Servidores Públicos: repercussão dos atos da vida privada no processo administrativo-disciplinar*

Rômulo Augusto Gaspar de Moraes

RESUMO

O presente trabalho tem como direcionamento principal a análise das responsabilidades do servidor público de carreira e seus atos, mais especificamente a responsabilidade administrativa por seus atos no exercício de sua função e os reflexos dos atos cometidos na vida pessoal do funcionário no processo administrativo-disciplinar, bem como apontar a dificuldade de aplicação desse processo nestes casos. Outra vertente da pesquisa é abordar os limites de aplicação do processo administrativo-disciplinar.

PALAVRA-CHAVE: responsabilidade; servidor público; administrativo-disciplinar; atos; vida pública; vida particular.

Introdução

O servidor público ao exercer uma função, não estará desobrigado de responder por seus atos, sejam eles referentes ao exercício da função ou não. Dependendo do tipo de ato praticado a responsabilidade será de âmbito penal, civil ou administrativa.

As responsabilidades do servidor público são independentes entre si, o que significa dizer que cada uma segue seu procedimento e meio de aplicação, o resultado de uma não o excluirá o resultado de outra. Embora independentes não é certo dizer que tais responsabilidades não possuem alguma relação mesmo que estreita.

A apuração de uma responsabilidade civil poderá agravar um processo penal movido em face do servidor, assim como o resultado de um inquérito penal poderá refletir no processo administrativo-disciplinar.

O ponto inquietante é: “os atos praticados na vida particular do servidor reflete em responsabilidade administrativa?”

1 – Nortes da administração pública

 A função administrativa do Estado submete-se a um especial regime jurídico.  Tal regime é conhecido como regime de direito público ou regime jurídico-administrativo. Sua característica essencial é a admissibilidade da idéia de que a execução da lei por agentes públicos exige prerrogativas de autoridade, que façam com que o interesse público predomine sobre o interesse privado; e de outro, na formulação de que o interesse público não pode ser livremente disposto por aqueles que, em nome da coletividade, recebem a função de realizá-los. Consiste, na verdade, no regime jurídico decorrente da conjugação de dois princípios básicos.

Os princípios da administração pública é que norteiam o exercício da função do servidor público. Entre os principais princípios estão legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A Constituição Federal de 1988 elenca estes princípios em seu art. 37, caput.

Princípio da legalidade significa dizer está no texto “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O que este texto quer dizer é que o servidor público está direcionado ao cumprimento das leis no exercício da função, assim entendendo como uma indisponibilidade do interesse público, ou seja, o servidor não poderá se desviar do caminho traçado pelas leis sempre priorizando o interesse público. Já o princípio da impessoalidade prega que os servidores devem realizar seus atos sempre em nome do ente a que servem e não ao funcionário individualmente, ou seja, os atos são imputados aos órgãos que empregam o servidor.

Outro importante princípio é o da moralidade, que está colocado no sentido de que ao servidor não basta o cumprimento das normas estabelecidas, mas que seus atos sempre devem estar de acordo com os princípios éticos de conduta da administração pública relacionado com a moral social, esta sempre importante para qualquer realização de ato da administração pública, pois é para a sociedade que a administração trabalha. Por estes motivos é que o servidor público está sempre “vigiado” pela sociedade e deverá encaminhar seus atos para a melhor realização possível estando passível de responsabilização por qualquer desvio de conduta que possivelmente venha a praticar.

2 – Vida privada x vida pública: reflexos no poder disciplinar

O regime disciplinar dos servidores da administração não está atrelado unicamente à vida pública, mas também às condutas praticadas no cotidiano de cada servidor, nas relações sociais e na imagem que eles passam sobre as instituições a que representam. Assim abre-se a possibilidade de tais atos privados refletirem no exercício da função pública e na responsabilidade do agente por ato não vinculado a função.

Segundo José Armando da Costa[1], o procedimento irregular do servidor em sua vida privada pode se enquadrar no âmbito da responsabilidade disciplinar, em virtude do fato de a moralidade e seriedade da Administração Pública eventualmente caírem no descrédito diante dos administrados, no caso da presença de elemento inescrupuloso e desonesto nos quadros funcionais do Estado.

Um bom exemplo trazido pelo supracitado autor é o de agentes policiais, que possui como escopo de suas profissões o zelo pela segurança pública, a aplicação das normas, garantia da moralidade, paz social entre outras atribuições. Seria admissível que um agente público dessa categoria fosse conhecido como homicida, explorador de prostituição infantil, agiota, integrante de quadrilhas, autor de extorsão ou tráfico de drogas, ainda que consume essas condutas reprovadas e criminosas fora do desempenho do cargo?

Acerca desse assunto podemos colocar uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

Não se afigura razoável o preenchimento de cargo de Delegado de Polícia Federal por pessoa que, no passado, foi presa em flagrante delito por posse de cocaína, processada e condenada por tráfico de entorpecentes; foi demitida, a bem do serviço público, por auferir vantagens e proveitos pessoais em razão das atribuições que exercia; entregou-se à prática de vícios e atos atentatórios aos bons costumes; mantinha relações de amizade com pessoas de notórios e desabonadores antecedentes, inclusive com criminosos envolvidos com tráfico de drogas, roubo e furto de veículos; abandonava o serviço para o qual estava escalado; freqüentava lugares incompatíveis com o decoro da função policial; exercia atividades profissionais estranhas ao cargo; e que envolvia-se em transações de armas de calibre proibido, inclusive metralhadoras de origem estrangeira. Confrontando os atos praticados pelo apelante com a norma que estabelece as hipóteses que afastam a presunção de idoneidade moral dos candidatos a cargos da carreira da Polícia Federal, conclui-se que o Conselho de Ensino da Academia Nacional de Polícia agiu dentro da legalidade ao enquadrar o apelante no item 2, alíneas b, f e h, bem como item 3 da Instrução Normativa n. 03/97 do Departamento de Polícia Federal. A Polícia Federal não pode correr o risco que admitir em seus quadros policial com passado tão sombrio, sob pena de por em risco a integridade da sociedade para a qual presta seus serviços, notadamente quando se trata do cargo de Delegado de Polícia. Apesar de não garantir uma conduta profissional irreparável, a investigação da vida pregressa dos candidatos a cargos policiais é um fator de inegável importância no processo seletivo, onde, de plano, a administração deve afastar aqueles cuja falta de idoneidade moral fique desde logo demonstrada pela existência de atos praticados com violação à ordem jurídica posta.[2]

3 – Caso de repercussão de condutas privadas na administração pública

Poderíamos citar aqui um caso de um engenheiro que responde por projetos quando trabalhador autônomo, após algum tempo este mesmo sujeito passa integrar o quadro de servidores públicos de um determinado município. Em um determinado tempo os imóveis advindos de seus projetos apresentam problemas graves acarretando inclusive em riscos a saúde e à segurança dos que utilizam tais imóveis. Assim com a constância de erros o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), órgão que administra a profissão dos engenheiros caçou o registro profissional deste sujeito, consequentemente a impossibilidade de exercer a profissão, impede que ele continue exercendo a função pública, pois juridicamente não é mais apto a exercer a profissão que o enquadra no serviço público de engenheiro servidor de um município.

Assim como o exemplo citado da engenharia pública, podemos encaixar neste sentido a profissão da medicina exercida em cargo público de servidor da saúde pública seja ela municipal, estadual ou federal. A regulamentação da medicina cabe aos CRMs (Conselho Regional de Medicina), sendo exigido a cada médico um registro nos respectivos conselhos se seus estados para que possam exercer legalmente a profissão.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios considerou legítima a demissão de servidores públicos do Distrito Federal por atos irregulares praticados durante o exercício da função pública no conselho fiscal e da diretoria comercial de Caixa Beneficente de empresa pública distrital.

 

4 – Vinculação dos atos privados com o exercício da função

De acordo com o artigo 148, b, da lei nº 8.112/90 para que seja consolidada a responsabilidade administrativa do servidor por atos da vida privada deve guardar relação com as atribuições do cargo ocupado pelo agente, ou seja, o real prejuízo do ato privado e o desrespeito aos valores da administração pública.

Marcelo Caetano[3] coloca: "É preciso que, fora do serviço, não esqueça o respeito devido à corporação de que faz parte, mas ressalva que o dever de boa conduta na vida privada não compreende a esfera da intimidade do funcionário; só as manifestações da vida particular que, por sua publicidade, possam causar escândalo e comprometer o prestígio da função pública".

Outro exemplo é o do inciso XLVIII do art. 43 da Lei nº 4.878/1965, traz a possibilidade de pena a ato praticado por servidor em dia de folga, como exemplo comum é o de policiais que utilizam suar armas em ocorrências particulares que não em defesa da segurança pública ou defesa de terceiros.

Conclusão

Após analisar as circunstâncias que cercam a responsabilidade administrativa de um servidor público é possível constatar que há de fato uma dificuldade de responsabilizar o servidor por um ato cometido na vida privada, fora do exercício das funções. Importante frisar que o termo ‘dificuldade’ não enseja uma necessidade ou uma busca de punição, pois a intimidade e a pessoalidade devem ter seu meio próprio de investigação e punição.

Há que se fazer muitas ponderações acerca de uma responsabilização. Será que o ato realmente violou preceitos da administração, colocou em risco a credibilidade, a moralidade, a legalidade? Todas essas questões deverão seguir o procedimento probatório do procedimento administrativo-disciplinar para que não haja equívoco na aplicação da sanção até mesmo um abuso de poder por parte do ente representado pelo servidor.



[1] COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 201.

[2] AMS 1998.34.00.025150-5/DF. Relatora: Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida. 5ª

Turma. DJ de 27.10.2005. p. 71. Decisão de 28.09.2005.

[3] CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, v. I e II. p. 751.