A RESPONSABILIDADE CIVIL SOBRE ATOS PRATICADOS PELAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO

 

Alex Bruno Canela Vilela[1]

 

SUMÁRIO: Resumo; 1  Introdução; 2. Sobre a Responsabilidade Civil do Estado; 3. Evolução Histórica; 3.1. Teoria da Irresponsabilidade; 3.2. Teorias Civilistas; 4. Responsabilidade Civil dos Atos praticados pelas Comissões Parlamentares de Inquérito; 5. Considerações Finais. Referências

 

 

Resumo: Este trabalho busca abordar os aspectos jurídicos e doutrinários da responsabilidade civil objetiva do Estado, em especial dos atos praticados em sede das Comissões Parlamentares de Inquérito. Diante do evidente protagonismo do Poder Judiciário, os atos praticados pelo poder público não gozam de infalibilidade, podendo ser atacados pela via jurisdicional. Os atos fiscalizatórios das CPIs se encontram nessa diapasão, conforme se exporá no presente artigo.

Palavras-Chave: Responsabilidade Civil. Estado. CPIs.

1 INTRODUÇÃO

 

A Responsabilidade Civil é um assunto sempre de grande repercussão na seara jurídica. No campo do direito público, o assunto vem ganhando espaço cada vez maior na jurisprudência e na doutrina, diante dos atos emanados pelo poder estatal.

A Constituição Federal de 1988 consagrou a Responsabilidade Civil objetiva do Estado na forma do seu art. 37, §6º, afirmando que “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Trata-se de uma construção jurídica de séculos. Da total irresponsabilidade do Estado, típica dos regimes absolutistas, até a teoria do risco administrativo, o direito público confere a possibilidade aos cidadãos de buscarem o ressarcimento dos prejuízos causados pelos agentes estatais, evitando, assim, a cristalização da impunidade civil.

Assim, os três poderes são responsáveis pelos atos praticados pelos seus agentes, nesse locus, encontra-se o Poder Legislativo. Além da típica função de criar Leis, o Legislativo é também fiscalizador e nesse sentido, o art. 58, §3º, da Constituição Federal traz à baila as atribuições das Comissões Parlamentares de Inquérito.

O presente trabalho tem por finalidade abordar a hipótese da responsabilidade civil pelos atos praticados em sede das Comissões Parlamentares de Inquérito, invocando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal e a evolução jurídica do instituto da responsabilidade civil objetiva.

2      SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

 

Nas relações entre particulares, uma vez praticado um dano, nasce a obrigação de indenizar a outrem (Art. 927, CC), caracterizando-se dessa forma o instituto da responsabilidade civil. De igual modo ocorre na esfera pública, pois o ordenamento jurídico brasileiro prevê a possibilidade de reparação dos danos causados aos particulares pelo Estado, através de seus agentes ou de quem em nome dele atue.

.Assim se caracteriza a responsabilidade civil do Estado, pois engloba os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo errôneo, conforme leciona Di Pietro (2012, p. 697) discorrer sobre “responsabilidade da administração pública”, já que esta não tem personalidade jurídica, não sendo sujeito de direitos e deveres.

A responsabilidade do Estado é extracontratual, excluindo a responsabilidade contratual por está relacionada ao campo dos contratos realizados pela administração pública. Na lei civil, a responsabilidade contratual dar-se-á pela violação às cláusulas avençadas no negócio jurídico, diferindo da segunda possibilidade que trata da prática de um ato ilícito que viole um princípio jurídico (Art. 159, CC).

A diferença entre o âmbito privado e o público está em que no primeiro é necessário que se comprove a existência de um ato ilícito, enquanto que na segunda possibilidade o Estado pode até praticar um lícito, mas que gere prejuízo a terceiro, surgindo assim o dever de indenizar (DI PIETRO, 2012, p.697).

Também não se pode confundir a responsabilidade civil com as responsabilidades penal e administrativa, pois em regra são independentes, podendo ser, em alguns casos, cumuladas. A responsabilidade penal nasce da prática de crimes ou contravenções contra a administração. A responsabilidade administração surge da prática de atos praticados por agentes públicos ou particulares, desde que subordinados ao poder disciplinar da administração, que tenham violado lei ou ato normativo que regem sua conduta (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 792).

3    EVOLUÇÃO HISTÓRICA

3.1              Teoria da Irresponsabilidade

Nem sempre foi possível responsabilizar o Estado pelos atos ilícitos praticados por seus representantes. Até a Revolução Francesa essa era uma hipótese incogitável, pois as monarcas absolutistas atribuíam para si a própria existente do Estado, a exemplo da célebre expressão l’état c’est moi (“o Estado sou Eu”) do Rei Luís XIV, símbolo áureo desse momento histórico.

Soma-se ainda ao fato da doutrina do “direito divino dos reis”, cujo expoente, o clérigo francês Jean Jacques Bossuet, atribuía a ideia de infalibilidade do monarca, o que se torna bastante claro em brocardo como “the king can no wrong”, “o rei não pode errar” (PAULO; ALEXANDRINO, pág. 762). A irresponsabilidade também se estendia aos funcionários da corte, tornando quase impensável um cenário distinto.

3.2              Teorias Civilistas

Com a superação do ancien regime pela Revolução Francesa (1789), a tese da irresponsabilidade começou a ceder espaço para um novo paradigma, em que o Estado se equipara ao indivíduo, devendo, portanto, responder pelos seus atos. As teorias da época centravam-se nos mesmos postulados da responsabilidade civil entre os particulares, baseada na comprovação do dolo ou da culpa na atuação dos agentes do Estado.

Segundo Di Pietro (2012, p.700), as teorias civilistas distinguiam os atos de gestão dos atos de império. Na primeira situação, os atos praticados pela administração eram voltados para a gestão, de serviços públicos, não havendo diferença entre o particular e o Estado, aplicando-se as regras do Direito Civil. Já na segunda possibilidade, a administração atuaria com todas as suas prerrogativas, diferenciando-se dos particulares, independente da autorização judicial. Dessa forma, o Estado seria responsabilizado nos atos de gestão.

3.3              Teorias Publicistas

As teorias publicistas começaram a ganhar força com a jurisprudência francesa no século XIX, tendo como referencial o célebre caso Blanc[2] em que o Tribunal de Conflitos da França decidiu que o Estado não poderia ser responsabilizado nos mesmos moldes das relações civis.

Segundo Di Pietro (2012, p. 700) as principais teorias publicistas foram a teoria da culpa administrativa e a culpa e a teoria do risco. Segundo Mello apud CARVALHO FILHO (2012, p.489) para se se concretizar a teoria da culpa ou do acidente administrativo “bastava comprovar o mal funcionamento do serviço público mesmo que fosse impossível apontar qual agente o provocou”, caracterizando-se a falta anônima ou fato de serviço.

Conforme leciona Carvalho Filho (2012, p. 489), a teoria da falta de serviço poderia se consumar de três maneiras: inexistência do serviço, mau funcionamento do serviço ou retardamento do serviço. Em qualquer uma dessas hipóteses fica averiguada a falta do serviço (faute) independente de comprovar a culpa do servidor.

A teoria do risco, por sua vez, caracteriza uma importante evolução para a concretização da responsabilidade civil do Estado, uma vez que não passou a depender da demonstração de dolo ou culpa em relação ao dano, podendo incidir sobre fatos lícitos ou ilícitos, bastando que o particular atingido comprove o nexo entre o fato e o dano. A teoria do risco se subdivide em duas: teoria do risco administrativo e de teoria do risco integral.

A teoria do risco administrativo é a mais recorrente na maioria países, a exemplo do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, Gasparini apud Bellotte (2012, p. 320) leciona que:

“(...) a obrigação de o Estado indenizar o dano surge, tão só, do ato lesivo de que ele, Estado foi o causador. Não se exige a culpa do agente público, nem a culpa do serviço. É suficiente a prova da lesão e de que esta foi causada pelo Estado. A culpa é inferida do fato lesivo, ou vale dizer, do risco que a atividade pública gera para os administrados”.

Por sua vez a teoria do risco integral afirma que o Estado deveria indenizar e todo e qualquer dano, independente do comportamento vítima. Devido ao seu caráter irrestrito, essa teoria não vingou nas democracias contemporâneas conforme colaciona Gomes (2012, p. 320):

“Tal teoria, dado ao seu extremismo, não recebeu guarida dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, visto que, considerando os termos em que foi proposta, o Estado seria obrigado a indenizar uma pessoa que se atirasse à frente de um veículo pertencente à Administração Público no ensejo de cometer suicídio no momento em que trafegasse na rua”.

Pelo exposto, nota-se que a teoria do risco administrativo parece bem mais razoável juridicamente, pois a aplicação da teoria do risco integral poderia incorrer no enorme prejuízo à fazenda pública em ter que indenizar atos que são da responsabilidade dos terceiros, a exemplo do citado.

4  RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ATOS DAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO

Conforme mencionado anteriormente, a responsabilidade civil é do Estado, em sentido muito mais amplo que a da Administração Pública, podendo assim abranger os atos do Poder Legislativo. A doutrina reconhece a possibilidade de responsabilização estatal pela edição de leis inconstitucionais, a exemplo do que leciona Carvalho Filho (2012, p. 507):

“(...) é plenamente admissível que, se o dano surge em decorrência de lei inconstitucional, qual evidentemente reflete ação indevida do órgão legislativo, não pode o Estado simplesmente eximir-se da obrigação de repará-lo, porque nessa hipótese configurada está a hipótese de responsabilidade civil”.

Diante dessa possiblidade surge a indagação sobre a possiblidade de responsabilização dos atos praticado no âmbito das Comissões Parlamentares de Inquérito. Primeiramente, é necessário analisar o parâmetro do agente público envolvido, no caso o parlamentar. Conforme anota Carvalho Filho (2012) o termo agente tem sentido amplo, não se confundindo com servidor, podendo assim ser considerado todo aquele que tem a vontade imputada ao Estado, eles do mais elevado nível hierárquico até as funções mais simples da atuação estatal.

Embora não haja nenhuma dúvida de que o membro do Poder Legislativo esteja enquadrado no conceito de agente público, é preciso mencionar o aspecto das imunidades parlamentares. Segundo a Constituição Federal, “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (Art. 58, caput, CF).

Diante disso, forma-se um paradoxo sobre a possibilidade de responsabilização dos atos praticados nas Comissões de Parlamentares de Inquérito, posto que ao mesmo tempo exista um dano causado a terceiros por possíveis abusos ou ilegalidades na atuação dos membros da Comissão, e do outro o parlamentar é inviolável civilmente pelos atos praticados no exercício de sua função.

Entretanto, não se pode falar em imunidade material, quando o ato praticado pelo parlamentar não estiver correlato com o exercício do mandato de forma que: “As palavras dos parlamentares, que não tenham sido proferidas no exercício e nem em consequência do mandato, não estão abrangidas pela imunidade material. É que há de existir, entre a atividade parlamentar e as declarações do congressista, nexo causal” (STF, RE 226.643, Rel. Min. Carlos Velloso, 2a T., j. 03/08/04, p. DJ 20/08/04).

No caso das Comissões Parlamentares de Inquérito, os atos e palavras estão acobertados pela imunidade, entretanto não é de bom alvitre a compreensão de que os atos ilícitos praticados pelo agente política não redunde em responsabilização do Estado, mesmo que aquele não responda civilmente pelos seus atos. De forma que “viabiliza-se a responsabilidade civil do Poder Público, desde que se constate a ocorrência do exercício irregular do direito, por parte dos membros da CPI, e, na ótica dos recorrentes a hipótese teria se aperfeiçoado” (TRF-2 - AC: 371575 RJ 2002.51.01.003045-7, Relator: Desembargador Federal POUL ERIK DYRLUND, Data de Julgamento: 26/09/2006, OITAVA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: DJU - Data:02/10/2006).

Diante disso, o Supremo também já afirmou que:

“(...) Aquele que, numa CPI, ao ser interrogado, for injustamente atingido em sua honra ou imagem, poderá pleitear judicialmente indenização por danos morais ou materiais, neste último caso, se tiver sofrido prejuízo financeiro em decorrência de sua exposição pública, tudo com suporte no disposto na Constituição Federal, em seu art. , X (...).”

(STF - MS: 24118 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 29/10/2001, Data de Publicação: DJ 06/11/2001 P - 00038)

Denota-se, portanto, que é plenamente possível acionar o Poder Judiciário em face do Ente de cujo legislativo praticou abuso no exercício das Comissões Parlamentares de Inquérito. É bem verdade que o parlamentar, principal agente da investigação, não pode ser responsabilizado em face das suas prerrogativas constitucionais, porém, é necessário ressarcir os danos causados por sua atuação, do contrário, incorrer-se-ia na superada teoria da irresponsabilidade do Estado.

5          CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

A Responsabilidade Civil do Estado é um tema palpitante na seara do direito público. Diante da evolução do tema, nota-se que esse instituto demonstra a força do Estado Democrático de Direito, onde a legalidade é maior que o arbítrio, em que os atos do poder público não são ilimitados, podendo ser passíveis de indenização diante do devido processo legal.

Logo, se todos os Poderes estão limitados ao império da Lei, os atos fiscalizatórios do Poder Legislativo não podem, de forma alguma, abusar de suas atribuições. Sendo aquele o Poder responsável por criar as leis, é inconcebível afrontá-las.

As Comissões Parlamentares de Inquérito ganharam bastante notoriedade desde a promulgação da Constituição Federal. Do impeachment do Presidente Fernando Collor até os escândalos do Petrobras, o Poder Legislativo tem protagonizado importantes debates no âmbito investigativo-parlamentar.

Todavia, com a crescente midiatização da CPIs, a exposição da imagem e da dignidade das pessoas investigadas é latente. Não é admissível a hipótese de que a Comissão Parlamentar pode tudo em nome do seu poder de investigação. Embora os parlamentares tenham ao seu favor a imunidade material e forma, presentes no art. 53 da Constituição Republicana, o Estado pode muito bem ser responsabilizado pelos atos praticados pelo seu agente político, caso este venha infringir a outrem.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 19ª Edição, Revista e Atualizada. Editora Método. Págs. 751 a 753.

GOMES, Fábio Bellote. Elementos de Direito Administrativo. 2ª Edição. Ed. Saraiva. São Paulo. 2012. Págs. 320 a 321.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª edição. Ed. Lumen Iuris. 2012. Págs. 489-507.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2012. Págs. 697 - 712



[1] Estudante de Direito da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Assistente Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão (ALEMA). E-mail: [email protected]

[2] Em 3 de novembro de 1871, Agnès Blanc, 5 anos, ao passar em frente a uma fábrica de processamento de tabaco, foi atropelada e ferida gravemente por um vagonete que pertencia a uma empresa estatal de manufatura de tabaco de Bourdeax e era conduzido por quatro empregados. Inconformado, o pai da menina, Jean Blanc, ingressou, em 24 de janeiro de 1872, no tribunal de justiça (civil) com uma ação de indenização (reparação de danos) contra o Estado, alegando a responsabilidade civil (patrimonial) pela falta cometida por seus quatro empregados.  Surgiu, então, um conflito entre a jurisdição judicial (causas entre particulares – civil) e a jurisdição administrativa (causas em que o Estado é parte), sendo o Tribunal de Conflitos responsável por decidir de quem era a competência para julgar a causa. A corte, composta por quatro membros de cada jurisdição, enfrentou um impasse, posto que houve um empate (4 x 4). O Ministro da Justiça, Jules Dufaure, presidente do Tribunal de Conflitos, denominado Guardião dos Selos, desempatou, usando sua prerrogativa do Voto de Minerva, em favor do Conselho do Estado, a jurisdição administrativa. Diante dessa decisão superior, prevaleceu a decisão do Conselho do Estado que concedeu uma pensão vitalícia à vítima, lançando, assim, as bases da Teoria do Risco Administrativo que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados pelos seus agentes. Disponível em http//www.legifrance.gouv.fr. Acessado em 20/05/2015.