a substituição do bem penhorado, inclusive, por montante numerário, conforme o próprio CPC apresente a hipótese.

            Após essa análise dos ensinamentos necessários a compreensão dos institutos de fraudes contra essa sujeição da responsabilidade patrimonial, passar-se-á ao estudo dessas fraudes propriamente ditas.

4. FRAUDE CONTRA CREDORES

            O direito civil apresenta toda a configuração – ou procura apresentar – dos negócios realizados na iniciativa privada, isto é, entre particulares.[4] Desta feita, se preocupou o legislador em determinar as hipóteses em que o negócio jurídico será considerado válido ou não, dependendo dos casos fáticos.

            Cada parte contrai, em regra, uma obrigação, e que o cumprimento dessa obrigação, para a outra parte, se configura como um direito. Eis a estrutura sinalagmática existente entre os contratos realizados pelos sujeitos de direitos e deveres, como já mencionados anteriormente.

            É nessa preocupação que, caso um dos contratantes não realize sua obrigação, há mecanismos hábeis para que a parte prejudicada possa vir a ter, realmente, sua obrigação adimplida ou justificada seu inadimplemento; dentre esses mecanismos cita-se a responsabilidade patrimonial, na primeira hipótese e o exceptio non adimpleti contractus, na outra, que é um remédio processual destinado a paralisar a ação do autor.

            Tomando como premissa dessa pesquisa a primeira hipótese, isto é, a responsabilidade patrimonial, verifica-se que, o devedor da obrigação, muitas vezes tenta se esquivar de que sobre algum bem seu, seja ele móvel ou imóvel, recaia responsabilidade, e nesse sentido, se referimos à expropriação propriamente dita.

            É nesse diapasão que o legislador se preocupou em regulamentar os casos em que o devedor não tem o interesse de adimplir sua dívida, burlando a estrutura creditícia entre o credor e o devedor irresponsável. Sendo assim, surge a fraude contra credores, fraude à execução e alienação de bem penhorado.

            Observa-se assim, a existência de três hipóteses em que o devedor se comporta de maneira fraudulenta. Todas serão apresentadas nesse artigo. Mas iniciaremos com a fraude contra credores, que se trata, na verdade, da fraude mais simples e por isso, menos complexa no ordenamento jurídico em relação ao devedor, embora a única que requeira uma ação própria para ser configurada, como será identificado.

            Ocorre a fraude, nos dizeres de Pereira (2004) quando há a manobra engendrada com o fito de prejudicar um terceiro. Isso quer dizer que o propósito do fraudador é levar aos credores um prejuízo, seja em beneficio próprio ou não. Desta feita, burla a garantia real que se deve encontrar no patrimônio do devedor.

            Nota-se que são necessários dois requisitos para que a fraude contra credores se configure, a saber: eventus damni, isto é, é obrigatório que diante do ato praticado pelo devedor, tenha a existência de um prejuízo / dano, em relação a um terceiro desse negócio realizado. E que o alienante tenha consilium fraudis, que se trata da má-fé, a intenção em prejudicar um terceiro seja aliado ou não ao terceiro alienatário.

            É por isso que Diniz (2013) com o brilhantismo que lhe é próprio conceitua a fraude contra credores como sendo: “[...] a prática maliciosa, pelo devedor, de atos que desfalcam o seu patrimônio, com o escopo de colocá-lo a saldo de uma execução por dívidas em detrimento dos direitos creditórios alheios”.

            A lógica que deve ser feita é a de que, se os bens do devedor estão servindo de uma garantia (seja real ou quirografária) do pagamento de suas dívidas e se encontra em insolvência, segundo Dower (2007, p. 385) “[...] é seu dever não dispor de seu patrimônio. Se o fizer, estará enganando seus credores”.

            O legislador não proíbe que, após contrair uma obrigação, a pessoa não possa mais alienar seus bens, pois se assim fosse, certamente as pessoas não iriam querer realizar os negócios jurídicos. O que não pode o devedor é se desfazer de seus bens a título de se tornar insolvente. Enquanto não estando insolvente, ele tem plena liberdade para dispor de seus pertences.

            Com essa premissa, é indiscutível a necessidade de analisar os ensinamentos de Dower (2007, p. 388):

De fato, se o devedor, sabendo da existência de débito, despoja-se de seus bens, sem demonstrar posteriormente sua solvibilidade, ciente de que, assim o fazendo, prejudicará o credor, frustrando o recebimento de seu crédito, estará cometendo fraude contra seus credores. Há, pois, um negócio jurídico real, verdadeiro, mas feito com intuito de prejudicar terceiro, agravando a insolvência do alienante-devedor.

            Por ter sido realizado com esse intuito fraudulento, como já dito, consilium fraudis, e que tenha eventus damni, esse negócio pode ser anulado. Dai ser um negócio existente e válido entre os seus contratantes, mas ineficaz em relação ao credor, após o julgamento da Ação Pauliana, que se trata de Ação anulatória do ato jurídico, que, inclusive, tem prazo decadencial de até quatro anos, contados do dia em que se realizou o negócio, conforme dispositivo da legislação civil brasileira (art. 178, II do CC/02).

            A fraude contra credores é um vício no negócio jurídico e, por isso, prejudicial ao credor. É por conta disso que se torna anulável por expressa previsão legal (ats. 158, 159 e 171, II, do CC/02). Sendo assim, por ser anulável, percebe-se que até a sua anulação, o negócio é válido e, por isso, produz seus efeitos.

            É de suma importância compreender que, diante da fraude contra credores, o Código Civil Brasileiro protegeu de suma forma o terceiro de boa-fé. O legislador tem esse sujeito como sendo o “protegido” nas relações contratuais. Ocorre que, em se tratando de um vício no negócio jurídico em que, o terceiro que comprou o bem está de boa-fé, existe um conflito: de um lado esse terceiro e do outro, um credor que precisa de seu crédito cumprido.

            Diante dessa situação, o CC/02 apresenta que, em se tratando de duas hipóteses, o terceiro e boa-fé não é tão protegido: a primeira se refere quando esse terceiro é um donatário e a outra hipótese, quando o negocio jurídico é de remissão de dívida.

            Nessas hipóteses, independe de má-fé, ou seja, o terceiro nem sabia da existência de tantas dívidas pelo doador, da mesma forma que o doador não tenha o elemento subjetivo da fraude, como não há perda financeira pelo terceiro, entendeu o nosso legislador que a ação anulatória será concedida sem muitas delongas, conforme o art. 158 do CC/02. O que merece menção nessas hipóteses é que, apenas os credores quirográficos que já tinham esse direito ao tempo da realização do ato anulável é que podem pleitear a anulação do negócio jurídico.

            Nas demais hipóteses, é indispensável que se comprove os dois requisitos já mencionados anteriormente. E, acima de tudo, a insolvência, que pode ser notória ou presumida. Enquanto esta se reveste de um conhecimento de parente próprio, ou quando houver motivo, para ser conhecida do outro contratante, aquela já é do conhecimento do público e se reconhece principalmente quando o devedor tem títulos protestados (DOWER, 2007).

            O que se deve apresentar como a principal consequência da fraude contra credores e seu reconhecimento jurídico, ou seja, com êxito da Ação Pauliana, é que o negócio jurídico fraudulento será revogado em consonância aos interesses do(s) credor(es), sendo o bem reposto no patrimônio do devedor, cancelando a garantia real concedida em proveito do acervo, ou seja, o CC/02, (art. 165) elucida que, todos os possíveis credores serão beneficiados em função da anulação, embora não tenham intentado a referida ação.

            Diante do julgamento dessa ação e houver a anulação do negócio jurídico, nada impede, caso seja de um terceiro de boa-fé, que o mesmo pleiteie o equivalente mais perdas e danos diante do devedor, e inclusive, se torne, também, após o julgamento dessas situações, um novo credor em relação ao bem que outrora tenha sido objeto de fraude.

            Agora, ao nosso entendimento, aquele terceiro que agiu em conluio com o devedor tem apenas direito ao equivalente pago ao devedor, em função do princípio do locupletamento ilícito, muito embora merecesse uma sanção civil e perdesse esse crédito.

5. FRAUDE À EXECUÇÃO

            Uma segunda modalidade de fraude na alienação ou oneração de bens é a fraude à execução, ou como o CPC define, fraude de execução, mas que, ao nosso entendimento, aquela expressão é a mais adequada, pois o intuito é fraudar a execução.

A fraude à execução seria a obstrução da satisfação do crédito reclamado pelo credor, por algum meio fraudulento do devedor –comportamento reprovável- (pressuposto da culpa ou do dolo) capaz de evitar ou impedir o andamento da execução.

            A fraude à execução possui características e requisitos que a divergem da fraude contra credores, contudo, ainda assim costuma ser apontada como uma “especialização” desta última (CÂMARA, 2012-b).

            Esta “qualificação” na fraude contra credores a qual a doutrina entende por fraude à execução, se dá pelo simples fato de haver um atentado à dignidade da Justiça (vide art. 600, I do CPC), já que existe patente prejuízo à atividade estatal, além de prejudicar também o credor. E, por essa razão, o tratamento legal se mostrou mais rigoroso que na ação pauliana, bastando haver a alegação e comprovação nos autos da própria ação executiva.

            A fraude à execução é muito mais complexa e apresenta mais severidades nas suas consequências exatamente porque a atividade substitutiva do Estado está sendo impedida por ato do executado. Ou seja, além de atentar à dignidade da Justiça, se configura também, como sendo um crime, previsto no Código Penal Brasileiro (CPB) em seu art. 179.

            Desta feita, Greco (2013, p. 323) pondera que “[...] somente se poderá reconhecer como típica a conduta do agente quando se estiver diante de uma execução judicial, afastando-se, portanto, as demais ações constantes do processo de conhecimento, bem como do processo cautelar”.

            Embora o CPB venha tipificar essa conduta, o CPC é o melhor instituto para detalhar essa situação, uma vez que ele, no caso em comento, que aborda o processo executivo e a fase executiva.

Sendo assim, segundo o art. 593 do CPC, há fraude à execução na alienação ou oneração de bens:

I – quando sobre eles pender ação fundada em direito real;

II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;

III – nos demais casos previstos em lei (vide arts. 615-A, §3º, e 672, §3º, do CPC).

No tocante as hipóteses previstas no artigo supra, há entre elas elementos comuns. Indubitavelmente, o mais importante destes é a dispensa do consilium fraudis. Desta feita, entendemos que há a dispensa do requisito subjetivo como elemento essencial para caracterizar a fraude. Não importando se a conduta do demandado teve a intenção de torná-lo insolvente ou de causar qualquer dano ao credor. Diferentemente da fraude contra credores quando não versar nas duas exceções, já apresentadas, em que os dois elementos são indispensáveis para configuração da fraude.

Câmara (2012-b) ainda pondera que o ato praticado pelo devedor precisa de um requisito, ou seja, o ato se dê quando pendente um processo capaz de reduzir o mesmo à insolvência. Tal requisito é um pressuposto dos atos processuais de existência – processo pendente-, entre outras palavras, litispendência, já explicado esse plano na primeira seção desse artigo.

A doutrina não apresenta tamanha divergência acerca da consequência da fraude à execução, haja vista que considera o ato praticado válido, porém ineficaz. A fraude à execução é caso de ineficácia da alienação, nos termos do CPC (arts. 592 e 593).

Theodoro Junior (2010) afirma que não há nenhuma ação para desconstituir o ato fraudulento, ou até mesmo anulá-lo. A lei o considera ineficaz perante o exequente, exatamente pelo seu caráter atentatório à atividade judiciária, a saber: resolver as lides apresentadas ao Poder Judiciário.

Desta feita, concluímos que o objeto da alienação fraudulenta ainda será atingido pela força da execução, como se esta não tivesse ocorrido. Entretanto, ao adquirente não surge à figura de devedor solidário, pois apenas aquele bem indevido se insere na responsabilidade, cabendo a ele reclamar perdas e danos diante do seu alienante, que no caso da execução, é o executado e no direito penal, o criminoso, caso haja sentença penal condenatória.

Por fim, nota-se que, por força do artigo 600, I, CC com o artigo 601, do CPC, aquele que fraudar a execução – atentado a dignidade da Justiça – incidirá multa fixada pelo juiz, salvo se este (devedor) se comprometer com a dívida e não mais praticar os atos fraudulentos elencados pelo artigo supra (vide art. 600, CPC).

            Outra questão que merece destaque é saber exatamente quando se configura a fraude à execução, se quando o executado for citado, ou apenas quando houver o registro da penhora.

            Entendeu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), com a emissão da súmula 375 que “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

            A doutrina processualista e penal entende que a partir do momento da citação do executado, este, alienando bens seus capazes de torná-lo insolvente, já configura fraude à execução. Ocorre que, no cumprimento de sentença, quando se passa para a fase executiva, uma vez que é um processo eclético, em regra, não existe a citação, mas apenas a intimação. E sabe-se que o processo, em tese, só inicia-se com a configuração do contraditório e ampla defesa. Será que logo quando na ação de conhecimento o réu for citado, este já não mais pode alienar seus bens a ponto de tornar-se insolvente?

            A resposta é positiva. Embora a ação de conhecimento só se torne exequível a partir do trânsito em julgado e que, necessariamente, o autor saia vencedor, uma ação ajuizada contra o devedor capaz de reduzi-lo à insolvência já restringe o direito de dispor de seus bens até o montante da dívida, objeto de ajuizamento no processo de conhecimento.

O que o STJ quis ponderar quando na configuração da súmula 375 é que, em se tratando de maior garantia para o exequente, apenas com o registro da penhora do bem alienado é que, a partir de então, qualquer alienação, capaz de tornar o executado insolvente, se configura como fraude à execução, haja vista que somente com a matrícula do imóvel no registro de imóveis é que poderá o exequente averbar a execução, com fito de garantir direito de preferência.

Ocorre que, não necessariamente apenas com o registro da penhora é que se configura, ou seja, nada impede que antes esse ato processual, exista a configuração da fraude à execução, desde que se comprove a má-fé do terceiro adquirente em cotejo ao executado, isto é, alienante.

Sendo assim, a doutrina majoritária entende que, após a citação do réu no processo de conhecimento que verse sobre demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, este terá seu direito de dispor de seus bens restringidos. Agora se versar sobre demanda que não lhe tornará insolvente, poderá dispor dos bens até a quota necessária para, se for vencido na ação de conhecimento, não ser configurando a fraude à execução, quando se trata de cumprimento judicial.

Em se tratando de execução autônoma, não haverá a fase cognitiva, razão pela qual, após a citação do executado é que se começa a analisar a fraude à execução, nos mesmos moldes acima já descritos, desde que comprovada a má-fé. Em se tratando da averbação, a presunção é absoluta e, sendo assim, poderá ser desfeito a qualquer momento, independentemente de ação própria.

6. ALIENAÇÃO DE BENS PENHORADOS

            Para discorrer sobre esta última modalidade de fraude à responsabilidade patrimonial é imprescindível entender a noção geral da penhora, como integrante da fase de instrução tanto no processo executivo autônomo, como também, no cumprimento de sentença.

            Pois bem, segundo Câmara (2012-b) a penhora é um ato pelo qual se apreendem bens para que sejam empregados, de maneira direta ou indireta, na satisfação do crédito exequendo. Sendo assim, se trata de ato de apreensão judicial de bens, sendo certo, inclusive, que os bens penhorados sejam empregados na satisfação do direito do exequente.

O ilustre Theodoro Júnior (2010) ainda reforça que “a penhora visa dar início, ou preparação, à transmissão forçada de bens do devedor, para apurar a quantia necessária ao pagamento do credor”.

Existem casos em que a lei atribui caráter de impenhorabilidade e inalienabilidade a determinados bens (vide arts. 648 e 649, do CPC; arts. 1711, caput, e 1715 do CC; vide Lei 8.009, de 29-3-1990, sobre a impenhorabilidade do bem de família). Temática inoportuna de discorremos no presente artigo de forma detalhada em razão da fidelidade ao tema.

A penhora por si só não retira o bem do patrimônio do executado, o mesmo ainda pode dispor do bem, visto que a penhora não traz efeito de indisponibilidade, o que ocorre na verdade, é retirada da posse direta do bem penhorado do executado, de modo a tornar ineficazes os atos de alienação ou oneração do bem apreendido judicialmente. Portanto, considerar ato nulo ou anulável a alienação sobre bens penhorados é uma afirmativa equivocada, haja vista que há validez, porém, não há eficácia.

Câmara (2012-b) elucida que este ato acima destacado, será relativamente ineficaz, porque não retira o bem do campo de incidência da responsabilidade patrimonial. Ademais, uma vez penhorado o bem, mesmo que saia do patrimônio do executado, este ainda esta sujeito à satisfação do crédito do credor, e, por conseguinte, aos atos executivos que serão realizados.

Os efeitos que o ato de alienação de bem penhorado é inter partes, ou seja, atinge apenas o alienante e o adquirente, mas é inoponível ao demandante, porque este poderá, através do bem penhorado na alienação do demandante, satisfazer seu crédito.

            Desta forma, entende-se que, a partir do momento em que o bem é penhorado, o direito de sequela do credor é configurado, podendo, inclusive, buscar o bem onde quer que esteja, pois um dos efeitos da penhora para o credor é a prelação de sequela. Da mesma forma, na medida em que o bem é penhorado e logo em seguido, por iniciativa do exequente, averbado, o terceiro deve respeitar o gravame judicial, abstendo-se de negociar com o executado.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            O inadimplemento da obrigação pelo devedor gera, com já mencionado, a sujeição de seu patrimônio como sendo o responsável, em regra, à satisfação do direito do credor. E que essa responsabilização patrimonial pode sofrer algumas perturbações regulamentadas pela ordem jurídica brasileira, que foi exatamente o objeto de estudo dessa pesquisa.

            Entendendo a partir da configuração desse texto, é sabido que existe um aumento gradual do nível de gravidade entre as modalidades de fraude.

            Enquanto na fraude contra credores, exige-se dois requisitos, em regra: o eventus damini e o concilium fraudis, na fraude à execução dispensa-se o elemento subjetivo, isto é, concilium fraudis, contudo, exige-se que o devedor possa ser reduzido à insolvência. Na alienação de bem penhorado, por ser a mais grave, a insolvência do devedor não é um requisito para a configuração da fraude, basta que ele aliene um bem que já foi penhorado e, com isso, individualizado para a atividade substituta Estatal se configurar.

            Levando-se em consideração que na fraude contra credores, o vício ocorre na validade, que, enquanto não declarado a sua invalidade, continua produzindo os seus efeitos, na fraude à execução e alienação de bem penhorado, o ato é existente, válido, mas ineficaz em relação ao credor, que no caso, é o exequente.

            Na fraude contra credores é indispensável a presença de uma ação revogatória, isto é, ação pauliana, capaz de declarar que o negocio jurídico é inválido, por estar eivado de vício. Nas outras duas modalidades, fraude à execução e alienação de bem penhorado, essa declaração é incidentam tantum, ou seja, ocorre como mero incidente processual que, inclusive, tem natureza de mera decisão interlocutória.

            Quando se verificar uma alienação que ocorreu a partir do momento em que é instaurado o processo, seja ele de conhecimento capaz de reduzir o réu à insolvência, ou mesmo, um processo executivo autônomo, antes mesmo da penhora, tratar-se-á de fraude à execução. A partir do momento em que o bem já foi penhorado e, por tanto, declarado um depositário, e este o aliene, se configurará a alienação de bem penhorado.

            A fraude contra credores sempre ocorrerá antes de um processo cognitivo. Enquanto que a fraude à execução, como já explicitado, após esse processo, ou ao processo executivo, dependendo de que fundamento segue-se a ação, se título judicial ou extrajudicial.

            Sendo assim, percebe-se que, diante do princípio da vedação ao locupletamento ilícito, cabe ao terceiro que pagou para realizar o negócio jurídico, embora inválido ou ineficaz, tem o direito do equivalente. E que nos casos de terceiro de boa-fé, entende-se que, segundo o direito material, inclusive, tem direito a pernas e danos.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Código de Processo Civil. Vade Mecum Compacto.  – 6. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2011.

CÂMARA, Alexandre de Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I – 23.ed. – São Paulo: Atlas, 2012-a.

_______________________. Lições de Direito Processual Civil. Vol. II – 21.ed. – São Paulo: Atlas, 2012-b.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: Teoria Geral do direito civil. Vol. 1. – 30. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2013.

 

DOWER, Nelson Godoy Bassil. Curso moderno de direito civil: Parte geral. Vol. 1. - São Paulo: Nelpa, 2007.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Vol. III. – 10. ed. Niterói: Impetus, 2013.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Introdução ao direito civil: teoria geral. Rio de Janeiro, Forense, 2004.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução e cumprimento de sentença, processo cautelar e tutela de urgência – vol. II. – Rio de Janeiro: Forense, 2010.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. – 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2004.



[1] Acadêmico do 6º período do curso de Direito da UNAMA. Monitor de Direito Penal II – Universidade da Amazônia (UNAMA), Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa Pessoas e Relações Familiares (GEPPRF) – UNAMA.

[2] Acadêmico do 6º período do curso de Direito na Universidade da Amazônia. Ex-estagiário da Corregedoria do Detran-PA.

[3] Nesse sentido, Câmara (2012-a, p. 287) entende que: “O ato nulo não vale, mas pode produzir efeitos. Ato que não produz efeitos é ato ineficaz”.

[4] Embora existam negócios que o Poder Público realiza com o particular, contudo, aquele assume um papel de particular nessa relação bilateral.