Pandemia

          Estava em casa e liguei a TV, um gesto mecânico que de tão repetido virara hábito, mas que estava entrando em desuso pois a atração pela tela plana preta já não é a mesma, quem sabe pela escassez de conteúdo, talvez pela escassez de interesse. Quem sabe o ruído de fundo do aparelho ligado faça parte da mobília e contribua para a normalidade do ambiente. Era o horário do noticiário e o cansaço em conluio com o tédio era uma barreira formidável para se prestar atenção em qualquer imagem ou texto.

       Em um momento qualquer, no meio da transmissão, uma palavra escorreu pelo ar e penetrou na minha escassa atenção: “pandemia”. Meu olhar fora fisgado a partir daí, e imagens de pessoas com características asiáticas pontuavam a matéria jornalística. O tom da matéria era inquietante, ou melhor, diria se tratar de algo alarmante. Outro vírus ameaçava a existência da humanidade, periodicamente passamos por isso, não é? Desta vez parecia ser diferente, o suposto vírus havia mudado de patamar e era esquivo, difícil de ser entendido, diferente de seus primos que haviam aparecido em outras ocasiões prometendo acabar com tudo mas perdiam a força e a corrida contra a humanidade num breve espaço de tempo. Era uma espécie nova, ou renovada, mais difícil de lidar.

       Desliguei a TV e fui me ocupar de outras coisas, fui procurar alívio imediato para se contrapor a um dia cheio de problemas. E o dia terminou como sempre terminam os dias, com a certeza de que amanhã chegará outro, quem sabe melhor...

      No dia seguinte fiquei mais atento e procurei acompanhar o noticiário. O surto já era realidade e o mundo já se perguntava o que de fato estava acontecendo. O tempo dedicado à cobertura do novo surto aumentara de tamanho no espaço total dos noticiários, sinal evidente da gravidade do evento. Na busca frenética pela melhor informação, ou quem sabe a informação mais rentável, o atropelo pela novidade impunha dados desencontrados, trajados de inconsistências e inverdades. Tudo ainda muito nebuloso, mas o mundo vive em sobressaltos, flertando com o abismo em cada esquina, em cada nova encruzilhada.

      Mais um dia se passa e mais migalhas de informação que chegam por minuto. Estamos curtidos pelo excesso de preocupação suscitados pela última ameaça global? Afinal o fim do mundo já havia sido descartado desde a última pandemia, e depois de um início promissor o último vírus perdera o fôlego e ficara desmoralizado. Os humanos haviam vencido de novo. Os humanos são invencíveis, na mesma proporção de sua soberba.

     Da voz treinada do locutor salta uma explicação que parece absurda, que um suposto homem chinês, quem sabe entediado de comer a mesma comida de sempre, resolveu aventurar suas papilas gustativas em outras carnes mais exóticas, e neste caso achou que pudesse experimentar o gosto inusitado da carne de morcego. O ser humano é mesmo peculiar e aparentemente sem limites, então que mal haveria em petiscar algo estranho? Não é lá, naqueles rincões do mundo que as opções gastronômicas tendem a ser um tanto exóticas? Se até a carne humana já foi degustada em inúmeras ocasiões ao longo da história, por que não a de um morcego? Tudo bem, desde que não me ofereçam, pois terei que declinar polidamente não sem antes experimentar uma ânsia de vômito que soaria indelicada e descortês para o ofertante.

      Depois de tantos alertas de que seria muito melhor para a saúde humana que não entrássemos em contato com certos organismos silvestres desconhecidos, não espanta que, dado o caráter curioso da espécie humana, se avance sem pejo e sem pudor pelas entranhas da natureza, e desta forma o que supostamente gostaria de estar escondido e a salvo revela o porquê de sua distância: “Não venha brincar comigo pois minha brincadeira pode lhe causar mal, muito mal. Eu não quero a sua presença, eu não te chamei aqui, você veio por sua conta e risco então aguente as consequências”

     As consequências neste caso começaram a se espalhar em rápida expansão. Antes que o inimigo fosse desvendado vários corpos esperavam em necrotérios, envoltos em dúvidas e incertezas. E já que o mundo se tornou pequeno e acessível, conectado e com seus pontos atingíveis em poucas horas, um simples vôo comercial tem o condão de trazer além de passageiros a negócios ou lazer uma quantidade imensurável de pequenas organelas invisíveis a olho nu, indetectáveis pelos possantes aparelhos de escaneamento ou pelos oficiais de imigração. Assim, em questão de dias o mundo foi tomado pelo menor inimigo que se conhece: um vírus, um ínfimo vírus, a mais perversa das criações.

     E o mundo mudou. Foi forçado a mudar. Foi colocado de joelhos perante o menor inimigo que se poderia conceber, um inimigo tão sorrateiro e tão dependente, já que não tem como ter vida própria e só são viáveis invadindo a casa alheia. Um vírus solto no espaço não tem como resistir, um vírus que adentre uma célula prospera e pode ser fatal. E são, muitas das vezes são. Desta vez parece pior, porque aprimorado, evoluído, uma nova geração mais esperta, mais furtiva. E a contagem de corpos só aumenta e o pânico acompanha esta escalada. Não é mais um boato, não é apenas uma moda passageira, desta vez é real. E chegou como uma avalanche de más notícias, maus presságios, incerteza e medo. Medo de não se saber com o que estamos lidando, o medo ancestral e irracional do desconhecido. O ser humano é uma coleção de medos. Logo a morte se apossou do imaginário. E pronta para o trabalho logo a morte começou sua coleta e estabeleceu sua loteria. Quem seria escolhido? Qual grupo seria o alvo primeiro da implacável foice? A morte está sempre de prontidão, ansiosa por mostrar serviço.

       Alerta sobre o mundo, este mundo tão tenso, diverso e controverso. Começam as especulações sobre o que fazer, sobre com o que estamos lidando. Os especialistas são convocados a opinar no calor do momento e são só palpites, todos estão tensos porque todos querem uma solução rápida e eficaz, afinal não é a primeira vez que isso acontece, não é mesmo? Muito saber acumulado até hoje, mas e agora? Com o quê estamos lidando? Este é diferente. Esta criação perversa é tão perversa que nunca é a mesma, ela se modifica, ela sofre mutação, ela muta, ela muda, ela foi feita para enganar, ela quer pôr à prova a perícia dos especialistas. A respiração é suspensa frente à incerteza, a respiração que em breve será sufocada.

       Pelo menos lhe deram um nome, se ainda não podem combater pelo menos deram um nome para catalogar, para identificar, dê ao seu inimigo um nome que logo ele fica palpável, quase íntimo. E tem o nome de “Coroa”, mais uma coroa para ser temida, uma nova coroa de espinhos fincada na cabeça da humanidade. Não é a primeira e quem poderá saber se não será a última? O mundo está em choque, o mundo está parando e a contagem de corpos só aumenta.

      E o medo se estabeleceu em definitivo. O medo paralisou os aviões, paralisou os trens, paralisou os navios, paralisou as pessoas ao redor do globo, paralisou e isolou. Cada pessoa poderia trazer consigo a sentença de morte de seu próximo, mesmo não tendo a intenção. O medo é invisível e não tem cheiro, o único traço em comum para toda a humanidade. Ninguém jamais pensou que poderia ser assim, ninguém jamais se preparou para isto e todos devotaram uma pequena ponta de esperança nos especialistas que foram colhidos pela surpresa no calor do momento, tendo que dar respostas que não tinham no calor do momento.

       O Papa sozinho na praça orando por nós, por todos, um homem idoso e frágil. Uma cena por demais comovente e simbólica, um retrato irretocável de nossa fraqueza. Neste momento não havia espaço para nenhuma soberba. Solitário e vertido em cordeiro de Deus, querendo expiar os pecados do mundo. São muitos pecados para um homem só expiar. E além de tudo, e sobretudo, o Papa é humano, finito e indefeso.

      Pois bem, a sorte está lançada, a realidade se impõe e vamos ter que conviver com isso sem remédios, sem defesas e tateando no escuro. E mal começou a corrida o maldito vírus já mostra outras versões de si mesmo num jogo de gato e rato com os cientistas, sendo pequeno e maleável, ágil e esquivo, um ser mutante por vocação e princípio.            Aliados ao vírus se mostraram muitos dos que se diziam líderes de seus povos, ignorando e desdenhando das evidências que começaram a aparecer e as medidas de precaução sensatas sugeridas pelos especialistas. Colocando a razão do dinheiro à frente da razão do bem estar e proteção dos povos, foram os maiores traficantes de almas de nossa era, fornecedores convictos de uma colheita imensa de corpos destroçados pela falta de ar, de vidas interrompidas sem que ao menos pudessem ter o conforto final de estar próximos aos seus bem amados, pais e mães que não puderam se despedir de seus filhos, filhos e filhas que não puderam ao menos ver a imagem derradeira dos rostos de seus pais, enterrados em valas comuns, famílias inteiras que partiram juntas em sua jornada final.

      A expectativa de que talvez desta vez a humanidade pudesse aprender com essa dolorosa experiência e alcançar um novo nível de convivência e compaixão está para ser desacreditada todo dia, pois os homens são o que são e o isolamento e o distanciamento social só fez ressaltar o que cada um tem em sua essência, os bons permaneceram bons e os maus ficarão piores, pois que reconheceram e se identificaram com um número imenso de semelhantes escondidos nas sombras da contenção moral, e que agora perderam a vergonha de sair para a claridade e expor a podridão de suas entranhas até então ocultas. Não espanta que o culto à mediocridade e ao ódio tenho criado uma musculatura invejável nestes dias incertos e a guerra tenha voltado à ordem do dia. Alguém surpreso com isso? .............................................................................................................................................

      Acordei num certo dia que não guardei a data, pois os dias estão insuportavelmente tediosos e assemelhados e decidi sair de casa para ver a minha cidade esvaziada. Com o corpo encharcado de álcool gel, portando máscara e muito receio eu peguei minha bicicleta para rodar pelas calçadas, ruas, vielas e avenidas num dia útil comum, que outrora estaria frenético, ruidoso e congestionado, as lojas e oficinas abertas, o comércio atendendo as necessidades prementes e as não tão urgentes assim, os restaurantes abrindo suas portas e mesas para saciar a fome dos cidadãos comuns. Mas não hoje, hoje está deserto e as poucas pessoas que se arriscam nas ruas só o fazem por extrema necessidade, ou por extrema imposição, não sendo possível distinguir com exatidão suas expressões por trás de máscaras, mas com a certeza de que seus olhos transparecem o medo e a insegurança destes dias sombrios.

      Minha curiosidade foi maior do que a sensatez de permanecer guardado de maiores riscos de contaminação. Queria testemunhar com meus próprios olhos o espaço urbano esvaziado de seus entes mais frequentes. Deslizo suavemente e sem pressa pelas calçadas vazias, entro nas ruas com tão poucos veículos que custo a crer que não corro o risco de ser abalroado por estar tão descuidado num espaço que não seria meu, entro nas faixas exclusivas dos ônibus e seus pontos de embarque estão vazios, subo os viadutos e do alto olho as vias expressas completamente livres, elas que em dias normais, ou quando a vida era normal estavam sempre congestionadas, drenando a energia dos motoristas naquele embate diário entre a partida, o destino e o tempo dispendido entre a partida e o destino.

     Desço do viaduto, faço o contorno e olho para os sem-teto que se acomodam embaixo da estrutura de concreto. Quem olha por eles? Serão imunes ao vírus ou são apenas invisíveis e fora das estatísticas oficiais?

      Paro por uns instantes defronte a um telão ainda em funcionamento que transmite imagens do que está acontecendo pelo mundo afora. Outras cidades vazias, e animais que se aproveitam da ausência de seus maiores inimigos para se aventurarem nos ambientes que outrora lhes pertencia. Agora aparecem imagens de praias urbanas com a faixa de areia imaculadamente branca, sem marcas de passos e outros indícios da presença humana, sem um naco de lixo ou resíduo, apenas alguns pombos órfãos privados das migalhas que lhes sobram.

      Sigo em frente em direção ao centro da cidade onde a intensidade das atividades sempre foi maior. O que eu vejo é um quadro ao mesmo tempo desolador e curioso, desolador porque tudo está vazio, muito vazio, qual uma cidade fantasma que tivesse sofrido uma calamidade instantânea. Curioso porque o vazio de gentes e veículos não faz parte da rotina, então o quadro geral lembra mais um cenário de um grande estúdio de cinema preparado para uma filmagem de imensas proporções, e isto tudo causa uma estranheza, uma situação desconcertante, uma sensação de inutilidade. A vida em suspensão parece estar fechada para balanço, avaliando o que deu certo, o que não deu, o que está fora do lugar, o que merece continuar e o custo de tudo isso.

      Ainda é cedo e claro e tenho energia de sobra nas pernas para prosseguir minha exploração. Vou em direção a uma área residencial e percebo muitos rostos nas janelas e varandas. Sei que muitos devem estar se perguntando o que aquele maluco inconsequente está querendo, andando assim desamparado enquanto os telejornais não dão conta da quantidade de óbitos pelo mundo afora. Eu, de minha parte, olho para cima e consigo sentir a aflição de estar confinado por tanto tempo, e sei que muitos gostariam de estar no meu lugar, neste momento. Muitos devem estar desesperados, desiludidos, se defrontando de forma inesperada com o pior de todos os críticos que é si mesmo. Muito tempo ocioso para se auto avaliar.

      Ao mesmo tempo em que faço estas reflexões vou vendo os funcionários destes prédios de moradias confortáveis se esmerando para zelar pela segurança e tranquilidade dos moradores, em detrimento da sua saúde e segurança. Estes podem ficar expostos ao risco, assim como os entregadores que se esforçam para matar a fome de quem não pode sair do conforto e segurança de seu lar. No fim das contas é apenas a continuação histórica de uma sequência lógica, ou que foi decidida ser a lógica, que é a existência de dois tipos de pessoas: aquelas que estão com os pés no chão e aquelas que estão assentadas nos ombros daquelas que estão com os pés no chão, afinal de contas sem uma fundação não se pode construir uma casa repleta de conforto.

     Não estou alheio a isto, mas não tenho força ou poder para influir ou alterar o rumo das coisas, então eu me afasto com o coração pesado e as costas molhadas de suor.

     Ainda quero rodar mais um pouco para quitar de vez essa curiosidade que sempre me acompanhou, o delírio de ser um personagem num filme apocalíptico em que o mundo está deserto e a humanidade foi extinta e eu sou apenas um observador externo a atestar a falência definitiva da sociedade humana. Talvez eu tenha visto filmes demais ou lido livros demais, quem sabe eu pense demais e isto esteja afetando meu raciocínio. De repente me recordo da peste negra do século quatorze, mais uma tentativa fracassada de Deus em dar cabo da sua criação. Acho que Deus de tempos em tempos fica enjoado e enojado de seus feitos, caia em momentos de frustração e tédio e para melhorar o humor busca uma borracha poderosa para apagar seus desenhos incompletos. Ele já tentou em outras oportunidades afundando terras, mandando chuvas intermináveis, pragas terríveis, vulcões convulsivos, mas nada foi eficiente o suficiente para extirpar essa criação teimosa, essa contradição ambulante, essa causa e consequência, ao mesmo tempo que morde e sangra em seguida sopra e estanca.

    Esse pensamento me causa um certo alívio, pois o homo sapiens, embora em grande parte não seja tão sapiens assim, engloba em seu conjunto e deixa que atuem, muito a contragosto, diga-se de passagem, alguns teimosos, renitentes, abnegados, ingênuos de boa vontade que ainda acreditam na redenção e na salvação, e é por estes que a vida ainda vale a pena, e é para estes que eu dedico esta aventura ciclística, e são sempre estes os que salvam o dia no final.

     Meu fôlego novo imprimiu um ritmo forte em minhas pedaladas. Mudo o meu rumo na direção de casa pois acho que já vi o suficiente, já saciei minha curiosidade. O mundo não vai acabar, o mundo não acaba, só as pessoas vêm e vão. Já é quase de noite quando alcanço o portão de casa. Daqui a pouco mais uma dose da enxurrada de más notícias ocupa o espaço das transmissões. Só quero saber da corrida em busca da cura, da solução, o resto é somente uma autoflagelação, o resto é somente a dor solidária pelos que perderam a corrida, o resto é a indignação pela falta de compaixão por parte daqueles que deviam ser os guias, mas guiaram o povo em direção ao abismo, com suas mentiras, trapaças e desinformação, na verdade uns seres deformados moral e eticamente. Há de ter alguma forma de justiça para estes traficantes de almas, seja neste mundo ou em qualquer outro. Deus deveria estar atento e não pensando em novas punições, mas quem poderá adentrar a mente de Deus? Deus é inescrutável e eu sou apenas um ser medíocre e indignado.

     Chego, guardo minha bicicleta, tomo um banho para limpar as impurezas mesmo que várias camadas de álcool gel possam prover a sensação de um manto protetor que tem me envolvido nestes dias cinzas. Cansado, mas estranhamente satisfeito de ter realizado um desejo secreto que eu espero nunca mais possa ser realizado, pois o custo de cumprir este desejo é insuportável para com meus concidadãos e toda a humanidade.

    Sou imune? Não tenho como saber. O perigo ronda por todos os ângulos possíveis e as notícias ainda não trazem nenhum tipo de alívio. Desta vez não é nada pessoal, ao contrário, parece ser completamente impessoal. Esta não é a primeira vez e certamente não será a última. Tenho certeza de que somos todos parte de um grande experimento, estamos sendo testados por toda a nossa existência, simples cobaias enjaulados num grande laboratório, à disposição. Simples matéria prima, nada mais do que isso. E muitos acham que são o suprassumo da criação, filhos prediletos destinados a brilhar.

      Sou um sobrevivente? Sim, todos somos. Com pavios curtos que queimam sem misericórdia, sem saber quando é o final, temendo o que nos aguarda do lado de lá da porta. Já dei de ombros muitas vezes, pois se não tenho como saber onde é o final porque eu deveria me preocupar?

    Se já me arrisquei? Hoje eu me arrisquei, mas não sei ao certo o número de vezes, algumas vezes eu nem tinha consciência de que estava me arriscando, na santa inocência de se pensar imortal. Por certo que não era a minha hora, fui descartado da remessa daquele dia. Ou talvez não estivesse devidamente processado de forma adequada para servir ao propósito específico daquele dia. O fato é que cheguei até aqui, e não tenho nenhuma intenção de parar por enquanto, pois gostaria de ver algumas coisas mais.

Ivan Henrique Roberto 10.04.202