SEU FLOR E SUAS DUAS MULHERES

Há uns quarenta anos, conheci um cidadão, o Seu Flor, que vivia numa pequena casa, na qual também possuía um restaurante e uma quitanda.

O Seu Flor, quando eu o conheci, era muito boa gente. Mas há quem diga que na sua juventude, no tempo da revolução, fora um colaborador dos maragatos, e que a sua função era examinar se aqueles que haviam sido executados pela ?degola? estavam mesmo mortos. O Seu Flor era, pois, algo parecido com um médico legista de campo dos revolucionários.

Mas isto não o impedia de ser uma pessoa afável e muito bem relacionada, bom amigo e companheiro de pescarias, nas quais sempre exercia as funções de cozinheiro. E o Seu Flor era um excelente cozinheiro. Ele sabia preparar um peixe de várias formas, inclusive transformá-los em bolinhos adocicados.

Também pudera: o Seu Flor tinha duas mulheres, uma chinesa e uma brasileira. Vivia com ambas, mas não ao mesmo tempo. Ficava uma temporada com uma e uma temporada com outra. De modo que com as suas duas mulheres aprendera a conviver e a desvendar os mistérios das artes, inclusive a de cozinhar.

Eu mesmo tive a oportunidade de almoçar em sua quitanda pratos chineses que não deviam nada aos bons restaurantes de Porto Alegre, que eu costumava freqüentar quando lá residia.

O Seu Flor, que não dormia em serviço, fora instruído em muitas coisas por suas duas mulheres. Pela brasileira, que era professora de matemática e português, e pela chinesa, que era mestra em culinária e artes marciais.

De modo que o Seu Flor, além de ser bom em matemática, falar bem o português, o castelhano e o chinês, também era respeitado por sua coragem e valentia, por ter sido um amigo dos degoladores na época da revolução e porque também era um excelente lutador de Kung Fu e Karatê.

Quando conheci o Seu Flor e suas duas mulheres, ele devia andar beirando os noventa, enquanto suas esposas, uma tinha 52 e a outra 56 anos de idade. Trabalhei quinze anos num escritório próximo de sua quitanda e durante esse tempo o Seu Flor não adoeceu nem mudou a sua aparência.

E quando o vi na rua pela última vez, ainda o mesmo, devia estar com mais de cem anos. Perguntei por suas duas mulheres, a Yoko e a Flor de Liz, e ele me disse que estavam muito bem, e que ainda vivia com ambas, um mês com uma, um mês com outra, é claro, para não cansar delas, nem elas cansarem dele.

Luciano Machado