Relativização da coisa julgada

O conflito entre valores e a justiça de um novo julgamento

 

 

Carolina Viegas Cavalcanti1

Thiago Melo Ribeiro de Carvalho2

 

1. Introdução; 2. A teoria da dimensão de peso e importância de Dworkin; 3. Flexibilização da coisa julgada: segurança jurídica e paz social 4 A discussão da justiça num novo julgamento; Conclusão; Referências.

 

 

 

RESUMO

Realiza-se uma análise dos valores relacionados ao instituto da coisa julgada, sobretudo a manutenção da paz social e a garantia da segurança jurídica. Enfoca-se nas sentenças injustas e imorais, estabelecendo a relação que a flexibilização da coisa julgada possui como solução. Destaca-se ainda a teoria da dimensão de peso e importância de Ronald Dworkin como base conceitual do trabalho.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Coisa julgada. Flexibilização. Julgamento justo.

 

 

A base da sociedade é a justiça; o julgamento constitui a ordem da sociedade: ora o julgamento é a aplicação da justiça.

(Aristóteles em “A Política”)

INTRODUÇÃO

A relativização da coisa julgada trata-se de um tema bastante polêmico na doutrina brasileira. Antes de tudo, a coisa julgada, para boa parte dos doutrinadores é uma importante garantia de direitos fundamentais e, portanto, a sua flexibilização seria um impeditivo de segurança jurídica.

Observa-se então uma crise entre dois princípios: a segurança jurídica e a justiça jurisdicional, que poderá ser alcançada com um novo julgamento. A discussão doutrinária ocorre, portanto, pela defesa da predominância de um destes princípios.

Portanto, inicia-se o trabalho discutindo acerca da teoria de Dworkin sobre a predominância de princípios, e quando deve-se lançar mão de tal ferramenta para garantir um julgamento justo. Afinal ao se buscar um provimento jurisdicional, busca-se um instituto justo capaz de tomar decisões corretas baseadas na ética e na moralidade.

Porém, num novo julgamento encontra-se um novo cenário, suscetível novamente a erro. É nesse sentido, que a discussão da flexibilização da coisa julgada ajuda na padronização de casos passíveis de tal instrumento, buscando-se não cometer os mesmo erros do julgamento anterior.

 

2 A TEORIA DA DIMENSÃO DE PESO E IMPORTÂNCIA DE DWORKIN

 

A discussão acerca da relativização da coisa julgada abrange duas dimensões de análise: a primeira correspondente ao choque entre regras, que ocorre numa dimensão de validade e a segunda que ocorre na ponderação de princípios, que ocorre numa dimensão axiológica. No primeiro caso, no que tange à análise de um julgamento, a opção por uma destas regras conflitantes resulta, obrigatoriamente, na exclusão de outra. Ao passo que a aplicação de um princípio não enseja a exclusão do outro.

Dentre várias teorias que buscam solucionar o problema que circunda a coisa julgada, destaca-se a teoria de peso e importância de Ronald Dworkin3 que elucida um caminho na determinação do princípio a ser utilizado quando houver conflitos. Para o jurista americano, os princípios "possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância.” O que nos faz concluir que “quando vários princípios se entrecruzam quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles.”

O autor ainda continua sua definição ao diferenciar o caráter de dimensão em relação às regras.

 

 

As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida. (DWORKIN apud ESPÍNDOLA, 1999)

 

 

Do pensamento de Dworkin conclui-se que há uma única resposta correta para um determinado conflito entre princípios. O que por sua vez fundamenta a possibilidade de uma reforma de uma decisão judicial, uma vez que, nos casos em que se observar um julgamento injusto, haverá de se buscar a resposta correta para aquele conflito.

A teoria de Dworkin encontra empecilhos na aplicação no caso concreto, pois, em análise, o peso e a importância dos princípios variam conforme as peculiaridades de cada caso concreto. Nesse caso estaríamos novamente em um julgamento suscetível a vícios. Assim, por mais que o jurista Dworkin busque uma verdade axiomática, o que se percebe é que num dado caso concreto, tal acepção não é sempre possível.

 

 

3 FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA: SEGURANÇA JURÍDICA E PAZ SOCIAL

 

Quando existe uma análise dos pressupostos que norteiam a coisa julgada em sua segurança jurídica e como direito constitucionalmente garantido, é preciso entender que a supressão e redução de um litígio à coisa julgada também pode contrariar os preceitos constitucionais se avaliarmos os parâmetros da coisa julgada pela sua materialidade ou formalidade, e não apenas nessa possibilidade, mas também a cristalização de uma decisão pela mera contrariedade desta em relação aos requisitos formais e materiais pode ser injusta e inconstitucional.

A compreensão da relativização da coisa é atualmente pautada em parâmetros restritos relativos a procedimentos em sedes recursais e de acordo com limitações para que seja possibilitado o direito fundamental à segurança jurídica, de acordo com o art. 5°, XXXVI CF.

Quanto a isso, não se discute o direito a impugnação da sentença proferida. A nova corrente que pesquisa os efeitos da coisa julgada, cujo objeto ainda não se encontra presente comumente na avaliação dos julgamentos, parte de um pressuposto menos superficial em relação ao direito de questionar uma sentença. Há quem defenda que existem sentenças em trânsito julgado, que estão em desacordo com princípios fundamentais e são visivelmente injustas, isto porque, perdeu-se o direito de questionamento por causa das limitações expressas pelo ordenamento.

Segundo Cândido Dinamarco, a coisa julgada somente deve ser cristalizada se: a) consoante com as máximas da proporcionalidade, razoabilidade, moralidade administrativa – quando não seja absurdamente lesiva ao Estado; b) cristalizar a condenação do Estado ao pagamento de valores “justos” a título de indenização por expropriação imobiliária; c) não ofender a cidadania e os direitos do homem e não violar a garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Percebe-se que dessa forma o autor abranda o direito a relativização tentando consolidar as possibilidades para que não exista insegurança jurídica em relação a decisão proferida, podendo a outra parte interferir na situação.

Não existe nesse caso, o desrespeito ao dispositivo constitucional citado acima, que garante a segurança jurídica da decisão proferida. A avaliação do caso concreto é, portanto, dever do poder judiciário.

Assim, a ponderação de qual princípio constitucional deve prevalecer em casos reais é essencial em casos concretos. Por mais que não se alcance uma única resposta correta para o caso, estaremos garantindo de forma mais efetiva a paz social ante o litígio.

 

 

4 A DISCUSSÃO DA JUSTIÇA NUM NOVO JULGAMENTO

 

Uma das principais críticas feitas à relativização da coisa julgada reside no fato de que um novo julgamento para o caso estaria estabelecendo, antes de tudo, um estado de grande incerteza. Além do mais, a "desconsideração" geraria uma situação insustentável de garantia jurídica.

A grande pergunta que surge é: “como garantir a justiça em um novo julgamento?” Para o autor Gustav Radbruch, a disciplina da vida social não deve ser entregue às diversas opiniões que os homens possuem, pelo fato desses homens possuírem opiniões e crenças opostas. Assim, nas palavras do filósofo: “a vida social tem necessariamente de ser disciplinada duma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos.” 4

Vale destacar que não se pode admitir a relativização da coisa julgada apenas diante de uma alegação de injustiça da sentença. É necessário um fundamento constitucional válido para argumentação. Logo em um novo julgamento a justiça da decisão seria obtida através de fundamentos constitucionais, considerando-se que isso não ocorreu no julgamento primário.

Há, porém, parte da doutrina que discorda de tal posição, e coloca a justiça de uma decisão em primeiro plano numa provisão jurisdicional. Para tais autores, os valores absolutos da legalidade, moralidade e justiça estão acima do valor de segurança jurídica por considerar esta uma norma estritamente processual, ao passo que aqueles representam os pilares do regime democrático.

 

 

Por conta disso é que sustento a possibilidade de relativização da coisa julgada nos casos em que tal autoridade incida sobre a sentença que ofenda a Constituição da República. [...] Trata-se, tão-somente, de desconsiderar, em um dado caso concreto, a existência daquela sentença transitada em julgado, julgando-se a nova causa como se aquela decisão não existisse. 5

 

 

Portanto, em casos concretos, a flexibilização da coisa julgada busca afastar injustiças que eventualmente são acobertadas pelo princípio da segurança jurídica que fundamenta a coisa julgada. Por mais que se busque manter a ordem social através da consolidação de um julgamento, corre-se o risco de manter decisões absurdas.

Logo, um novo julgamento deveria ser pautado em hipóteses que assegurariam um julgamento diferenciado do anteriormente obtido, buscando, de início, a correção dos vícios cometidos. Trata-se, como leciona Câmara, de desconsideração da sentença anterior para obtenção de um novo julgamento correto e adequado aos princípios da Constituição.

 

 

CONCLUSÃO

 

A relativização da coisa julgada é um dos temas que mais trazem discussão entre a doutrina atualmente. Enquanto parte dos doutrinadores vê a justiça jurisdicional como o princípio mais importante num julgamento, outra vertente considera a segurança jurídica como princípio fundamental à obtenção da paz social.

Assim, no que tange à ponderação destes princípios constitucionais conclui-se que não é possível obter uma única resposta absoluta para cada caso como menciona Dworkin. A valoração de cada um destes princípios deverá ser obtida somente no caso concreto, considerando-se todas as variáveis possíveis e particulares àquele julgamento.

Ideal seria se houvesse uma teoria, ou mesmo uma ferramenta capaz de garantir a justiça em todos os julgamentos, porém, a relativização da coisa julgada, do modo como vem sendo aplicada, nos parece um caminho a ser trilhado na obtenção de um provimento jurisdicional constitucionalmente correto.

Entende-se, portanto, que as injustiças que podem vir a ser cometidas por sentenças inconstitucionais são mais prejudiciais ao Estado Democrático de Direito do que as levantadas pela doutrina contrária à desconsideração da coisa julgada. Um novo julgamento idôneo, regrado pela Constituição asseguraria o acesso à justiça.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. v. 1. 17. ed. rev. Rio de Janeiro: Lumem juris, 2008.

 

DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Vol. 2. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008.

 

DWORKIN, Ronald. Takingrights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

 

MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 448, 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5716>. Acesso em: 29 out. 2010.

 

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, trad. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Armado Editor, 1979.

 

WILDO, Francisco.Considerações sobre a desconstituição e a relativização da coisa julgada. Revista do Tribunal Federal 5° região N° 56, Abril/Junho, 2004.

 

1 Acadêmica do 5° período do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ([email protected])

2 Acadêmico do 5° período do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ([email protected])

3 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1978.

4 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, trad. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Armado Editor, 1979.

 

5 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. v. 1. 17. ed. rev. Rio de Janeiro: Lumem juris, 2008.