SOFTWARES ROBÔS NO PREGÃO ELETRÔNICO – CONSIDERAÇÕES JURÍDICO-PRINCIPIOLÓGICAS À LUZ DA ISONOMIA E COMPETITIVIDADE.

1.       Considerações iniciais e contextualização do problema

         O Direito, enquanto resultado da vida em sociedade, é diretamente influenciado pelas mudanças por ela experimentadas, sendo necessário que acompanhe esta evolução sob pena de não gerar a estabilidade social que dele razoavelmente se espera. Nos últimos anos, uma série de novos expedientes jurídicos foram concebidos graças às inovações que surgem dia após dia, especialmente aquelas proporcionadas pelo avanço das tecnologias.

Ao lado do processo eletrônico, talvez o pregão eletrônico seja o exemplo mais marcante desta evolução, possibilitando que a Administração, por meio da internet, contrate de forma eficiente e rápida os bens e serviços de que necessita, com significativa economia de recursos públicos.

Junto com estas mudanças, no entanto, surgem novos desafios para os operadores do direito. Nesse sentido, nos últimos anos programas de computadores cuja finalidade é dar lances automáticos em pregões eletrônicos – os chamados softwares robôs – têm sido bastante difundidos e começam a fazer parte do cotidiano da Administração, comprometendo as contratações públicas precedidas de pregão eletrônico. Isso porque estes programas, apesar da sua concepção simples, trazem enorme vantagem àqueles que o utilizam, possibilitando o envio de lances em tempo infinitamente inferior ao gasto por uma pessoa normal. Explicando melhor: o licitante “A” adquire no mercado um software robô para participar de determinado pregão, configurando-o para que dê lances contínuos até alcancar o valor de R$ 6,00. Ao ser assim configurado, durante a sessão do pregão, sempre que algum licitante fizer uma oferta, em milionésimos de segundos o valor em questão é coberto pelo robô, até que se chegue atinja o preço de R$ 6,00. Assim, por exemplo, se o licitante “B” fizer uma proposta de R$ 8,00, imediatamente o programa ofertará o preço de R$ 7,99, e assim sucessivamente. A superioridade trazida pelo programa é tanta que em algumas ocasiões os lances dos outros participantes já nascem mortos, porque antes de a informação chegar aos outros licitantes, o robô já cobriu a proposta.

Ciente do problema, o Poder Público chegou a adotar algumas providências para neutralizar, ou ao menos dificultar, o uso dos programas (por exemplo, a exigência de um tempo mínimo entre os lances e o preenchimento de uma seqüência de letras antes de cada oferta), mas nenhuma delas teve de fato o efeito desejado, já que a ferramenta é constantemente aperfeiçoada.

Num esforço mais incisivo para coibir de vez a utilização da ferramenta, a Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, editou recentemente a Instrução Normativa n. 3, de 16 de dezembro de 2011, com o seguinte teor:

O SECRETÁRIO DE LOGÍSTICA E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO DO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO, no uso das atribuições que lhe confere o art. 28 do Anexo I ao Decreto nº 7.063, de 13 de janeiro de 2010, e tendo em vista o disposto no art. 3º do Decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994, e no art. 31 do Decreto nº 5.450, de 31 de maio de 2005, resolve:

Art. 1º Subordinam-se ao disposto nesta Instrução Normativa os órgãos e entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais - SISG, bem como os órgãos e entidades que firmaram Termo de Adesão para utilizar o Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais - SIASG.

Art. 2º Na fase competitiva do pregão, em sua forma eletrônica, o intervalo entre os lances enviados pelo mesmo licitante não poderá ser inferior a 20 segundos.

Art. 3º Os lances enviados em desacordo com o artigo 2º desta norma serão descartados automaticamente pelo sistema.

Art. 4º Esta Instrução Normativa entra em vigor em 17 de janeiro de 2012[1]

Apesar de se tratar de iniciativa válida, há aí, no entanto, um problema no que toca à questão da regulamentação, porque a aplicação do disposto na instrução normativa se limita ao âmbito federal (Ministério do Planejamento), não produzindo efeito para os Estados, Distrito Federal e Municípios, já que “regulamento administrativo presta-se apenas a dizer como a lei deve ser cumprida [...]. Não é meio para criar direitos e obrigações, criar novos instrumentos jurídicos, outorgar competências a agentes administrativos não pressupostas em lei”[2].

Na Câmara dos Deputados, por sua vez, tramita projeto de lei para proibir a utilização dos robôs no pregão eletrônico, através da inclusão de dispositivo específico na Lei n. 10.520/02, atualmente sob análise das comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania, para então ser encaminhado para votação[3].

A despeito disso, no entanto, ao se analisar a questão sob uma perspectiva jurídico-principiológica, é possível constatar que a vantagem competitiva obtida com a utilização de dispositivos de envio automático de lances fere a isonomia que orienta o processo de contratação, minando também o seu caráter competitivo, pontos que constituem o objeto deste breve estudo.

         Para possibilitar que a questão seja melhor compreendida, no entanto, será seguido o seguinte roteiro: de plano, serão feitas algumas ponderações, ainda que breves, sobre a licitação enquanto forma de contratação da Administração, com ênfase na Lei n. 8.666/93; na seqûencia, o foco recai sobre a modalidade de licitação pregão, ocasião em que serão feitos apontamentos sobre o seu procedimento e peculiaridades que o caracterizam; feito isto, o problema será contextualizado à luz dos princípios da isonomia e competitividade, para que, por fim, seja examinada a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a matéria.

2.       A licitação como meio de satisfação do interesse público

        

Diferentemente do que acontece nas relações entre particulares, que são livres para contratar com quem melhor lhes aprouver, os contratos administrativos são precedidos de um processo denominado licitação pública[4].

As linhas gerais deste processo, bem como do contrato dele decorrente, são disciplinadas pelo Congresso Nacional, que tem competência privativa para editar a respectiva norma geral (artigo 22, XXVII da Constituição Federal). Essa competência foi inicialmente exercida com a edição da Lei n. 8.666/93, que no contexto atual não é mais “a única lei a estabelecer normas gerais de licitação, pois outras leis, direta ou indiretamente [...] também o fizeram, criando novas modalidades e alterando procedimentos”[5].

Ainda que a Lei n. 8.666/93 tenha sido editada como norma geral em matéria de licitação e contrato administrativo, nem todos os seus dispositivos se revestem desta natureza, visto que alguns deles veiculam regras muito específicas, não tendo o grau de abstração e generalidade inerente a essa espécie normativa, conforme aponta Maurício Zockun:

Usualmente se qualificam como normas gerais como as normas jurídicas que veiculam em seu conteúdo mandamentos (i) genéricos a serem observados inexoravelmente por ulteriores atos normativos que pretendam dispor, total ou parcialmente, a respeito do plexo de direitos e obrigações de sujeitos de direitos advindos das possíveis relações jurídicas que tenham por objeto certo bem juridicamente tutelado e (ii) que podem ser aplicados de maneira uniforme e indistinta nas localidades em que se verifique o surgimento de relações jurídicas decorrentes de suas disposições obrigatórias[6].

E é separando as disposições que assumem um perfil amplo das que veiculam especificações aplicáveis a situações particulares, individuais, que Dallari sustenta que só os princípios, as modalidades de licitação e mais algumas regras passíveis de aplicação uniforme em todo o território nacional, como as hipóteses de contratação direta, constituem norma geral na Lei n. 8.666/93[7].

Ainda sobre o fato de nem todas as normas da Lei n. 8.666/93 serem gerais, Vera Scarpinella ressalta que o ideal é que a edição de normas suplementares pelos entes estatais se limite “à adequação das normas gerais às regras de competência administrativa”, sob pena de se criarem procedimentos os mais diversos, prejudicando com isso a própria participação de eventuais interessados na disputa, que seriam forçados a conhecer um sem número de regras licitatórias, editadas pelos Estados, Municípios e Distrito Federal[8].

De qualquer modo, independentemente da modalidade de licitação adotada, os princípios condicionantes, por traduzirem norma geral, são os mesmos, ainda que a intensidade com que incidam no caso concreto varie. Nesse sentido, Diógenes Gasparini afirma serem princípios da licitação, de acordo com o disposto no art. 3° da Lei n. 8.666/93, além daqueles inerentes ao regime publicístico (legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, economicidade), alguns princípios informadores específicos, como a vinculação ao edital, julgamento objetivo das propostas, padronização e máxima competitividade[9].

Por outro lado, sobre as modalidades de licitação, a Lei n. 8.666/93 (art. 22) previu a concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão, as quais, considerando as suas peculiaridades, podem ser divididas em dois grandes grupos: i) as comuns, no qual se inserem a concorrência, tomada de preços e o convite, que têm como traço marcante uma regulação legal ampla, o que possibilita que a Administração determine, caso a caso, as condições que julga necessárias para a execução do contrato, ainda que existam diferenças na estrutura procedimental das suas fases; e as modalidades especiais (concurso e leilão), destinadas a fins específicos previstos em lei e procedimento estruturado segundo as peculiaridades da contratação[10]. O critério decisivo na escolha de uma ou outra modalidade licitatória prevista na Lei n. 8.666/93 é o valor da contratação, o que naturalmente reflete sobre as formalidades procedimentais que serão seguidas, cuja rigidez está diretamente vinculada ao montante envolvido.

 

3.       O pregão e suas particularidades

O pregão foi introduzido no ordenamento jurídico pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei n. 9.742/97), inicialmente como modalidade licitatória exclusiva da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Os resultados satisfatórios obtidos com a sua utilização acabaram estendendo-o também a outros entes estatais, num primeiro momento com a edição da Medida Provisória 2.182-18, que instituiu a modalidade como padrão na contratação de bens e serviços comuns pela Administração federal, e posteriormente com a sua conversão na Lei n. 10.520/02 (Lei do Pregão), que veiculou a sistemática indistintamente aos Estados, Distrito Federal e Municípios.

A modalidade pregão se destina à aquisição de bens e serviços comuns, com a disputa sendo feita em sessão pública em que, por meio de propostas e lances, são classificadas as ofertas com menor preço, devendo então o vencedor comprovar o preenchimento das condições estabelecidas no edital, sob pena de perder a oportunidade de contratação para o licitante que lhe sucede na ordem de classificação, ou até que se encontre um que satisfaça todas as exigências estabelecidas no ato convocatório.

O que são, no entanto, bens e serviços comuns? São aqueles bens e serviços que podem ser definidos de forma objetiva no edital, já que suas especificações e padrões de qualidade são conhecidos no mercado e de fácil comparação, não dependendo de projeto básico, o que faz com que o critério de julgamento seja sempre o preço[11] - locações imobiliárias, execução de obras e alienações em geral não podem ser precedidas de pregão.

Um ponto eventualmente suscetível de questionamentos gira em torno da natureza da expressão poderá existente no caput do artigo 1º, que transmite a idéia de faculdade, no sentido de que a autoridade administrativa teria liberdade para decidir, segundo sua discricionariedade, se adotará ou não o pregão como modalidade licitatória para contratações de bens e serviços comuns. Não é esta, porém, a interpretação correta do dispositivo. Isso porque no direito administrativo o poder tem caráter impositivo e vinculante, no sentido de que “o poder tem para o agente público o significado de dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo”[12].

Quando o processo de contratação ocorre por meio eletrônico, possibilitando assim o recebimento de propostas e a realização da sessão pública via internet, recebe a denominação de pregão eletrônico. No contexto atual a regra é que a Administração opte, sempre que for possível, pela realização de pregão na forma eletrônica, conforme regulamentado pelo Decreto n. 5.450/05, o que se explica não só pela economia que gera aos cofres públicos, visto que os custos operacionais são muito inferiores aos do pregão presencial, mas também pela maior competitividade que proporciona, já que online é possível que um número maior de interessados participe da licitação.

Se comparado às modalidades “comuns” de licitação (tomada de preço, convite e concorrência), o pregão apresenta duas características bem particulares: i) a inexistência de limite de valores, ao contrário das modalidades previstas na Lei n. 8.666/93, em que o valor é determinante; ii) o exame das condições de habilitação acontece somente após a apresentação e classificação das propostas pelos licitantes.

A condução do pregão fica a cargo de autoridade devidamente designada para tanto (pregoeiro), que tem as seguintes responsabilidades principais: abrir as propostas apresentadas, analisando sua pertinência ao exigido no edital, e posteriormente classificá-las; promover o saneamento possível em qualquer etapa da sessão pública, se necessário; adjudicar, ou classificar na hipótese de registro de preços, o objeto do certame ao licitante vencedor, se não tiver havido na sessão pública a declaração de intenção motivada de interposição de recurso; elaborar a ata da sessão pública; receber os recursos; encaminhar o processo devidamente instruído à autoridade superior, visando a homologação, e a contratação ou formalização da Ata de Registro de Preços. As atribuições do pregoeiro são executadas com o auxílio de equipe de apoio regularmente designada, e que acompanha de perto todo o desenvolvimento do processo.

Mais uma vez, destaque-se que a Lei n. 10.520/02 não deve ser lida isoladamente, mas sim em conjunto com as disposições da Lei n. 8.666/93, já que o pregão “é processo administrativo competitivo” e “não seria possível imaginar que o pregão teria incorporado princípios ou valores distintos daqueles que norteiam toda e qualquer licitação”[13].

 

4.       Os softwares robôs e a sua relação com o princípio da isonomia

Um dos princípios fundamentais previsto na Constituição Federal é o da isonomia, decorrente do próprio princípio republicano, segundo observa Geraldo Ataliba, e que particularmente nas relações de direito público, se reveste de tonalidade especial, porque “não há ato ou forma de expressão estatal que possa escapar ou subtrair-se às exigências de igualdade”[14].

Por mais que o princípio remeta à idéia de igualdade, a isonomia não significa a necessidade de um tratamento idêntico a todas as pessoas, mas ao contrário, que o tratamento que lhes vier a ser dispensado considere, à luz dos valores consagrados no texto constitucional, as particularidades que as separam, de modo que haverá agravo ao princípio “quando não houver correlação lógica entre a diversidade do regime estabelecido e o fator que tenha determinado o enquadramento, num ou noutro regime, das pessoas, coisas ou situações reguladas”[15].

Em matéria de licitação, o regime geral da Administração desenhado no texto constitucional ordena que a igualdade de condições entre os concorrentes seja garantida, conforme dispõe o art. 37, XXI. Na realidade, esta norma revela o compromisso do constituinte não só com a isonomia, mas também com os princípios da moralidade e impessoalidade que orientam a atuação estatal, principalmente quando se leva em conta a presença recorrente do clientelismo nas contratações públicas anteriores à Constituição de 1988. De fato, Adilson Dallari chama atenção para o fato de que a exigência de licitação prévia à celebração de contratações administrativas encontra seu fundamento justamente na isonomia:

O princípio da isonomia, por si só, e independentemente de qualquer norma, obriga a Administração a valer-se do procedimento da licitação, e ao estabelecer essa obrigatoriedade erige a própria licitação em princípio [...]. O princípio da licitação impõe à Administração a obrigatoriedade de recorrer a procedimentos técnico-jurídicos que assegurem ao mesmo tempo contratações vantajosas para o Poder Público e igualdade de condições para todos os possíveis contratantes, independentemente de qualquer norma positiva[16].

Em termos práticos, a isonomia pressupõe uma situação de equivalência entre os licitantes no processo de contratação, com a garantia de que todos tenham acesso aos mesmos recursos e facilidades. E justamente por isso, a vantagem competitiva proporcionada pelo envio automático de lances através de softwares robôs vai de encontro à essência deste princípio, porque deixa de existir uma condição igualitária de aporte de lances entre interessados.

Por mais que se argumente que a utilização da ferramenta force os participantes a reduzirem os valores dos seus lances, proporcionando uma contratação mais vantajosa para a Administração, principalmente no pregão, em que o preço é um critério decisivo, isso não neutraliza o dever de comformidade à isonomia. De fato, as prerrogativas conferidas pelo ordenamento jurídico à Administração, dentre as quais cite-se a possibilidade de rescisão unilateral e o pagamento de eventuais valores que forem devidos ao particular pela sistemática dos precatórios, com todas as incertezas daí decorrentes, refletem no próprio valor do bem ou serviço contratado, superior àquele obtido livremente no mercado em razão dos riscos que as contratações com o Poder Público trazem para o particular. Essa diferença de preços é natural e faz parte do processo, que invariavelmente deve ter sua lisura preservada.

 

5.       Os softwares robôs e o princípio da competitividade

O encontro da proposta que melhor atenda aos interesses da Administração naturalmente pressupõe lhe sejam dadas opções, no sentido de que quanto mais interessados acorrerem ao certame, disputando entre si a oportunidade, melhor. Realmente, como explica Toshio Mukai, sem que exista efetiva contenda entre os licitantes, o processo não alcançará os propósitos a que se destina, pois “se faltar a competição (ou oposição) entre os concorrentes, falecerá a própria licitação, inexistirá o instituto” [17].

Com efeito, conforme pondera Diógenes Gasparini, a essência desta busca pela competição remonta à Lei de Ação Popular, que em seu art. 4° já considerava nulos os atos praticados em condições que viessem a limitá-la, inclusive com a possibilidade de responsabilização criminal daquele que por ventura comprometesse o caráter competitivo da licitação[18].

E se pelos artigos 3º, §1°, I da Lei n. 8.666/93 e 3° da Lei n. 10.520/02, há clara vedação à especificações ou formalidades excessivas na licitação, de modo a avivar a concorrência e permitir que um número maior de interessados participem do processo, reconhecido então está como princípio da licitação pública, conforme bem afirmou Celso Antonio Bandeira de Mello:

O instituto se inspira no propósito de assegurar igualdade entre todos os que pretendem travar negócio com o Poder Público e simultaneamente obter, graças à competição instaurada, o melhor que poderia conseguir, estribado na idéia óbvia de que os concorrentes, movidos pelo empenho em vencer o certame, se esforçarão por superar-se reciprocamente na oferta de vantagens ao promotor da licitação[19].

De fato, ao lado de outros princípios básicos da Administração, tais como legalidade e impessoalidade, o Decreto n. 5.450/2005, em seu art. 5°, estabelece a competitividade, como não poderia deixar de ser, como princípio condicionante do pregão. Com efeito, o próprio Supremo Tribunal Federal também tem reconhecido a imprescindibilidade de que a licitação tenha caráter competitivo, conforme restou decidido no julgamento da ADI 2716:

[...] a função da licitação é a de viabilizar, através da mais ampla disputa, envolvendo o maior número possível de agentes econômicos capacitados, a satisfação do interesse público. A competição visada pela licitação, a instrumentar a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, impõe-se seja desenrolada de modo que reste assegurada a igualdade (isonomia) de todos quantos pretendam acesso às contratações da Administração [...][20].

Logo, por tudo e em tudo “as contratações públicas envolvem esse dever de deflagração da concorrência”[21].

O problema é que a superioridade trazida pelos softwares robôs na sessão do pregão viola a competição  na medida em que os licitantes que se valem deste expediente têm chances muito maiores de vencer o certame. Isso porque, por mais que se empenhem para acompanhar a velocidade dos lances automáticos, os lances manuais invariavelmente são mais lentos, mantendo o licitante usuário do programa sempre com o menor preço e à frente dos demais, condição privilegiada que faz com que ele ganhe a licitação. Sob esse quadro, a utilização dos robôs é irregular porque restringe o caráter competitivo da licitação, limitando as contratações sempre às mesmas pessoas.

 

6.       O entendimento do Tribunal de Contas da União sobre a utilização dos robôs

        

         A principal decisão proferida pelo TCU envolvendo a problemática é o Acórdão n. 1.674/2010, relatado pelo Ministro Valmir Campelo, o qual foi proferido em processo de levantamento de auditoria concluído em 2009 com o objetivo de aperfeiçoar as condições de realização do pregão eletrônico em âmbito federal através do portal Comprasnet.  Na ocasião, a auditoria apontou a existência de dispositivos de envio automático de lances que conferiam aos seus usuários chances de se sagrar vencedor do certame superiores a 70%. Com base nessa constatação, a Corte de Contas, ciente da complexidade da questão, reconheceu que as providências até então tomadas para enfrentar o problema haviam se revelado insuficientes, com grave violação às condições isonômicas de participação dos licitantes:  

[..] 13. Uma falha importante constatada pelo Tribunal foi o uso de dispositivos de inserção automática (robôs) para o envio de lances durante o pregão eletrônico. O referido dispositivo tecnológico continua comprometendo a isonomia entre os participantes do certame licitatório, visto que a atual regra "antirrobô" do "Comprasnet" não é suficiente para atingir o objetivo de impedir a vantagem competitiva existente [...].

Nesse quadrante, o Tribunal recomendou à Administração a adoção de medidas mais enérgicas para coibir a utilização dos robôs, já que a pequena diferença de valores entre os lances automáticos e manuais, da ordem de centavos, não representa vantagem de cunho econômico, além de prejudicar a igualdade de condições na disputa.

É importante ressaltar que o TCU vem acompanhando de perto as alternativas que estão sendo trabalhadas em âmbito federal, apesar de reconhecer que a solução definitiva passa, necessariamente, pela alteração legislativa do Decreto n. 5.450/05, conforme pontuado no TC 014.474/2011-5:

as medidas até então adotadas [...] foram insuficientes [...]. Portanto, até que a alternativa seja identificada e implementada, o que pode demorar mais ainda em função da possível necessidade de alteração do Decreto n. 5.450/2005, as vantagens competitivas a favor dos usuários de robôs [...] continuarão existindo

 

7.       Considerações finais

         De acordo com o que restou exposto acima, o envio automático de lances em pregão eletrônico compromete não apenas a manutenção da igualdade de condições entre os licitantes, mas também o caráter competitivo da disputa, já que constitui vantagem competitiva que aumenta sensivelmente as chances de êxito no processo de contratação.

         E justamente por isso, ou seja, pelos princípios que norteiam a atuação da Administração e as relações contratuais por ela travadas, a adoção de medidas incisivas para neutralizar a prática independe de alteração na legislação federal, sendo facultado aos entes tomar as providências que entenderem mais satisfatórias, já que tem competência suplementar para tanto (CF, art. 24, §2°). A inserção de dispositivo específico na Lei n. 10.520/02, porém, é bem vinda porque confere unicidade ao processo de contratação pela modalidade pregão eletrônico, estabelecendo regras claras que tendem a ser seguidas pelo Poder Público de uma forma geral.



[1] BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instrução Normativa nº 3, de 16 de dezembro de 2011. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 19/12/2011. Seção 1, p. 720.

[2] NIEHBUHR, Joel de Menezes. “Carona” em ata de registro de preços: atentado veemente aos princípios de direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 46, 2005, p. 175-182.

[3] Cuida-se do Projeto de Lei n. 2631/11, do deputado Dr. Ubiali (PSB-SP), proposto em 01/11/2011.

[4] Adota-se aqui o entendimento segundo o qual a licitação é um processo, e não procedimento tal qual sustentado por parte da doutrina despeito da interminável discussão existente na doutrina em torno da classificação da licitação como processo ou procedimento, adota-se, no presente artigo, o entendimento segundo o qual a licitação é um processo administrativo, sendo o procedimento a seqüência de atos sucessivos e concatenados que nele ocorrem até que se tenha um resultado final (Nesse sentido, confira-se MOREIRA, Egon Bockmann. O processo de licitação, a Lei n. 9.784/99 e o princípio da legalidade. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 37, 2002, p. 107-117.).

[5] DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos jurídicos da licitação. 7. ed. Saraiva: São Paulo, 2007. p. 25.

[6] ZOCKUN, Mauricio. Apontamentos do regime diferenciado de contratação à luz da Constituição da República. In: CAMMAROSANO, Márcio; DAL POZZO, Augusto Neves; VALIM, Rafael (Coord.). Regime diferenciado de contratações públicas – RDC (Lei n. 12.462/11): aspectos fundamentais. Belo Horizonte: Forum, 2011. p. 13-25.

[7] Op. cit., p. 29-30.

[8] SCARPINELLA, Vera. Licitação na modalidade pregão (Lei n. 10.520, de 17 de julho de 2002). Malheiros: São Paulo, 2003. p. 70.

[9] Op. cit., p. 479.

[10] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: dialética, 2010.  p. 262-263.

[11] GASPARINI, Diógenes. Pregão presencial. In.: GASPARINI, Diógenes (coord.). Pregão presencial e eletrônico. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p. 19-58.

[12] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. ed. Malheiros: São Paulo, 2002. p. 103.

[13] SCARPINELLA, op. cit., p. 89.

[14] ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 3. ed. Malheiros: São Paulo, 2011. p. 159.

[15] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. Malheiros: São Paulo, 2009. p. 169.

[16] Op. cit., p. 39.

[17] MUKAI, Toshio. Licitações e contratos públicos. 7. ed. Saraiva: São Paulo, 2006. p. 28.

[18] Op. cit., p. 489.

[19] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Licitação: técnica e preço – critério de avaliação da fase de pré-qualificacao distinto do edital da licitação – minimização extrema do fator preço – nulidade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 40, 2002, p. 146-156.

[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2716. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília. Julgado em 29/11/2007. Disponível em <http://www.stf.jus.br> Acesso em 01/02/2012.

[21] MOREIRA, Egon Bockmann. A lei de licitações, o princípio da boa-fé objetiva e o abuso de direito. Revista Trimestral de Direito Público, n. 46, 2004, p. 103-113.