Quando Não Mais Me Suporto
Publicado em 27 de setembro de 2011 por David Guarniery
Quando Não Mais Me Suporto
Creio não haver neste mundo um só homem que em algum momento não se tenha deparado consigo[1]. A efígie pela qual reconhecemo-nos, projetada por sobre a superfície lisa de qualquer coisa, não nos é menos objeto de nós mesmos que aquele pelo qual nos é possível ver-nos. E, como para qualquer fenômeno percebido, na medida em que me tomo como coisa muda, surpreendo-me a impetuosamente julgar quem sou. Primeiro, julgo que aquela imagem seja Eu; depois projeto sobre a mesma a lembrança, ainda que muito pálida, de um sucesso que se prolonga no tempo. Elevo-me em voz dizendo: Sou isto que vejo; e para além do que vejo, também isto sou eu. Sou a memória de ainda ontem e a esperança do porvir. Guardemos, por hora, este raciocínio… a fim de memorar um episódio.
Ontem, ao passar pelo calçadão da cidade de Londrina, ouvi a conversa de duas jovens que deveras riam de um não muito insólito evento, qual seja: Não outro senão a vergonha que sentiam de, vestidas com o uniforme do trabalho[2], serem vista por dois rapazes os quais julgo despertarem nestas a lascívia de mulher[3], em momento, oprimida pelas vestes da profissão da qual pouco ou nada podem o orgulhar-se. Em seus dizeres aos risos: “Eu tenho vergonha dele”. Caro leitor, eis aí o tema de minha modesta inquirição, também assunto desta tão confusa crônica às pressas elaborada. O que poderia[4] ser o constrangimento? Qual a origem do acontecimento deste na emotividade humana?
Resposta à primeira indagação penso ser: Em um momento, um abalo emotivo. Já a causa deste abalo e nunca o fenômeno por ele mesmo penso ser a via humanamente possível de afirmação da natureza do sentimento desperto. Portanto, eis, a partir do exposto, a possível resposta à segunda: Somos objetos de nós mesmo; e, em tese[5], vimos que atribuímos aos objetos um significado – isto o torna, para nós mesmos, significante[6] –; O mesmo processo penso ocorrer com o objeto a que julgamos ser o Outro, e nem haveria motivo para assim não ser, uma vez dado o devido aceite às asseverações dos parágrafos anteriores. Quando relacionamos os valores que atribuímos a nós mesmos com os valores atribuídos ao Outro, também objeto de nossa percepção; e, quando já estabelecida a devida e necessária relação valorativa, terminamos por julgar inferiores os valores a nós correspondentes, penso termos o acontecimento do abalo emotivo então denominado Vergonha ou Constrangimento.
Certamente não é a este instante de nossa reflexão que ensejo chegar, mas a outro não menos relevante e curioso. Pelo raciocínio feito, somos, a fortiori, levados a concluir que não estamos em posse de um bom enunciado lingüístico quando dizemos o mesmo que as jovens de minha observação, o que seja: “Eu tenho vergonha dele”. Pois, como vimos, não nos é possível a vergonha do outro; antes, resta-nos apenas este enunciado a que julgo perfeitamente adequado: Eu sinto vergonha do que creio que sou diante do que penso você ser. Pois somente diante de você enquanto valores por mim projetados; e projetados como superiores é que sentirei imediata vergonha de mim.
Disto se segue que quando não mais somos capazes de tolerar o significado por nós atribuído a nós mesmos; e também por nós posto em relação com aqueles valores[7] que tornam significante o objeto de nossa consciência, despertamos creio que um desequilíbrio na emotividade, saindo assim do Trívia[8] para aquele específico abalo supracitado. Situação embaraçosa, estranha por natureza e digna de vergonha é, partindo do pressuposto de que o resultado desta modesta análise seja verdadeiro tanto quanto possam ser as premissa sob as quais assenta-se, rir de si; rir do significado posto por nós mesmo; achar graça não daquilo que interpretamos, mas da própria interpretação, feita em conformidade a despertar o riso.
Rimos e nos sentimos constrangidos, alegre, felizes e até mesmo tristes não por aquilo que vemos, sentimos e ouvimos… mas por aquilo que pensamos ver, sentir e ouvir, fazendo mentalmente coincidir a natureza da coisa percebida[9] e a semântica do juízo feito. Vemos assim que a piada nunca teve sua graça; Que a morte nunca foi triste e nem ao menos veste-se com toda a lúgubre aparência que nos afligi. Não é deplorável o estar só, nem é mais bela a companhia. Minha lágrima é meu efeito porquanto é dela que sou causa. Rio de mim mesmo; tenho medo de mim; E já não há no mundo homem que, enquanto homem, nunca tome por herança a dúvida de ter vivido só, ao lado de um objeto cuja vida era não mais do que apenas pressuposta.
O irônico agora não é mais o rir de si, antes, porém, se de concordado com o proposto, ter buscado por esta, atentado-se ao sentido próprio de cada verbo e ainda assim ter lido apenas a si próprio. Se o sentido é você quem concedeu; o objeto, você quem escolheu[10], o autor deste mundo é você. Justificados que estamos pela suposta natureza daquilo que nos supomos exemplo, cito agora isento da sepulta obrigação da referência: “o ântropos to metro olon ton pragmáton (O homem é a medida de todas as coisas)”[11].
Autor: David Guarniery
Idade: 24 anos
Início: 19:29
Término: 19:42
Tempo Gasto: 13 minutos
Dia: Sábado
Data: 18 de setembro de 2010
Obra: 001
Classificação: Crônica Lírico-Filosófica
In Memoriam:
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Brasil/ Paraná/ Cambé
[1] Não é de todo uma alogia dizer: Pensamos apenas a nós mesmos.
[2] Tratava-se do horário de almoço, motivo pelo qual não as encontrei no âmbito de seu ofício. Este detalhe não é posto aqui por acaso, mas não mais do que isto aprofundar-me-ei neste em virtude da proposta brevidade deste texto.
[3] Uso Mulher apenas como termo cuja semântica espero evocar a idéia de gênero e já não de um do muitos modos possíveis de identificação etária.
[4] Apraz-me reiterar que sou cético.
[5] Apresentada cronicamente já no primeiro parágrafo desta.
[6] Tornamo-nos significantes para nós mesmo; E evitamos com isto uma não percepção e mesmo a omissão imediata de nós.
[7] Estes valores, bem como qualquer outro, penso advir sempre do sujeito cognoscente, portanto, é posto pela mente humana por um processo de relação entre o conteúdo mental prévio e o objeto percebido.
[8] Termo por mim introduzido para designar o sentimento resultante daquilo que julgamos ser-nos trivial.
[9] Partindo sempre do pressuposto de que haja algo exterior ao espírito humano; e que tal coisa possui, por conta disto, uma natureza própria e já não uma natureza pressuposta.
[10] Em última instância, admitindo-se que a consciência possui uma intencionalidade, todos os objetos poderiam, com efeito, serem interiores ao espírito humano e, por conta disto, efeito de um desejo próprio.
[11] Autoria: Vossa senhoria, O Leitor.