Tio Jorge – 3

de Romano Dazzi

 

Que o Tio Jorge é rabugento, todos já sabíamos; Mas este ano, ele está demais.

 Como ninguém quis ir visitá-lo, fui sozinho, com um garrafão de Sangue de boi, que é máximo que minhas finanças permitem.

Quando cheguei, ele nem levantou para  me dar nem o abraço de sempre. Estava frio e distante, que é a pior atitude, deixando tudo em pé de guerra.

- Bandeira branca! – gritei da soleira, enquanto vigiava a possível chegada de algum projétil inesperado.

O Tio Jorge, na juventude, viajou o mundo. foi garçom em navios,  funcionário de um arcebispo e por longo tempo trabalhou em um circo; imagino que, entre tantas outras coisas,  pode ter aprendido alguns rápidos movimentos com o atirador de facas.

- Gente maldita, sem honra e sem religião! – bradou finalmente o tio Jorge, dando vazão à sua intolerância costumeira. – Todos se aproveitando de um pobre velho, fraco e desamparado, que não pode reagir !

- Velho, pode até ser – pensei cá comigo – pobre, fraco e desamparado, nunca!    O tio

está delirando; deve estar com febre; não, não;  pensando bem, vai ver que nem febre tem; ele está no seu estado permanente  de fervura.Gritar e xingar  é atitude normal. Nada para se preocupar, nada de novo sob o sol...Saúde ótima!. 

De qualquer forma, para evitar danos imprevisíveis,  me acomodei na poltrona mais próxima da porta, esboçando o mesmo sorriso estúpido de sempre  e esperei a segunda onda de choque.

- O que foi, desta vez, tio Jorge? 

- Como, “desta vez”?  respondeu agressivamente – o que você quer insinuar com ”desta vez”? Quer me criticar por reagir a estas feras, estas hienas que andam  nas vizinhanças? Quer me tirar o sagrado direito de me proteger?  Vai querer me entregar aos ateus?

 - Agora chega, Titio – atalhei , batendo um soco na trêmula mesinha – nem mais um pio! Enquanto não me explicar o que está havendo, me recuso a escutar suas baboseiras, .... e ai do senhor, se estiver fazendo toda esta algazarra por uma besteira qualquer!  -  

- Estou falando desses hereges – disse ele então - , que ocupam o apartamento embaixo  do meu. Este condomínio virou uma ONU, é uma confusão só. Imagina que ao lado direito, tenho um casal de judeus; do lado esquerdo, mora uma família de protestantes – presbiterianos ou calvinistas, não sei bem  – em cima, um casal de muçulmanos; até aí, tudo bem – somos todos da mesma origem, todos chegamos aqui através de Adão, de Noé, de Moisés, de Abrahão. Mas agora, acabei de saber que o aparamento de baixo foi alugado por um casal de hindus!  Valha-me Deus, não tem mais religião! Quem sabe no que eles acreditam, quem pode imaginar os ritos selvagens eles vão realizar !....E o Conselho os aceitou e os recomendou!

- Tio Jorge – cortei eu – escute bem, e de uma vez por todas. Os hindus são mais religiosos, mais profundos, mais ligados às coisas do espírito do que qualquer um de nós. Acreditam que a Divindade está em toda a parte e oram o tempo todo, para se aproximarem dela, se confundirem com ela. .

Mas o Tio Jorge não parecia convencido. E de repente soltou a bomba:

- São uns bêbados ! Rezam o tempo todo para o Shivas!  e pior ainda do que isso, -  pasme! -   a maior divindade deles é Brahma!

Só consegui responder com uma prece:

- Perdoe-o, Senhor, porque, infelizmente, ele não sabe o que diz!...