TESTAMENTO BIOLÓGICO PARA UTILIZAÇÃO DE ÓVULOS E SÊMEN POST MORTEM: Os direitos sucessórios do concebido post mortem. 

Bruno Henrique Bernardo Fahd

Eric Abreu Caldas[1] 

RESUMO

Aborda a possibilidade de concepção e nascimento de bebês a partir de óvulos ou de sêmen deixados sob instrução escrita dos pais falecidos, focando-se nos direitos sucessórios deste concebido. Analisam-se também as previsões de entidades médicas a respeito da matéria bem como objetiva-se verificar a possibilidade jurídica da ocorrência de tal fato, ou seja, o reconhecimento do fato para aplicabilidade do Direito Brasileiro.

Palavras-chave: Testamento biológico. Post Mortem. Direito. Sucessório.

  1. INTRODUÇÃO

 

O chamado "testamento biológico" consiste na ideia de nascimento de bebês a partir de óvulos ou de sêmen deixados como "herança" por pais já mortos. O direito brasileiro não trata legalmente tal hipótese jurídica, o que causa alvoroço quando tal possibilidade converte-se em caso prático.

No Congresso Nacional, já houve passagem de alguns projetos relacionas à reprodução assistida, a exemplo do Projeto de Lei número 1184/2003. Este tinha como fim criar normas jurídicas sobre a reprodução humana assistida. Em seu conteúdo o projeto veda, expressamente, a ‘barriga de aluguel’, estando, desta forma, antes mesmo de existir tal lei, colidindo com a atual resolução do Conselho Federal de Medicina.

Não obstante, houve tentativas de inclusão de dispositivos legais que pudessem acalantar a discussão que se fundava quando o assunto via à pauta, dos quais alguns podemos comentar mais a frente. Fato é que nenhum instrumento consolidou e tratou da matéria de forma que os debates cessassem.

Constitui-se então a discussão, diante da lacuna legislativa no ordenamento jurídico brasileiro, consoante à polêmica de tal caso haja vista discordâncias quanto à possibilidade de realização de tal testamento, aquecida ainda pelas entidades médicas que tratam a matéria ante a inexistência de dispositivo legal.

Buscar-se-á então, mediante os estudos realizados no presente trabalho, analisar a reprodução humana medicamente assistida, sua possibilidade jurídica de acontecimento, consistente no reconhecimento do fato pelo Direito, pondo-se consequentemente em estudo, os direitos do concebido post mortem.

2 O DIREITO SUCESSÓRIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A sucessão, ou o próprio ramo do Direito denominado ‘Direito Sucessório’ são assuntos de grande extensão e complexidade e, como não objeto central de nossa discussão, não caberia aqui comportá-los todos. Ateremos-nos, pois, a uma breve e genérica introdução à matéria, de modo tão somente esclarecedor aos assuntos tratados em seguida.

A palavra “sucessão”, etimologicamente, remete ao significado de continuação, de seguir determinada situação. Desde então, temos já a ideia de continuidade de algo. No direito, trata-se, pois, da transmissão de bens.

O Direito Sucessório é parte do Direito Civil (ou Privado) que discorre sobre a transmissão de bens de um individuo depois de sua morte. E não somente. Pode-se dizer que não só da transmissão de bens em si, mas das relações jurídicas de uma pessoa, após seu falecimento. Não obstante, há possibilidade de sucessão inter vivos, que ocorre quando alguém substitui outra pessoa ainda em vida, quanto a seus direitos e obrigações.

Quando da morte, atenta-se à supramencionada transferência de direitos e obrigações. “A sucessão pressupõe a ‘não-extinção da relação jurídica’, uma vez que o herdeiro assume os direitos e obrigações do antigo titular” (DINIZ, 2006. p.3-4). Em termos práticos, a herança deixada responderá, tão somente, dentro de seus limites. Quitam-se as dívidas do falecido, somente depois realizando a partilha quando restarem bens para tanto. Exclui-se, pois, a possibilidade de “herança negativa”, já que os herdeiros são obrigados a arcar com dívidas do sucedido.

Vejamos a seguir algumas especificidades, tais como quem está apto a suceder, quais as formas de sucessão e quais os tipos de sucessores o Código Civil tratou de prever.

2.1 DA SUCESSÃO

Quanto à sucessão, como qualquer negócio jurídico, há de se considerar primeiramente a aptidão de um individuo para realizar determinado ato. A capacidade sucessória é “capacidade sucessória é a aptidão ou idoneidade para receber a herança ou o legado, isto é, é a capacidade para suceder” (GAMA, 2003, p. 60). Tem capacidade sucessória aquele que está apto e idôneo para receber herança ou legado, não estando em condição, portanto, de qualquer impedimento legal.[2]

Para averiguar se é um individuo portador de capacidade sucessória, observa-se a lei vigente à época da abertura da sucessão. O atual Código Civil prevê em seu artigo 1798 que são legitimadas “as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. O intuito de tal dispositivo parece ser evidenciar a hipótese do sucessor, falecido antes do sucedido, não ter mais capacidade para herdar.

É importante atentar também para o inciso I do art. 1799 do Código Civil, de redação: “Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”. O dispositivo parece transpor a vontade do legislador em permitir que uma pessoa, no exercício de sua vontade, deixe herança ou legado à filho ainda não concebido, desde que por testamento. Parece mais aberto ainda a tal possibilidade, o legislador, se pensando que mesmo coibindo a sucessão a pessoas não nascidas quando da abertura da sucessão (art. 1798), ele se deu ao trabalho de pensar na exceção do inciso I do artigo 1799.

Seguinte à matéria, observa-se a negativa da capacidade sucessória. Tratam-se dos incapazes de suceder, que se qualificam em duas classificações: excluídos por indignidade (arts. 1814 - 1818, CC) e os deserdados (arts. 1961 – 1965, CC).

A sucessão ainda é discriminada em tipos. Vejamos uma a uma.

A sucessão mais conhecida é a Sucessão Legítima, também chamada de sucessão ad intestato. Esta decorre da lei e segue a vocação hereditária disposta no art. 1829 do Código Civil.

Art. 1829 do CC – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais.

Na falta de todos os enumerados no artigo citado e faltando também companheiro sobrevivente, ou na hipótese de todos renunciarem, o direito sucessório é transmitido ao Município ou ao Distrito Federal, quando tratar-se de herança localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, se situada em Território Federal. Unicamente na hipótese de sentença declarando a vacância dos bens, os bens passam ao domínio do Poder Púbico, observados ainda cinco anos contados da abertura da sucessão, para que nesse lapso de tempo possa o herdeiro reclamar judicialmente a herança que lhe é de direito.

A sucessão pode ser também testamentária. Esta ocorre decorrente de disposição última de vontade. Há de se obedecer, nesta hipótese, a forma legal, devendo tal declaração de vontade ser feita solenemente, através de testamento ou de codicilo.[3]

Observa-se quanto ao testamento, à ressalva ao direito dos herdeiros necessários, disposta em lei, não obstante a liberdade de testar também legalmente assegurada. Se detentores de capacidade sucessória, os herdeiros necessários têm direito à metade do patrimônio do de cujus, não podendo esta parte ser disposta em testamento.

Na transmissão hereditária conjugam-se dois princípios: o da autonomia da vontade, em que se apóia a liberdade de dispor, por ato de última vontade, dos bens, e a da supremacia da ordem pública, pelo qual se impõem restrições a essa liberdade. Com isso protege-se a propriedade e a família, ou melhor, o interesse do autor da herança e o da família. Tendo em vista o interesse social geral, acolhe o Código Civil o princípio da liberdade de testar limitada aos interesses do de cujus e, principalmente, aos de sua família, ao restringir a liberdade de dispor, no caso de ter o testador herdeiros necessários, [...] hipótese em que só poderá dispor de metade de seus bens, pois a outra metade pertence de pleno direito àqueles herdeiros, exceto se forem deserdados ou excluídos da sucessão por indignidade. (DINIZ, 2006, p. 175).

A sucessão pode ser ainda a título universal, instituindo um herdeiro, ou a título singular, quando estabelece um legatário. Na sucessão a título universal, o sucessor não recebe um bem determinado, mas uma parte indefinida dos bens, ou todo o patrimônio. A sucessão a título universal pode ocorrer tanto na sucessão legítima como na testamentária.

Na sucessão a título singular, o sucessor herda apenas um bem, ou um conjunto de bens, certo e determinado. Esta é denominada de legado. Aqui, o sucessor é denominado legatário. Legado e herança se diferem, pois esta última trata-se de uma universalidade, é todo o patrimônio do autor. O legado é coisa individualizada deixada para transmissão específica a alguém.

Sabidas as normas mais gerais ao regimento da sucessão quanto à capacidade daquele que sucederá outrem e quais os tipos de sucessão ocorrentes, passemos ao subcapítulo seguinte onde analisaremos os tipos de sucessores que o Código Civil se deu ao trabalho de prever.

2.2 DOS SUCESSORES

Os sucessores, consoante previsão do Código Civil de 2002, enquadram-se basicamente em três espécies: legítimo, necessário e testamentário.

O denominado “herdeiro legítimo” é o beneficiário de herança indicado na lei, no caso brasileiro, o Código Civil. Trata-se dos previstos no artigo 1829 do Código Civil, citado no tópico anterior a este. Nosso diploma legal estabelece em tal artigo uma ordem preferencial, qual seja “I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente (...); II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais”.

Já os “herdeiros necessários” são aqueles inasfastáveis da herança, salvo se enquadrados nas hipóteses de indignidade e deserdação. O art. 1845 do Código Civil indica como herdeiros necessários os parentes consanguíneos de linha reta (descendentes e ascendentes), bem como o cônjuge sobrevivente.

Por fim, o herdeiro testamentário. Trata-se do o beneficiado pelo testado em seu ato de última vontade. Para o herdeiro testamentário, a transmissão ocorre sem individualização de bens. Quando da individualização de bens, este será denominado legatário.

3 A REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA  (POST MORTEM)

Desde a antiguidade a família é um dos pilares não só do Direito, mas da sociedade em geral. A perpetuação da família através da procriação é um desejo que ainda se encontra na maioria da sociedade, e não somente pelo gesto em si, mas pelo instinto humano de deixar sua prole. Segundo as palavras do doutrinador Arnaldo Rizzardo (2006, p. 404), a reprodução “é a lei da preservação da vida. Todos os seres vivos se reproduzem por ação própria e só assim é que a vida se conserva sobre a face da Terra”.

Ocorre que muitos casais não conseguem engravidar, seja por problemas pessoais, psicológicos ou biológicos. Os problemas biológicos, especificamente, interessam ao estudo que prosseguiremos.

Quando o corpo é responsável pela impossibilidade de concepção natural de filhos, chamamos o fenômeno de infertilidade. A infertilidade pode ser absoluta ou relativa, sendo que quando desta última, técnicas terapêuticas podem resolver o problema. Por outro lado, existem os casos de infertilidade absoluta, ou esterilidade, onde a concepção só é possível artificialmente.

Para os casais que não conseguem engravidar através da prática de relações sexuais, criou-se a denominada “reproduções humanas medicamente assistidas”. Datados históricos informam que o processo de reprodução assistida originou-se experimentalmente primeiro em animais, passando-se posteriormente à aplicação humana.

A realização do processo pode ocorrer de diversas formas, mas obedecendo as normas reguladoras existentes a respeito. Por exemplo, segundo o Código de Ética Médica (Resolução n. 1.358/92), somente se deve recorrer à reprodução assistida quando outras técnicas terapêuticas tenham sido tentadas e resultarem ineficazes. Há ainda outras recomendações do Conselho Federal de Medicina, como por exemplo  a não utilização de tais técnicas para a escolha de características da criança e a necessidade do consentimento informado, ou seja, aqueles que se submeterem ao processo de reprodução assistida devem estar devidamente informados quanto aos riscos e consequências do procedimento. Há também permissividades como a escolha do sexo da criança nos casos em que se visa evitar doenças ligadas ao sexo, como a hemofilia.

A fecundação no processo de reprodução humana medicamente assistida pode ocorrer de algumas formas.

No concernente ao lugar da fecundação, a procriação assistida pode ser intracorpórea, sempre que a fecundação ocorre in vivo, ou seja, na cavidade uterina da mulher, ou extracorpórea, quando ocorrer in vitro, ou seja, a união dos gametas (concepção) é viabilizada, prescindindo-se de ato sexual. (VASCONCELOS, 2006, p.13) (grifos nossos)

A fertilização pode ser homologa ou heteróloga, sendo a primeira quando os gametas utilizados são oriundos dos futuros pais da criança, e sendo esta última quando um ou ambos os gametas são originados de doação.

Legalmente, a reprodução assistida foi objeto de regulamentação pelo Projeto de Lei nº 90/99, proposto pelo Senador Lúcio Alcântara. Tal projeto objetivava para regulamentar as técnicas de reprodução assistida. O projeto sofreu alteração em sua redação em 2001, pelo próprio Senador Lúcio Alcântara.

Atualmente a reprodução assistida obedece a Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. O Projeto de Lei nº 90 é em grande parte comum à resolução, traçando as mesmas diretrizes. Ainda assim, o projeto tratou de tecer algumas restrições em relação à Resolução do CFM.

O projeto tratou apenas da fertilização in vitro, abstendo-se de regulamentar a fertilização in vivo, das quais à Resolução nº 1.358/92 não se absteve de tratar. Outra divergência é a restrição do Projeto de Lei ao permitir a utilização de técnicas de reprodução assistida somente à pessoas casadas ou em regime de união estável. A Resolução, nesse ponto, permite a realização de tal procedimento também por mulheres solteiras, bem como as casadas ou que vivam em união estável, sendo nestes dois últimos casos necessária a anuência do cônjuge ou companheiro.

O projeto também se mostra restritivo ao condicionar a submissão à reprodução assistida, aos casos de infertilidade ou prevenção de doenças ligadas ao sexo, fazendo-se necessária a indicação médica. Somente nestas hipóteses poderia ocorrer a reprodução humana medicamente assistida.

Os artigos 4º e 5º do Projeto de Lei nº 90/99 estabelecem ainda o denominado “consentimento informado”, necessário ao procedimento, traçando todos os elementos que devem estar contidos em tal consentimento.

Artigo 4º O consentimento livre e esclarecido será obrigatório para ambos os beneficiários, vedada a manifestação da vontade por procurador, e será formalizado por instrumento particular, que conterá necessariamente os seguintes esclarecimentos: I - a indicação médica para o emprego de Procriação Medicamente Assistida, no caso específico; II - os aspectos técnicos e as implicações médicas das diferentes fases das modalidades de Procriação Medicamente Assistida disponíveis, bem como os custos envolvidos em cada uma delas; III - os dados estatísticos sobre a efetividade das técnicas de Procriação Medicamente Assistida nas diferentes situações, incluídos aqueles específicos do estabelecimento e do profissional envolvido, comparados com os números relativos aos casos em que não se recorreu à Procriação Medicamente Assistida; IV - a possibilidade e a probabilidade de incidência de danos ou efeitos indesejados para as mulheres e para os nascituros; V - as implicações jurídicas da utilização da Procriação Medicamente Assistida; VI - todas as informações concernentes à capacitação dos profissionais e estabelecimentos envolvidos; VII - demais informações estabelecidas em regulamento. § 1º O consentimento mencionado neste artigo, a ser efetivado conforme as normas regulamentadoras que irão especificar as informações mínimas a serem transmitidas, será exigido do doador e de seu cônjuge, ou da pessoa com quem viva em união estável; § 2º No caso do parágrafo anterior, as informações mencionadas devem incluir todas as implicações decorrentes do ato de doar, inclusive a possibilidade de a identificação do doador vir a ser conhecida. Artigo 5º O consentimento deverá refletir a livre manifestação da vontade dos envolvidos, e o documento originado deverá explicitar: I - a técnica e os procedimentos autorizados pelos beneficiários, inclusive o número de embriões a serem produzidos, observado o limite disposto no art. 14 desta Lei; II - as circunstâncias em que doador ou depositante autoriza ou desautoriza a utilização de seus gametas.

 Dentre estas e outras previsões legais, a despeito da qualidade destas, é fato que o Projeto do Senador Lúcio Alcântara apresenta instrumentos que delimitariam a aplicação e dariam segurança jurídica à aplicabilidade das técnicas de reprodução humana medicamente assistida. Ciente da existência da Resolução do CFM, faz-se mister a observância de necessidade de diploma com força legal que regulamente a matéria, sendo o projeto, inclusive, de solução aparentemente pacífica, uma vez que não afronta boa parte das disposições da Resolução. Contudo, observa-se também que nem todos os entraves seriam solucionados, prescindido ainda a temática de legislação mais completa que viesse a tratar dos temas não abordados pelo Projeto.

4 OS DIREITOS DO CONCEBIDO POST MORTEM NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO DIREITO DE FAMÍLIA

Quando pensamos na possibilidade de um individuo elaborar um testamento onde autorize a utilização de seu material genético para reprodução humana, alguns dilemas podem vir à mente. A imprevisibilidade legal de tal fato é colaboradora para o surgimento de concepções e teorias diversas quanto à matéria. Pensemos então primeiro pelo viés de alguns direitos constitucionais.

O Princípio Constitucional da Liberdade quando aplicado ao direito de família e sucessões preza pela autodeterminação das pessoas. Todos são detentores do direito de adotar e executar livremente as decisões que lhe forem convenientes (DENZ, 2007). Tal princípio segue a linha que assegura a cada individuo a liberdade de escolher e constituir sua família, ou entidade familiar, da forma que lhe aprouver. Parece tal delineamento ser favorável à inseminação post mortem, posto que esta é nada mais que uma manifestação de vontade.

Há ainda o princípio da dignidade humana, exemplificada com sua aplicação ao direito de família nos dizeres de Maria Berenice Dias.

A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas (DIAS, 2010, p. 62) (grifos nossos).

Nota-se, pois, mais um princípio aparentemente favorável à inseminação post mortem, posto que pela aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, não há discriminação quanto à inserção de um individuo em determinada entidade familiar, independentemente da forma como aconteça tal inserção.

Observa-se ainda, para tal afirmação, o artigo 227, § 6º da Constituição Federal, que versa “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Da leitura, entende-se que “havidos ou não da relação do casamento” compreende quaisquer outras formas de concepção que não as relações sexuais em seio conjugal, abrindo margem ao entendimento de que os reproduzidos por assistência médica possam ser inclusos.

Não obstante, atenta-se ao Princípio do Melhor Interesse da Criança, instituído pela Constituição Federal vigente em seu art. 227. Gabriella Rigo esclarece que, no entanto, o princípio já era existente em legislação infraconstitucional antes mesmo da previsão constitucional.

 [...] o princípio do melhor interesse da criança aparece como vetor-guia de todas as ações relativas à criança, inserindo-se no âmbito dos direitos fundamentais da pessoa humana (Art. 5º, Constituição Federal). A jurisprudência brasileira já recepcionava o princípio do melhor interesse da criança antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988. Entretanto, foi após a entrada em vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente que o princípio começou a desempenhar função interpretativa a ponto de impor uma revisão nas interpretações do Código Civil, visando à sua adaptação ao novo direito (RIGO, 2009).

Tal princípio põe em discussão se seria benéfico para a criança as condições às quais esta será submetida nos casos de inseminação post mortem, já que desde seu nascimento teria parte da entidade familiar ‘ausente. Entretanto, Pacheco (2010) diz que, não obstante o princípio do melhor interesse da criança se demonstrar em faceta imperativa, tal fato não impede uma mãe, sozinha, de gerar e criar uma criança, podendo sim esta mãe estar apta a fornecer todas as condições materiais e psicológicas necessárias ao desenvolvimento saudável da criança.

4.1 O DIREITO SUCESSÓRIO DO CONCEBIDO POST MORTEM

Analisando agora os reflexos sucessórios quando da concepção post mortem, nota-se divergência doutrinária a respeito dos direitos do denominado “concepturo”[4]. A divergência doutrinária e jurisprudencial funda-se na discussão quanto à interpretação do art. 1798 do Código Civil, que trata da sucessão legítima, o qual prevê em sua redação: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.

Assim, para Moreira Filho (2002) “se com a morte do de cujus o embrião, em cuja fertilização consentiu, já estiver implantado no útero feminino, não há dúvidas de que a filiação lhe será assegurada, bem como o direito à herança”.

O Código Civil parece claro ao excluir a criança concebida após a morte de seu pai da parte legítima que teria direto se tivesse sido concebida em momento anterior à morte do autor da herança. Contudo, o art. 1.799 do Código Civil buscou trazer uma solução.

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; II - as pessoas jurídicas; III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.

Assim, de acordo com o Código Civil, o filho concebido post mortem poderá herdar caso seja contemplado em testamento, mas tão somente nesta hipótese. Aqui, ele se enquadra na categoria de herdeiro testamentário, vista no primeiro capítulo do presente trabalho, não se encaixando dentre os herdeiros legítimos.

O Código Civil traz ainda, no §4º do art. 1800, um prazo para o ‘herdeiro esperado’, ao dizer que “se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos”.

A despeito das previsões legais supracitadas, inclina-se a doutrina brasileira no sentido negar legitimação sucessória aos concebidos por inseminação artificial post mortem. Tal fato se dá pelo art. 1798. Para a maioria doutrinária, este filho não teria direitos sucessórios, caso não tenha sido contemplado em testamento, por fatores que incluem também a segurança jurídica, já que o tempo da concepção do individuo, quando tal concepção for post mortem, é incerto.[5]

O artigo 1597 do Código Civil assegura claramente o direito à filiação, sendo este pacificamente assegurado.

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (grifos nossos).

O direito de filiação é unânime. Por outro lado, ainda que defendida em maioria a impossibilidade de sucessão pelo concepturo, há quem admita a legitimação dos filhos concebidos após a morte mediante inseminação artificial homóloga. Estes fundamentam que tal fato decorre da vontade de ser pai por parte do homem que deixou seu sêmen criopreservado, desejando deixar um filho que não se diferencia de qualquer filho concebido em vida.

Entende-se pois que, inexistente proibição expressa por parte do homem que depositou o sêmen no centro de reprodução humana, não há razoabilidade em negar qualquer direito à criança concebida post mortem mediante técnicas de reprodução assistida.

Infelizmente, o debate acerca da matéria instaurou-se tão somente em âmbito acadêmico, não passando ainda às mesas legislativas, de modo que tal problema ainda carece de previsão legal que venha a solucionar, ou ao menos esclarecer a discussão.

 

CONCLUSÃO

A sociedade é objeto de transformações contínuas e diárias, que ocorrem nos mais diferentes aspectos. No presente artigo houve a possibilidade de estudar um fenômeno de inovação científica, que é o processo de reprodução humana medicamente assistida, que por vezes indicou adentrar o ramo do Direito.

O projeto de lei n. 90/99 teve seu texto original já modificado visando se adequar as mutações sociais referidas acima. Faz-se coerente a busca pela melhor adequação à realidade social.

Com pesar, o trâmite processual legislativo já se estende por cerca de 15 anos.

Com louvor, o juiz da 13ª Vara Cível de Curitiba (PR), em maio de 2010, concedeu liminar autorizando a professora Katia Lenerneier, de 38 anos, a tentar engravidar com o sêmen congelado do marido, que morreu em fevereiro de 2010 de melanoma (câncer de pele). Foi esta uma decisão inédita, sendo a primeira decisão judicial brasileira sobre reprodução póstuma (FURUTA, 2010). Tal fato demonstra-nos apesar da demora legislativa, o esforço jurídico de alguns em solucionar os problemas relativos à matéria, ainda que diante às adversidades.

Diante disto, parece de frágil sustentação o argumento que põe o melhor interesse da criança a favor da proibição de reprodução humana medicamente assistida post mortem. Outros direitos serão garantidos, como a filiação, e ainda a criação monoparental se mostra inofensiva ao prejuízo psicológico da criança.

Constata-se assim, coerente e sensata a corrente doutrinária que verifica a inexistência de violações constitucionais à inseminação post mortem.

Quanto ao direito sucessório, os princípios da dignidade da pessoa humana, melhor interesse da criança, igualdade entre filhos e ouros, garantem ao concepturo o direito constitucional à herança, ainda que este só vá ser concebido após a morte do genitor.

Ressalta-se que é perfeitamente coerente o testamento biológico para que tal procedimento seja feito somente por material genético de uso autorizado pelo individuo de que o material se deu origem.

Por fim, percebe-se a elaboração e entrada em vigor de legislação específica seria esclarecedora quanto à controvérsias originadas das demandas sociais, carentes de amparo legal, garantindo maior segurança jurídica às situações ainda pendentes de solução

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Senado Federal, 2002.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

DENZ, Guilherme Frederico Hernandes. Procriação Assistida e Direito á Saúde: Análise do Planejamento Familiar à Luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Primazia do Direito da Criança. 2007. Disponível em: < http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2009-05-

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DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 6: direito das sucessões. 20 ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2006.

FURUTA, Rina Mári. Liminar Autoriza Reprodução Post Mortem. Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, 2010.

FILHO, José Roberto Moreira. O Direito Civil em face das novas técnicas de reprodução assistida. 2002. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=33 >. Acesso em: 01 de novembro de 2014.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: sucessões. São Paulo: Atlas, 2003.

PACHECO, Nathalia Dinoá. Monoparentalidade Programada. 2010. Disponível em: <http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=2894&idAreaSel=5&seeArt=yes>. Acesso em: 01 de novembro 2014.

RIGO, Gabriella Bresciani. O status de filho concebido post mortem perante o direito sucessório na legislação vigente. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 08 Jul. 2009. Disponível em: www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/obras/monografias/3849. Acesso em: 01 de novembro 2014.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006.

[1] Alunos do Curso de Direito, da UNDB.

[2] Vale atentar para a não confusão entre capacidade sucessória e capacidade civil. Capacidade civil consiste na aptidão para exercer por si só os atos da vida civil. Já a capacidade para suceder é delimitada pelo não impedimento legal para herdar. Trata-se, pois, de “capacidade civil específica”, tendo por consequente normas e regras específicas para sua averiguação.

[3] Segundo o artigo 1.858, “o testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo”. Pode este dispor da totalidade dos bens, para depois da morte, ou apenas de parte dos bens. Já o codicilo é ato de última vontade destinado às disposições de pequeno valor, ou recomendações de atendimento após o falecimento.

[4] Entende-se por concepturo aquele individuo que, em momento futuro, será concebido a partir do sêmen congelado.

[5] Dados retirados de: [5] Dados retirados de: http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/obras/monografias/3849-o-status-de-filho-concebido-post-mortem-perante-o-direito-sucessorio-na-legislacao-vigente. Acesso em: 01 de novembro de 2014.