Não sei não, mas acho que sou um pouco diferente dos demais, eu sou composto de 70% de água e 10% dos outros elementos químicos necessários e fundamentais à constituição dos organismos vivos desta esfera perdida nos arrabaldes do multiverso. O que falta para completar este mero corpo tão ordinário só pode ser este elemento estranho e impalpável chamado de música. Para fechar o conteúdo faltam 20%. É, acho que eu sou 20% formado de música. Venho desconfiando deste fato desde pequeno. Será que é normal? Ou dito de outra forma, será que eu estou no lugar certo? Senti um alívio temporário quando, no decorrer destes muitos e longos anos, percebi que existiam outros seres com características semelhantes às minhas. Tá certo que eles são meio esquisitos quando se olha de perto, parece que a cabeça gira em outra direção, e que eles estão olhando para o vazio. No entanto, se eu tomar esta última afirmativa, e fazer uma análise profunda de mim mesmo, posso afirmar que eu não olho para o vazio, mas para um mundo diferente. Muito mais belo do que os arredores.  Aprendi no colégio sobre frequências, então será que é isto? Não será que estes seres esquisitos vibram em outra frequência? Muito estranho.

       As chaves do carro estavam no lugar de sempre. O traçado do caminho já claro na mente, o tanque cheio, o tempo farto. O dia límpido. Quinta-feira, 17 de maio, dia de descanso. Vou sair por aí, sem destino, como aqueles dois de moto no filme. Difícil estar livre nestes dias de muitos compromissos, muitas atividades, muitas reuniões, minha persona pública fatiada em inúmeros pedaços para servir de alimento, justificativa, alento, e também,(eu sei bem que é assim) de alvo para maledicências, desprezo e inveja. O diabo são os outros, disse o francês estrábico. Acho que ele estava com razão. Bom, já que fui destinado a aparecer por estas bandas, neste período de tempo, e não tenho escolha, vamos sempre avante, buscando desviar dos golpes e dos olhares traiçoeiros, e das palavras mal intencionadas que cruzam o espaço sonoro por onde eu passo.

   Ah o espaço sonoro... Como é entulhado de lixo! Então me lembro da constituição física incomum que citei há pouco. Todo este lixo me incomoda, muito mais de que a qualquer outro. Alguma incompatibilidade de frequências, ondas que se chocam, se repelem. Há tantos mistérios ao redor, que a cada passo que é dado  mais portas e janelas são abertas para um ambiente impalpável. O espaço que nos cerca é tão precioso, que deveria ser mais respeitado. Mas não é assim que acontece.

      Fechei as janelas, lacrei meu refúgio. Plug and play, e logo meus arquivos sonoros tão preciosos tomaram forma. À esquerda e à direita meus ouvidos acolhem com alegria a companhia tão estimada, amigos incorpóreos que só existem nos escassos minutos da execução. A música é muito misteriosa e efêmera, ela não existe de fato, é uma ilusão que se mantém por teimosia e abnegação de todos estes seres excêntricos que persistem em mantê-la no ar, como um fogo fraco açoitado por ventos inclementes. 

     O silêncio é uma força poderosa, que engole toda a música que ousa desafiá-lo. São muitos insultos ao silêncio, milhões por segundo. Hoje eu peço licença ao Deus Silêncio, mas meu espaço vedado será preenchido pelos amigos incorpóreos. Hoje o tempo é só meu, eu me dei de presente.

 

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       A alameda  arborizada é a passarela deste início de jornada. A inclinação dos raios de Sol entre os galhos cria cortinas de luz amarela, de grande beleza, mas tornam um pouco mais difícil o ato de dirigir. Me recorda as manhãs da infância, onde o cheiro do ar era mais doce, pois vinha filtrado pela inocência. A cortina de luz lembrava a ala de uma catedral, com paredes forradas de vitrais coloridos. Ainda frio e ainda lento, o carro desliza pelo piso úmido de orvalho. Lento, pois ainda terá muito chão pela frente. Automóveis podem ser boas cápsulas sonoras. Fechadas, com boa acústica, se devidamente equipadas, podem e devem ser um lugar de refúgio, muito  além do mero meio de transporte, muito mais do que a fonte de muita irritação e perigos diversos dentro das cidades e estradas por este pequeno mundo afora.

     A alameda arborizada nada mais é do que um pequeno capilar deste sistema circulatório convulsionado, que liga ou, cada vez mais, desliga os vários bairros de minha cidade. Então me volta à lembrança a “cidade sem fim”. Era isto um conceito ou um capricho ? Ou , menos ainda, uma ideia desarticulada, dentre inúmeras que eu insisto em jorrar pela mente à fora? “A cidade sem fim”, onde as ruas chegavam até meus pés, e eu imaginava a mesma rua serpenteando, com sua pele de asfalto, infinitamente, até o outro extremo. Extremo de onde?  Bairros após bairros, sempre bairros novos para serem descobertos. A cidade sem fim. A cidade circular, a curva infinita.

       Hoje é um bom motivo para pôr em prática o conceito da “cidade sem fim”, já que eu não tenho um destino. Desci a alameda, virei à direita e  entrei na estrada já repleta de veículos. Devagar vou inserindo meu carro neste jorro contínuo. Veículos diversos no papel de glóbulos vermelhos na circulação do imenso corpo. Glóbulos de muitas cores e de alguns tamanhos. Os motores em atividade compõe o fundo sonoro deste imenso corpo.

       É hora de começar: “Os pinheiros de Roma” de Respighi escorrem pelos falantes do carro. Sua 2ªparte: “O pinheiro próximo à catacumba” chega quase em silêncio. Muito grave, muito lento, se insinuando, querendo abrir caminho em meio à balbúrdia das buzinas e das freadas. Grave e solene, respeitoso por estar próximo de uma catacumba, a morada de um corpo há muito transmutado. O som se agiganta e pede atenção. Já não pode ficar despercebido. É o início, neste dia e nesta jornada, da batalha eterna entre a música e o barulho, entre a arte e a confusão. Os vidros lacrados não impedem a intromissão indesejada do mundo externo. Só atenua. Por isso vivemos neste plano, pesado, grosseiro e limitado, muito limitado. Então, por esta razão e por este motivo, devo colher cada grão de leveza, beleza e sutileza que cruzar meu caminho. Um trabalho infatigável.

      Sigo avançando. Devo avançar. “Giant steps”, de  John Coltrane chegou: Ágil, extenso, quase vertiginoso. Este tema de jazz puro como um diamante tocado em alta velocidade é quase um deboche frente ao trânsito que desacelera. As fusas que sustentam as “lâminas sonoras” de Coltrane estão em sexta marcha, a 10mil rotações por minuto enquanto o motor não passa da segunda marcha, a meros mil giros por minuto. O trânsito dá uma leve melhorada. Coincidentemente, eis que de repente entra “Blue Rondo a la Turk” com Dave Brubeck, que avança e freia, avança e freia, avança e freia, segunda , primeira, segunda, primeira, dá um tranco e engata um terceira marcha com o solo de Paul Desmond. O pé esquerdo relaxa um pouco e o carro vai macio como o piano de Brubeck.  A vida imita o jazz nesta manhã.

         O Sol é inatingível porém seus raios me atingem. Meus olhos turvam um pouco. Lembrei do eclipse em 1980. Com um filme preto nas mãos eu olhei direto para a majestade e a imponência e vi um círculo perfeito. À esquerda estava o Sumaré, com suas costas verdejantes, ao meu lado meu irmão, meu companheiro. Vimos juntos o eclipse.

         O asfalto clareou e convidou a acelerar de novo.  Que tal “Aquatarkus”, para comemorar a pista mais livre e mais rápida? Emerson, Lake and Palmer, dinossauros de um período distante. Ou deveria rebatizá-los de Elpassaurus ? Tarkus era um tatu em fusão com um tanque de guerra, criação de um cientista louco, primeira vítima de sua criatura. Depois de várias batalhas ele sucumbe frente ao Manticore, um ser misto de leão e alguma coisa com uma cauda terminada num martelo cheio de pontas. Um ser mitológico. Depois o Tarkus ressurge como Aquatarkus, que é um solo estrondoso de teclados e uma bateria tonitroante. Bélico e épico, evocando um espaço aberto e imenso. Mas basta olhar para fora e ver o espaço todo ocupado com mais e mais carros e lançamentos de alto luxo, três e quatro quartos espremidos em 70 metros quadrados. Insuficientes para acomodar o Tarkus, ou mesmo a bateria do Carl Palmer.

          Já que eu não tenho destino e nem pressa peguei o retorno, pois o outro lado está mais livre. Vou em direção ao “Hotel California” dos gerentes Don Henlen e Joe Walsh. Só não sei se quero ficar porque dá para fazer o check-out a qualquer tempo, mas nunca se consegue sair. Melhor procurar outras acomodações.

      Deste lado está mais livre. Mesmo que eu não tenha pressa nem destino prefiro a fluidez e a distância segura em relação aos outros veículos. Gosto da fluidez, como em “Boomtown”, de Mark Knopfler, onde a música escorre solta e calma, uma seiva doce e rica desta árvore infindável de muitos galhos. Mark Knopfler, com seu fraseado limpo, fruto de um dedilhado preciso.

     Qual o mistério que protege a música?  Qual magia foi conjurada há milênios, onde o primeira pancada num tronco oco, ou o primeiro sopro através de um osso seco, ou mesmo o vento sacudindo as folhas de uma árvore fez o papel de chave para este quarto oculto? O poder desta magia poderosa pode estar simbolizada nas trombetas de Joshua em Jericó. O som articulado vibrando em harmonia foi capaz de derrubar os muros sólidos. Física? Astúcia? Fé? Ou Orfeu tocando sua lira que acalmava as feras e os espectros que rondavam e guardavam o Tártaro (não o do dente, mas aquele mais profundo e vasto, no subsolo da antiga Grécia).

     Bem, como esta pergunta jamais será respondida, a marcação do tanque cheio e da temperatura do motor me inspiram a prosseguir. Ligo o ar condicionado e aumento o som porque o Rei chegou: “Jailhouse Rock”: A gang threw a party in the county jail... , e logo depois Eddie Cochran conclama “C'mom everybody” para se juntar à festa. A festa transbordou os muros da prisão e tomou as ruas do mundo todo. Ou quase todo, pois o mundo é muito grande e desigual. Controverso.

    As vezes sinto um pouco de inveja de não ter nascido na infância da música, onde tudo estava  por ser pescado ou colhido.

     A manhã avança com a certeza absoluta de que o giro sincronizado deste planeta  pequeno e insignificante não espera surpresas, santificados sejam Kepler, Galileu e Newton. Caminhões lentos e carregados de produtos bamboleiam e quase rastejam pelo asfalto afora. Um olho atento à estrada aguça o instinto de precaução contra os perigos de quem se dispõe a duelar com estes colossos imprescindíveis à vida moderna e consumista.

    Meu catálogo sonoro é muito amplo. E muito diversificado. Por conta disto ejetei Eddie Cochran e coloquei a Sétima sinfonia de Beethoven. Ludwig me incita à velocidade, com toda a energia contida em seu painel sonoro. Gosto da Sétima, não mais do que a Nona, mas a Nona é um monumento. Engraçado pensar que na estreia ela não agradou. Acho que pouca gente entendeu. Até hoje não entendem. Um maestro obscuro do início do século XX disse desta que: “parecia um monte de bois soltos no pasto, sem controle”. Pérolas e mais pérolas cuspidas de bocas infelizes, que juntas formam um amplo colar de tolices. Como o executivo daquela gravadora que recusou os Beatles, por achar que “conjuntos com guitarras não despertam interesse”. Não é que , no momento em que pensava nisso, subitamente entra “Day Tripper”?

    Já que a estrada segue para o sempre, segundo as palavras dos Allman Brothers, nada melhor neste momento do que “Road Trippin” dos Chilli Peppers, seguida de “Road to Nowhere”, com Talking Heads, e que fecha com “Hit the Road Jack”, do magnífico Ray. Como uma onda de choque poderosa as vibrações aumentam minha frequência. Quase inconscientemente meu pé afunda no pedal do acelerador. A sensatez reveste-se de timidez e se esconde, e o pé fica solto como um animal selvagem. O radar logo adiante é um raio gelado que me convida a descer à realidade deste mundo de possibilidades limitadas. O mundo concreto, este rasteiro réptil de tentáculos e gosma pegajosa, que retém as almas e mentes em sua mesquinha obtusidade.

  É hora de beliscar um pouco do sublime: “ O mensch, gib acht” canta a soprano Christa Ludwig, e o mundo em suspensão da orquestra ao redor ampara esta voz quase celestial. É a Terceira sinfonia de Mahler. Nada mais há que ser dito. Só ouvido.

 

       A estrada está mais vazia, mais silenciosa. Por longos minutos o enlêvo, quase um transe, proporcionado pela música de Gustav Mahler foi suficiente para me manter nutrido. Mas o mundo é  a buzina e não a harpa. A transição entre estes níveis tão díspares ficou a cargo da “Estrada do Sol”, de Tom e Dolores Duran. Era , de fato, de manhã, ainda. E o Sol e os pingos de chuva que haviam caído ontem, ainda estavam a brilhar. Ao vento leve que trouxe esta canção, vieram outras e outras, como “Trem das cores”, “Fadas”, “Canteiros”, “Nascente”, “Guarde nos olhos””Ponteio””Se eu quiser falar com Deus”, “Terra”, “Explode coração””Flor da paisagem””Admirável Gado novo””Romaria””Oceano””Sina””Disritmia””Flores””Nuvem cigana””Cais””Um girassol da cor do seu cabelo””Amor de índio””Corrida de jangada””Samba do avião””Detalhes”O bêbado e a equilibrista””Menino bonito”Foi um rio que passou em minha vida””Aquarela do Brasil””Réu confesso”Sabiá”Feitio de oração””Chega de saudade””Fita amarela””Modinha””Morena Tropicana””Alagados””Tropicália””Bandolins””Carinhoso”;”Atrás da porta”Tempo perdido””Fé cega, faca amolada””Arrastão””Volta por cima”, “Lanterna dos Afogados”;”Palhaço””Máscara negra””Preta pretinha””Mistério do planeta””Coração selvagem””Brasil Pandeiro”; “Todas elas juntas num só ser”O pequeno burguês””As rosas não falam”” O segundo Sol”; “Disparada””Telegrama””Correndo atrás”... (pausa para respirar e trocar de marcha), “O trenzinho do caipira”, “Rosa de Hiroshima””Chão de estrelas””Juízo final” “O que é o que é””Pavão mysteriozo”, “ Eu quero é botar meu bloco na rua”,”Pétala””Apesar de você””Sentado à beira do caminho””Palco” ”Construção” (depois de “Construção” pouca coisa pode resistir, como se fossem bolas de sorvete expostas ao Sol do sertão de Asa Branca), “Asa Branca” e a ária da Bachiana número 5. Feliz deveria ser o país que produziu tudo isto.

Ufa!  Depois desta Saramaguização, e com a garganta seca de emoção e sede resolvi dar uma pequena parada para tomar uma água de coco. No meu caso, por volta desta hora da manhã e após a sequência musical apresentada, é muito natural que eu apresente um estado alterado de consciência.

O gosto da água em contato com a língua se converte na nota fá sustenido. A cor da cobertura da barraca de água de coco soa como o acorde de Dó sustenido menor . O rosto duro do vendedor me lembra um naipe de contrabaixos tocando na região grave. Não espero que alguém entenda o que eu estou falando. Este momento não pertence ao mundo real. Fico alguns minutos fazendo longos círculos para poder pousar com suavidade em solo pedregoso.

     De volta ao carro retorno lentamente para a posição de decolagem. Um quarto de tanque evaporou nesta brincadeira. Recomeço de forma bem tranquila, quase em silêncio com “Hermitage” de Pat Metheny.  Logo depois “Focus II”, do Focus, tão gentil quanto um mousse de chocolate.  “Kathy's Song” de Paul Simon é uma sequência coerente, e depois “Guinevere”, de Crosby, Stills and Nash; “Ten year's gone”, do Led Zeppelin. “Tomorrow”, de Paul McCartney. “No backstage pass” do Caravan, “Fat old sun” do Pink Floyd, “The Lamia” do Genesis, “Riders on the storm” do Doors, “She's leaving home”, dos Beatles;”1974” do Terço, “Impressioni di Setembre” da Premiata Forneria Marconi, deixando uma pitada de sabor italiano nesta salada. Todas músicas tranquilas  Ah! E é claro “Autobahn” do Kraftwerk, os robôs teutônicos, parafraseando minha viagem.

   Quanto tempo poderia durar esta viagem? Quanta música poderia caber num só dia? Ou qual extensão do planeta poderia ser forrada com todas as partituras já escritas? Quanto dinheiro já foi gasto nesta indústria? Quanto prazer e quanta dor estão inseridos, misturados, derramados, depurados, injetados, devotados, enclausurados, declarados, ocultos, confessados, expelidos e expiados em entes incorpóreos, que só existem quando lhe damos ouvidos? Não pergunto para saber. Na verdade nem quero. Só quero seguir até o fim da vida dando ouvidos. E tendo ouvidos.

  “Achille's last stand”, uma apoteose de guitarras, a preferida de James Patrick Page. “Oh the sweet refrain, Soothes the soul, calms the pain; Oh Albion remains, sleeping now to rise again”. Minha temperatura sobe de novo. Ao ouvir bem de perto surge o fascínio de perceber a sutil arquitetura das várias camadas de guitarra sobrepostas. Um músico assume o papel de ourives, por vezes de garimpeiro, arquiteto,  em outros momentos é um tecelão de sons e não de linhas de tecido. Como Michael Oldfield em “Ommadawn” e em “Tubular Bells”, sozinho num estúdio, fazendo cantar os fantasmas dos druidas célticos. Ou Hermeto Paschoal, um mago moderno, figura branca e bizarra, quase etéreo vertido em pianos e chaleiras. Ele deve ser quase 100% só música. Miles Davis, Michel Legrand, Chic Corea, Duke Ellington, Bernard Herrmann, Nino Rota, Bernstein, Charles Mingus, Piazzola, George Martin,  Ravi Shankar, Fela Kuti, Vaughn-Willians, Fauré, Carl Orff, Camargo Guarnieri, Ernesto Nazareth, Muddy Waters, Django Rheinhardt, Les Paul, John Mayall, Prokofiev, Egberto Gismonti, Marvin Gaye, James Brown, Sam Cooke, Duane Allman, Peter Gabriel também são 100% música.

 

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   Apesar do Sol caminhar célere mas sereno, e por conta disto as horas avançarem, não sinto fome. Uma incomum saciedade me acompanha neste dia. A cidade sem fim ficou para trás, mas a mente em estado alterado se mantém. Sinto os dedos gelados, não sei se por causa do ar condicionado ou do êxtase.

       A paisagem já mudou bastante, agora com várias propriedades rurais que se sucedem. Uma visão bucólica  em contraponto à feição urbana de grande parte das estradas que penetram profundamente no corpo imenso das megalópolis. “Música urbana”,” Babylon by bus” e a meiga ironia de “Nothing but flowers” do Talking Heads, onde David Byrne canta de forma invertida a nostalgia de um observador saudoso da paisagem urbana num mundo dominado pela natureza revirginada. O  mundo não pode escapar das megacidades. Alguns dizem que elas são a solução para o sociedade moderna e futura. Quem sou eu para negar esta afirmação, eu que nasci na metrópole, mesmo que tenha sido em sua periferia ?.

    A tarde chega e é o momento calmo antes da tempestade, antes das resoluções do dia, dos fechamentos de negócios. O Sol já se inclina cortejando o Oeste, olhando já de esguelha para o mundo que corre desesperado. Hora de aumentar o volume para espantar o sono que se insinua. Estou bem longe de casa, já é hora de retornar. “Red House”, de Jimi Hendrix, versão “Hendrix in the West”. Creio que a melhor, se não uma das melhores performances de guitarra já materializadas neste mundo ingrato. Onde está Hendrix hoje? Quem foi Hendrix?, podem perguntar estas infindáveis legiões nascidas na Era da Informação, que plugam guitarras de brinquedo em vídeo games. Ele o mago, a ponte entre o ruído e a música, entre o caos e a harmonia, abruptamente retirado de nosso convívio. Onde andará  Jimi Hendrix?

     “Jumpin' Jack Flash, it's a gas, gas, gas”, outro riff imortal do pirata-da-perna-de-pau Keith Richards. Um sobrevivente. Esta geração aos poucos vai partindo, pois nosso tempo de vôo é muito curto. Richard Wright, Lou Reed, George Harrison, Jon Lord, Syd Barret, John Entwistle, Raul Seixas, Joey Ramone, Marvin Gaye, Miles Davis e James Brown velam por nós.  Então, como um réquiem para estes mortos ilustres, eu vou de “Baba O'Riley”, The Who. Outro riff poderoso. “Don't cry, don't raise your eyes, it's only teenage wasteland”; “Não chore mais” enxertada na ponte. Gil, Towshend e Marley de comum acordo. Não chore mais, pois a terra devastada da adolescência não pode virar a terra estéril da maturidade. A terra abençoada da adolescência é a matriz de nossa alegria perpétua, a colheita feliz na maturidade. Quem, como eu, cresceu nutrido e embebido em tão  saborosa fonte não tem motivos para se lamentar, só para celebrar.

   Na  faixa da direita, atrás de um ônibus de excursão, começou a tocar “Jokerman” de Bob Dylan, seguida de “The times they are a-changin”. É verdade, os tempos estão sempre a mudar. E como mudaram! “Changes” de David Bowie, veio corroborar esta afirmativa. Ele o camaleão, sempre trocando peles e estilos. Pedras que rolam não criam limo, não é verdade? Caetano também, velho mas novo ao mesmo tempo. Toquei “O estrangeiro”, “Língua” , “Eu sou neguinha” e “ O quereres”, obra-prima. “Ah bruta flor do querer, ah bruta flor! “Seu olhar” do Gil, vou ouvir até morrer: “eu quisera ter tantos anos-luz quantos fosse precisar, prá cruzar o túnel do tempo e do seu olhar”.

    Acelero. Os contornos da cidade já se avolumam no horizonte. O ar mais denso, o ruído crescente, o volume de tráfego, os carros novos, os carros mal conservados, os ônibus já cheios, saída de escola, final de turno de trabalho, pessoas cruzando as passarelas. As nuvens dançam e deslizam no céu ainda azul, mas que vai enegrecendo, repelindo o Sol que se afasta mais e mais. O crepúsculo logo chega, é a hora da reflexão, das sombras longas, do medo atávico da noite.

   Eu gosto demais de “Deacon blues”, do Steely Dan. Me dá um nó na garganta quando Donald Fagem canta : “I cried when I wrote this song, sue me if I play too long. This brother is free, I be where I want to be” e o refrão “ I learn to work the saxophone, and I play just what I fell; drink scotch whisky all night long and die behind the wheels: they got a name for the winners in the world, I want a name when I lose. They call Alabama the crimson tide. Call me Deacon blues”. Fagen e Becker, uma das melhores duplas na música. Mas me enche de melancolia também. Desligo o som por uns instantes. O dia se foi, a noite chega

    Chegou a hora , chegou quem estava faltando: Frank Vincent Zappa, uma escola inteira de música. “Black Napkins” e seu lancinante solo de guitarra. “The black page”, uma estrutura inusitada e vertiginosa construída sobre um solo de bateria. Coisa para gente grande tocar. Quase uma outra dimensão. “Zombie Whoof”, com suas idas e vindas, uma pulsação quase hipnótica e muito carnívora. “Don't mess with the zombie whoof”, canta o coro feminino quase no final. Mais um pouco e eu me transformaria no monstro. Depois “Don't eat the yellow snow”, “Illinois enema bandit”, “City of tiny lights”, “Montana”, “We're turning again”, “Uncle remus”, “Andy””Cosmic debris”, “Sofa”, “Wild love”, “Be bop tango”, “Evil prince”, “Caroline hardcore ecstasy”, “The torture never stops”, “The idiot bastard son”, “Jesus thinks you're a jerk”, “Peaches in regalia” e muito, muito mais. Zappa foi único, um sistema solar dentro de si mesmo, criador de música para sonhadores em ambiente hostil.

 

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       Meu objetivo foi alcançado. Este dia foi singular. Uma viagem musical, uma viagem dentro de uma viagem. Uma homenagem. Meu tanque abaixo de um quarto me faz voltar ao mundo real, as luzes dos freios piscam incessantemente, as setas como vaga-lumes nesta floresta  móvel. Um dia comum para a larga maioria dos motoristas que comigo dividem o asfalto. Tal qual o refluxo de uma grande maré os automóveis e seus ocupantes voltam para suas garagens e casas. Amanhã tudo de novo, a vida segue seu roteiro.

     Estaciono meu carro e fico por longos minutos em silêncio. O silêncio, este estado de perfeita harmonia, o desafio permanente dos compositores, tão precioso quanto raro. Quem precisa de música nestes instantes?

 

                                                         

                                                                            Ivan Henrique Roberto

                                                                                abril de 2014