UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO


 

 

 

 

HUGO POMPEU ANDRADE GURGEL

 

 

 

 

 

PROPRIEDADE IMÓVEL, DOMÍNIO E FUNÇÃO SOCIAL

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FORTALEZA

2012

RESUMO

A função social está inserida, ao lado das três faculdades do domínio (jus utendi, jus fruendi e jus disponendi) e da faculdade de reivindicar (rei vindicatio), como um elemento interno do direito subjetivo de propriedade. Seria um quinto elemento, responsável por legitimar o exercício dos demais, devendo, portanto, evitar-se a sua conotação como mais um limite ou restrição imposta à propriedade pelo ordenamento jurídico, que se apresentam externos ao direito. Enquanto os demais elementos são estáticos, a função social possui a característica da dinâmica. Sua adjudicação ao direito de propriedade promove um impulso, um estímulo interno e positivo ao exercício do direito subjetivo. Diferencia-se, pois, da limitação ordinária para apresentar-se como um princípio conformador que propicia a reformulação do direito de propriedade como uma relação jurídica complexa, um centro de imputação de interesses diversos, responsável pela articulação do social com o particular, instituidora de uma rede de direitos e contradireitos recíprocos entre o proprietário e a sociedade.

Palavras-Chave: Propriedade. Domínio. Função social.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 4

1 PROPRIEDADE - CONCEITUAÇÃO 5

1.1 Histórico e evolução do direito de propriedade 5

1.2 Direito de propriedade: quadro atual no Brasil 9

2 PROPRIEDADE E DOMÍNIO 11

2.1 Elementos estruturais e constitutivos do direito de propriedade 11

2.1.1 Faculdade de usar 12

2.1.2 Faculdade de gozar 13

2.1.3 Faculdade de dispor 14

2.1.4 Faculdade de reivindicar 15

2.2 Atributos da propriedade 16

2.2.1 Plenitude 17

2.2.2 Exclusividade 18

2.2.3 Perpetuidade 19

2.2.4 Elasticidade e consolidação 21

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 23

3.1 Generalidades: função social como decorrência da evolução da propriedade 24

3.2 Análise dos termos da “função social” 24

3.3 Propriedade: direito subjetivo com função social 26

3.3.1 Abuso de poder e atos emulativos 27

3.3.2 Extensões do direito de propriedade 28

3.3.3 Limitações ao direito de propriedade 30

3.3.4 Função social como conformadora da propriedade 33

CONCLUSÃO 36

REFERÊNCIA 37

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho tem por objetivo abordar o conceito de propriedade, visto ser o cerne da Disciplina de Direito Civil V – das Coisas, compondo um dos pilares do estatuto jurídico que rege o patrimônio, juntamente com a posse e a empresa. Busca também confrontá-lo com a acepção constitucional que lhe impõe a adoção da função social.

O capítulo primeiro objetiva conceituar a propriedade. Desvendar a origem e a sua evolução histórica, percebendo o que caracterizou o dinamismo de seus significados ao longo dos séculos e dos diferentes regimes e ordenamentos jurídicos em que se inseriu. Culminando com a conotação do atual ordenamento jurídico nacional.

O capítulo segundo vem tratar das distinções e complementaridades entre propriedade e domínio. Traz uma abordagem dos elementos estruturais e constitutivos do direito de propriedade - faculdades de uso, gozo e disposição, que compõem o domínio, somadas ao rei vindicatio. E em seguida passa a verificar os atributos pertinentes à propriedade.

No capítulo terceiro, trazemos a função social da propriedade, desde uma análise dos termos que compõem a expressão, passando por sua aplicabilidade e presença nos demais direitos subjetivos, diferenciando a função social de dispositivos limitadores e restringentes da propriedade. Concluindo por conceituar a função social como elemento conformador e reposicionador do direito de propriedade nos moldes da Constituição Federal de 1988.

Conclui-se que, quanto à propriedade, resta demostrado não como algo estático e sólido, mas antes sua dinamicidade, que marca sua diferente aplicabilidade de acordo com o sistema jurídico que o acolhe. E, hoje, mostrando a internalização da função social como elemento legitimador do seu exercício, revela-se o caráter humanizador e coletivo de um direito até outrora eminentemente patrimonial e particular.

1 PROPRIEDADE – CONCEITUAÇÃO

 

A própria origem do vocábulo é obscura, entendendo alguns que vem do latim proprietas, derivado de proprius, designando o que pertence a uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria toda relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou incorpóreo. (DINIZ, 2002 apud GONÇALVES, 2012, v. 5, p. 229).

Buscar um conceito para a propriedade é tarefa difícil e árdua. Não por falta de subsídios estruturais do elemento, mas antes pelo intenso processo histórico de relativização a que está submetida tal conceituação.

Devido a sua importância perante o processo de civilização humano, o instituto propriedade apresenta nuances e facetas diversas ao longo da história da humanidade, surgindo diferentes significações desde a Antiguidade aos tempos modernos, variando substancialmente, inclusive, a sua organização jurídica de país a país. Sobretudo é também inegável que a configuração da propriedade recebe influência direta e profunda do regime político em cujo sistema jurídico é concebido tal instituto.

1.1  Histórico e evolução do direito de propriedade

Na Antiguidade, fora de sua comunidade, o homem não representava nada, apenas sua posição social lhe servia de esteio.  O indivíduo, bem como seu patrimônio, estava absolutamente vinculado ao Estado, de modo a inexistirem direitos subjetivos individuais, e mesmo a concepção de liberdade se limitava a uma noção de liberdade da comunidade.

Um salto histórico permite observar que com a ampliação da dominação territorial do Império Romano e de seu ordenamento jurídico, surge a propriedade como um direito absoluto, perpétuo, oponível erga omnes e exclusivo de seu titular, que assim poderia dela dispor com plenitude.

Em sua obra clássica “A Cidade Antiga”, FUSTEL DE COULANGES traz a compreensão subjetiva que propriedade privada teve seus fundamentos originários na religião, que nos primórdios se praticava por meio do culto aos antepassados familiares. Os mortos apresentavam o caráter de divindades, com a peculiaridade de serem exclusivos de suas famílias. Estas tinham o dever de adorá-los e protegê-los, de modo que cada família possuía seu lar, um altar para seus deuses. Não havia a caracterização de religiosidade “comunitária”, era como se cada família possuísse sua própria religião, sendo inadmissível a participação no culto de qualquer pessoa não pertencente àquela família.

Assim, segundo FUSTEL DE COULANGES (2006, p. 52):

Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis.

O direito de propriedade assim configurado era tão intrínseco à cultura e costumes da época que se permitia situações bem curiosas, como se percebe nesta passagem do citado livro:

A família apropriou-se da terra enterrando nela os mortos, e ali se fixa para sempre. O membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente: Esta terra é minha. — E ela lhe pertence de tal modo, que lhe é inseparável, não tendo nem mesmo o direito de desfazer-se dela. O solo onde repousam seus mortos é inalienável e imprescritível. A lei romana exige que, se uma família vende o campo onde está o túmulo, continua no entanto proprietária desse túmulo, e conserva eternamente o direito de atravessar o campo para nele cumprir as cerimônias do culto. (FUSTEL DE COULANGES, 2006, p. 55)

O vínculo com a terra era, pois, perpetuado pela religião, revestindo-se o direito de propriedade, portanto, de um caráter sagrado, mostrando uma interessante trama onde se tem a religião como fundamental para a origem e justificação da proteção à propriedade e, de modo recíproco, mostrando-se a manutenção da propriedade como indispensável à persecução religiosa da família e da sociedade à época, conforme ilustra FUSTEL DE COULANGES (2006, pp. 56 e 57):

Suprimi a propriedade, e o altar ficará errante, as famílias confundir-se-ão, os mortos ficarão abandonados e sem culto. Por causa do altar irremovível e da sepultura permanente, a família tomou posse do solo; a terra, de certo modo, foi imbuída e penetrada pela religião do lar e dos antepassados.

ENGELS (1982) apresenta a relação intrínseca entre a concepção de lar e de propriedade em sua obra “A origem da família, da propriedade e do Estado”. O autor relega a religiosidade a um segundo plano, proporcionando uma abordagem predominantemente socioeconômica, mostrando como a evolução dessas estruturas parte do caráter público e coletivista ao privado e individualista.

ENGELS afirma que “o governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada tinha mais a ver com ele. O governo do lar transformou-se em serviço privado; a mulher converteu-se em primeira criada, sem mais tomar parte na produção social” (ENGELS, 1982, p.80).

Isso ocorreu com a transformação na concepção de lar e de família promovida pela valorização social da família individual monogâmica e do patriarcalismo, que findariam por constituir a base filosófica e principiológica à regulação do direito de apropriação da terra e de outros meios de produção econômica.

As invasões bárbaras que se insurgiram, terminariam por minar o domínio romano, e o declínio desse Império contribuiu para a instituição de um sistema senhorial que viria a configurar a essência do feudalismo medieval.

Comparando a estrutura desses dois distintos “sistemas jurídicos” observa-se que se operou uma inversão do direito de propriedade, ao passo que, enquanto no direito romano o homem apresentava-se com domínio absoluto da terra, no sistema feudal a terra se apropriava do homem, visto que os servos que trabalhavam a terra eram tidos como meros acessórios quando propriedade era vendida.

Essa relação com a propriedade assim perdurou até que mudanças sociais profundas destituíram a propriedade territorial de seu posto de principal, e quase que único, meio de dominação e de obtenção de status social.

O fortalecimento do comércio impulsionou a formação das primeiras cidades, oriundas dos burgos que se formavam em torno das propriedades feudais, surgindo as primeiras rotas comerciais para distintas regiões. A produção de insumos e bens tornou-se massificada, pois antes direcionada apenas para o consumo próprio, agora se volta ao excesso de forma a possibilitar a sua disponibilização a terceiros que não produzissem o mesmo objeto. Assim, o homem passa a modificar alguns produtos objetivando lhe imprimir maior valor, surgindo os artesãos e mestres de ofício, e com eles, novos meios de produção e divisão do trabalho. Reconhecemos aqui a base e a estrutura econômica do capitalismo.

Essas transformações socioeconômicas culminaram no surgimento de uma classe detentora de grande poder econômico, porém desprovida de status e de domínio territorial. E consequentemente, a nova classe buscaria por transformações que pudessem modificar esse panorama. A irrupção do formato clássico social precisava apenas de uma corrente ideológica que pudesse justificar a quebra do estamento dos privilégios – modo típico de propriedade do antigo regime.

Fundado nos ideais de liberdade individual e razão, o Iluminismo avalizou os anseios da burguesia. Juntamente ao liberalismo, promoveu as mudanças capazes de levar a nova classe ao almejado poder político. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2012, v. 5, p. 22), “A liberdade preconizada servia à burguesia, afeiçoando-se aos seus interesses e proporcionando segurança aos novos proprietários, pertencentes à aludida classe.”.

Entretanto, a propriedade e a economia de um modo geral deveriam ser defendidas não só do abuso de terceiros como também perante os arbítrios do Estado Absoluto, promovendo a segurança necessária ao desenvolvimento econômico.

Sobre o liberalismo e o Iluminismo, sua serventia às causas burguesas, e seu relacionamento com o direito de propriedade, comentam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, pp. 165 e 166, grifo do autor):

Veicula-se a idéia (sic) do homem como portador de direitos inatos que devem ser garantidos pelo Estado. A primeira geração de direitos fundamentais constitui em deveres de abstenção por parte do Estado, no sentido de preservar as liberdades individuais. Dentre os direitos naturais e inalienáveis da pessoa, o mais significativo era a propriedade. No modelo econômico liberal do laissez faire, a função estatal primordial era a de defender a segurança do cidadão e da sua propriedade. Os demais problemas sociais seriam solucionados pela ‘mão invisível’ do mercado.

Como se constata, há um retorno do direito de propriedade aos contornos trazidos pelo direito romano, pois “Com a Revolução Francesa instala-se, nos sistemas jurídicos, uma propriedade com características fiéis à tradição romana e aos princípios individualistas.” (GONÇALVES, 2012, v. 5, p. 22).

1.2 Direito de propriedade: quadro atual no Brasil

Diante, portanto, do necessário dinamismo com que se apresenta o conceito do objeto em estudo, cumpre observar que o mesmo não é uma sentença aberta, livre a interpretações tantas quantas se atrevam, mas sim, deve ater-se aos parâmetros fixados pelas legislações (costumes) vigentes à época, desaguando por fim, em uma expressão jurídico-social contextualizada espaço-temporalmente.

Aduz Caio Mário da Silva Pereira (2004, v. IV, p. 89) que quanto à propriedade “mais se sente do que se define”, pois “a ideia de ‘meu e teu’, a noção do assenhoreamento de bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de conhecimento ou do desenvolvimento intelectual”.

Contrasta tal simplicidade na percepção, com a desmedida importância que a propriedade desempenha na sociedade, a ponto de se fazer inserir na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com o status de Garantia Fundamental, e de forma até mesmo bastante enfática, pois se faz presente tanto no caput, quanto em um dos incisos do art. 5º da Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

XXII - é garantido o direito de propriedade; (BRASIL, 1988)

O Código Civil Brasileiro vigente (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), em seu Livro III (Do Direito Das Coisas), no Título III (Da Propriedade), adota a posição de conceituar propriedade apenas analiticamente, limitando-se a explicitar as faculdades de que dispõe o proprietário em relação ao bem, como atesta o artigo inicial do Capítulo I (Da Propriedade Em Geral), transcrito a seguir:

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (BRASIL, 2002)

Assim, não se apresenta o conceito de propriedade em si, mas desenha-se nitidamente uma definição de direito de propriedade a partir da análise dos elementos essenciais descritos no referido artigo 1.228, conforme corrobora Gonçalves (2012, v. 5, p. 230) ao definir tal direito como: “poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”.

Orlando Gomes (2008, p. 109, grifo do autor) de forma sucinta, porém didática, direciona a uma compreensão conclusiva acerca da conceituação de propriedade, que segundo o autor:

[...] pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com limitações da lei. [...]

Se é certo que nenhum desses critérios satisfaz isoladamente, o conhecimento dos três permite ter o direito de propriedade noção suficientemente clara. É a análise de seus caracteres que torna entretanto mais nítidos seus traços.

2 PROPRIEDADE E DOMÍNIO

Embora o Código Civil de 2002 adote apenas o termo propriedade, diversamente do Código de 1916, onde encontrávamos alternadamente os vocábulos propriedade e domínio, é necessário termos em conta que tratam-se de noções autônomas e complementares.

Propriedade surge então, como relação jurídica complexa formada entre o titular do bem e a coletividade de pessoas. Tendo essa relação jurídica como objeto o dever geral de abstenção.

Já o domínio expressa a relação material de submissão direta e imediata da coisa ao poder de seu titular, através do exercício das faculdades de uso, gozo e disposição. Seria o conteúdo interno da propriedade.

Farias e Rosenvald (2010, p. 192) nos traz esta sinopse conceitual:

“o direito subjetivo de propriedade remete à titularidade formal e a relação jurídica entre proprietário e coletividade; a seu turno, o domínio conduz ao senhorio do proprietário sobre o bem, traduzindo os poderes que ele exerce de forma imediata sobre a coisa, retirando dela a ingerência econômica”.

O mesmo autor ilustra as distinções entre os conceitos que se projetam no campo da prática, onde o direito de propriedade instrumentaliza o domínio. “Enquanto as faculdades de uso, gozo e disposição compõem o domínio – com possibilidade de desmembramento -, a pretensão reivindicatória emerge da lesão ao direito subjetivo de propriedade e traduz o conteúdo jurídico do direito jurídico.” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 169).

2.1 Elementos estruturais e constitutivos do direito de propriedade

 

Nos dizeres de Gomes (2008, p. 109, grifo do autor), “A propriedade é um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”.

As três primeiras supracitadas faculdades (jus utendi, jus fruendi e jus disponendi) conjuntamente constituem o domínio, enquanto a tutela externa do direito subjetivo de propriedade vem representada pela pretensão reivindicatória (rei vindicatio).

As faculdades pertencentes ao domínio apresentam a possibilidade de serem destacadas pelo seu titular, ensejando o surgimento dos direitos reais sobre coisas alheias, onde o proprietário tem o seu domínio restrito.

Tais direitos, também denominados de direitos reais menores – em alusão à plenitude do direito real de propriedade -, se subdividem em subespécies de acordo com a faculdade ora destacada, possuindo basicamente as características finalísticas de fruição ou garantia.

Uma vez destacada a faculdade e criado o direito real menor, este conviverá com o direito de propriedade, passando este de pleno a restrito, resguardando, no entanto, sua exclusividade.

Cumpre-nos particularizar cada uma dessas faculdades para uma melhor compreensão do direito de propriedade e sua finalidade prática.

2.1.1 Faculdade de usar

Apresenta-se a jus utendi como a possibilidade do proprietário servir-se da coisa de acordo com sua destinação econômica. Podendo o uso se dar de forma direta (utilização pessoal do bem) ou indireta (cessão em prol de terceiro), conforme a concessão do proprietário, cabendo ainda uma ao mesmo deixar o bem em poder de alguém que esteja sob suas ordens (servo da posse).

A faculdade não prescreve pelo não-exercício, podendo o dominus manter o bem simplesmente inerte, preservando-o em condições de servir-lhe quando for necessário.

O Código de Civil de 2002 dispõe sobre o uso em seu artigo 1.412, com a seguinte redação:

“Art. 1.412. O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família.” (BRASIL, 2002).

Assim, de pronto percebemos que a concessão do direito de uso abrange acesso aos frutos naturais da coisa, como por exemplo, os frutos das árvores ou o leite das vacas, presentes em um imóvel cedido a título de uso a terceiro.

2.1.2 Faculdade de gozar

Consubstancia-se na exploração econômica propriamente dita da coisa. Diferentemente da faculdade de uso, o jus fruendi ultrapassa o mero acesso aos frutos naturais, para englobar a percepção dos frutos industriais (resultantes da transformação do homem sobre a natureza) e dos frutos civis (rendas provindas da utilização da coisa por terceiro).

Além disso, a fruição abarca a possibilidade de aproveitar economicamente os produtos, conforme preceitua o Código Civil de 2002 em seu artigo 1.232:

“Art. 1.232. Os frutos e mais produtos da coisa pertencem, ainda quando separados, ao seu proprietário, salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem.” (BRASIL, 2002).

Os produtos se exaurem, impossibilitados de renovação, como acontece com as minas de ouro ou poços de petróleo, por exemplo. Essa é a principal distinção entre frutos e produtos. Porém, ao proprietário é assegurada a restituição do que for consumível, e no caso de riquezas naturais devem proprietário e usufrutuário prefixar a extensão do gozo, de acordo com o Código Civil de 2002, artigo 1.392 (grifo nosso):

Art. 1.392. Salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos.

§ 1o Se, entre os acessórios e os acrescidos, houver coisas consumíveis, terá o usufrutuário o dever de restituir, findo o usufruto, as que ainda houver e, das outras, o equivalente em gênero, qualidade e quantidade, ou, não sendo possível, o seu valor, estimado ao tempo da restituição.

§ 2o Se há no prédio em que recai o usufruto florestas ou os recursos minerais a que se refere o art. 1.230, devem o dono e o usufrutuário prefixar-lhe a extensão do gozo e a maneira de exploração.

2.1.3 Faculdade de dispor

Entre as faculdades que compõem o domínio, esta é a mais importante, pois “mais se revela dono quem dispõe da coisa do que aquele que a usa ou frui” (GONÇALVES, 2012, v. 5, p. 231).

Nos ensinamentos de Farias e Rosenvald (2010, p. 189) “Entende-se como dispor a faculdade que tem o proprietário de alterar a própria substância da coisa. É a mais ampla forma de concessão de destinação econômica à coisa.”.

Assim, o proprietário teria poderes para transferir a coisa, gravá-la ou mesmo aliená-la a qualquer título. Por isso, alguns autores denominam esse direito como jus abutendi, seguindo a linha clássica do direito romano.

Contudo, a doutrina moderna tem reconhecido que ao proprietário é vedado abusar da coisa, de modo a destruí-la gratuitamente ou não dar a mesma uma função social. A Constituição Federal de 1988 prescreve essas limitações impostas ao direito de dispor, vinculando a propriedade a uma função (social) e condicionando-a ao bem-estar da sociedade, conforme podemos observar nos artigos seguintes:

Art. 5º [...]

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

[...]

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

III - função social da propriedade; (BRASIL, 1988)

Justifica-se então, a adoção por parte da doutrina, da denominação jus disponendi em face do clássico jus abutendi para designar a faculdade de dispor. (Feitas tais considerações, prossigamos com as considerações acerca do direito de dispor).

A disposição inerente ao proprietário pode ser de natureza material ou jurídica.

A disposição material resulta de atos físicos praticados pelo proprietário, podendo ser atos comissivos (destruição do bem) ou mesmo omissivos (abandono), implicando sempre em perda da propriedade, de acordo com o Código Civil de 2002, artigo 1.275:

Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a propriedade:

[...]

III - por abandono;

IV - por perecimento da coisa;

[...] (BRASIL, 2002)

Tanto que, na propriedade de bens consumíveis a fruição da coisa confunde-se com a disposição, de tal modo que se faz ilegítima qualquer norma que restrinja o gozo, pois implicaria em afetação tão violenta que recairia sobre a própria substância da coisa. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 189).

Quanto à disposição jurídica podemos tê-la em caráter total ou parcial. A disposição jurídica total se perfaz por meio da alienação, que pode ser onerosa (venda) ou gratuita (doação), porém, em todo caso, o adquirente sucede o alienante proprietário em todas as faculdades do domínio e no reivindicativo.

A disposição jurídica parcial revela-se no momento da instituição de ônus reais sobre o bem. O proprietário que institui um gravame sobre a coisa mantém a titularidade, porém há a coexistência com um direito real sobre coisa alheia titularidade de um terceiro, que se reveste, mesmo que temporariamente, de alguma das faculdades do domínio. É o que ocorre nos casos de usufruto ou hipoteca, por exemplo.

2.1.4 Faculdade de reivindicar

Como visto, as três faculdades anteriores compõem o domínio, compreendem os elementos internos ou econômicos do direito de propriedade, pois é através de seu exercício que o proprietário pode lograr vantagens pecuniárias decorrentes de sua titularidade. É o conteúdo positivo da propriedade.

Já a rei vindicatio “representa a pretensão do titular do direito subjetivo de excluir terceiros de indevida ingerência sobre a coisa” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 190), sendo também denominada de elemento externo ou jurídico da propriedade.

Qualquer terceiro que viole o dever genérico e universal de abstenção lesa o direito subjetivo de propriedade, figurando a pretensão reivindicatória como a consequente tutela conferida ao titular lesado.

Temos aqui a faculdade de reivindicar configurada como extensão do direito de sequela ao titular do direito de propriedade, com fins de recuperar a posse injustamente obtida por terceiro. Uma ação que compete ao proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário.

Comprovamos, portanto, ser de suma importância a faculdade de reivindicar, pois representa a segurança jurídica ao titular do direito de propriedade de que irá poder fruir dos elementos econômicos do domínio. Corroboram com esse entendimento as lições de Pereira (2004, v. IV, p. 96) onde vemos que de nada valeria ao dominus, “reunir na sua titularidade o ius utendi, fruendi e abutendi, se não lhe fosse dado reavê-la de alguém que a possuísse injustamente, ou a detivesse sem título.”.

Essa proteção específica da propriedade é realizada por meio da ação reivindicatória.

2.2 Atributos da propriedade

A propriedade apresenta-se como um direito primário, visto que dela derivam os demais direitos reais (direitos reais menores ou sobre coisas alheias).

Comparativamente, se perfaz como um feixe, ou seja, constitui-se da junção de outros direitos (faculdades do domínio somadas à faculdade de reivindicar), sendo que estes somente apresentam maior significância quando ocorre o seu desmembramento do direito real maior, a propriedade.

Conforme preceitua o Código Civil de 2002, artigo 1.231, “A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”. Tal atribuição de plenitude e exclusividade garante ao direito de propriedade algumas características peculiares. Discorreremos acerca desses atributos para melhor entendimento.

2.2.1 Plenitude

Tem-se que o direito de propriedade é pleno ou absoluto quando todas as faculdades estão concentradas na pessoa proprietário, podendo este usar, gozar ou dispor do modo que melhor lhe convier.

Gomes (2008, pp. 109 e 110) alerta também que “Em outro sentido, diz-se, igualmente, que é absoluto, porque oponível a todos. Mas a oponibilidade erga omnes não é peculiar ao direito de propriedade.”. Segundo a jurisprudência a oponibilidade é cabível também ao possuidor:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DO ESBULHO PELA PARTE RÉ. PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO POR REALIZAÇÃO DE BENFEITORIAS. TERRENO DE PROPRIEDADE ALHEIA. FATO DE INTEIRO CONHECIMENTO DOS APELANTES. MÁ-FÉ. BENFEITORIAS NECESSÁRIAS NÃO DEMONSTRADAS. APELO IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. DECISÃO UNÂNIME.1.Dentre os atributos do direito de propriedade e de posse está a oponibilidade erga omnes.2.O esbulho acarreta a perda da posse do bem contra a vontade do possuidor/proprietário, o que dá ensejo a propositura de ação de reintegração de posse.

[...]

5.Apelo improvido. Sentença mantida. Decisão unânime.(TJPE, Apelação Cível, AC 39502/PE 9300014090, Rel. Fernando Cerqueira, j. 14.04.2009, grifo nosso)

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA.AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TÍTULO DE PROPRIEDADE. SENTENÇA DE USUCAPIÃO.NATUREZA JURÍDICA (DECLARATÓRIA). FORMA DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA.FINALIDADE DO REGISTRO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. PUBLICIDADE E DIREITO DE DISPOR DO USUCAPIENTE. RECURSO DESPROVIDO.

[...]

2.A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade; ou seja, não há transferência de domínio ou vinculação entre o proprietário anterior e o usucapiente.3. A sentença proferida no processo de usucapião (art. 941 do CPC) possui natureza meramente declaratória (e não constitutiva), pois apenas reconhece, com oponibilidade erga omnes, um direito já existente com a posse ad usucapionem, exalando, por isso mesmo, efeitos ex tunc. O efeito retroativo da sentença se dá desde a consumação da prescrição aquisitiva.

[...]

5. O registro da usucapião no cartório de imóveis serve não para constituir, mas para dar publicidade à aquisição originária (alertando terceiros), bem como para permitir o exercício do ius disponendi (direito de dispor), além de regularizar o próprio registro cartorial. 6. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ, Recurso Especial: REsp. 118360/SP 1997/0007988-0, Rel. Min. Vasco Della Giustina (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), j. 16.12.2010, grifo nosso).

E de fato também encontramos essa oponibilidade presente nos direitos da personalidade.

Em primeiro lugar, considerados intrinsecamente, dizem-se absolutos. Absolutos, quando traduzem uma relação oponível à generalidade dos indivíduos, isto é, dotada de eficácia universal sem a especificação de sua exigibilidade contra determinado sujeito passivo. À faculdade de fruição que o ordenamento legal assegura corresponde um dever geral negativo. Dever jurídico suportado por todos os membros da sociedade, expressos na abstenção de qualquer ato que importe em ofensa ao poder de ação do titular. Neste sentido se diz que o direito de propriedade é absoluto. Absolutos são também os direitos inerentes ao estado do indivíduo, a sua posição jurídica na sociedade, à qualidade de pai ou de filho, de casado ou de solteiro, cuja oponibilidade erga omnes é inerente à sua própria anatomia. O sujeito do direito absoluto é dotado de um poder que se não dirige contra pessoa determinada, mas à generalidade dos indivíduos. (PEREIRA, 1984, v. 1, p. 33).

2.2.2 Exclusividade

A exclusividade manifesta-se no poder de proibir que terceiros exerçam sobre a propriedade qualquer ingerência (jus prohibendi). Com isso, revela-se “O aspecto pessoal do direito de propriedade” (GOMES, 2008, p. 110, grifo do autor).

Não há como um bem pertencer, com cunho exclusivo e de modo simultâneo, a duas ou mais pessoas, em idêntico lapso temporal. “À evidência, duas pessoas não ocupam o mesmo espaço jurídico, deferido com pertinência a alguém, que é o titular de direito real.” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, pp. 192 e 193).

Observe-se que a exclusividade é um atributo que se relaciona com o domínio e, sendo este uno e indivisível, devemos entender não ser possível, na verdade, mais de um domínio sobre o mesmo bem.

Entenda-se, portanto, que no caso do condomínio tradicional, pelo estado de divisão apenas abstrata do bem, cada proprietário detém fração ideal do bem, porém ao exercitar o domínio o faz na sua integralidade. Sendo facultado a cada proprietário, de maneira isolada e dispensada a autorização dos demais, reivindicar de terceiro a coisa que este injustamente possua, conforme entendimento do artigo 1.314, do Código Civil de 2002:

Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la. (BRASIL, 2002).

De fato, há a partição do direito de propriedade, mas sem que isto afaste a unidade do domínio, de modo a permitir que todos possam usar, gozar, dispor e reivindicar integralmente, resguardada compatibilidade com o estado de indivisão da coisa.

Por este motivo, autores como Farias e Rosenvald (2010, p. 193) entendem que “razoável então não seria se cogitar do termo condomínio, mas de compropriedade, pois a situação de sujeição do bem a cada qual dos proprietários não é reduzida pelo fato do direito de propriedade ter sido fracionado.”.

Embora a propriedade seja quantitativamente diferente, o domínio resulta qualitativamente igual (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 193).

2.2.3 Perpetuidade

Washington de Barros Monteiro (2003, v. 3, pp. 85-86) resume que a propriedade se diz irrevogável ou perpétua “no sentido se que subsiste independentemente de exercício, enquanto não sobrevier causa legal extintiva.”.

A característica da propriedade de apresentar duração ilimitada, sendo transmitida por direito hereditário aos sucessores, faz com que a doutrina tradicional repute como perpétua também a pretensão reivindicatória, facultando ao proprietário usar do direito de sequela a qualquer tempo, conforme observamos nesse acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aqui transcrito:

O direito de propriedade é perpétuo, extinguindo-se somente pela vontade do dono, ou por disposição expressa de lei, nas hipóteses de perecimento da coisa, desapropriação ou usucapião. Neste último caso, a perda da propriedade se opera em decorrência da prescrição aquisitiva, mas não em função do prazo estabelecido no art. 177 do Código Civil. (STJ, Ac. 3ª T., REsp 144.330/AC, Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 18.10.99)

O acórdão, publicado na vigência do Código de 1916, esclarece que não se deve dizer que a usucapião limita a duração do direito de propriedade. O usucapião é modo aquisitivo de propriedade, afasta a titularidade anterior que apenas subsistia formalmente, resultando que o proprietário não perde o domínio por não-uso da coisa, mas sim pela posse reiterada do usucapiente.

A Constituição Federal de 1988 submete a propriedade a uma função social, expressamente designada em seu artigo 5º, inciso XXIII: “A propriedade atenderá a sua função social” (BRASIL, 1988).

Cominado com o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 04.07.1994), onde se lê: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”, permite que cheguemos à conclusão que não devemos ter em conta, portanto, a tradicional noção de intangibilidade do direito de propriedade antes da usucapião. Sempre que se verifica ato ilícito pelo abuso do direito de propriedade, a pretensão reivindicatória resta paralisada. De modo que a comprovação do não-uso somada à lesão à função social, implica na perda da possibilidade de defender a propriedade contra terceiros, muito embora não resulte em perda do direito de propriedade propriamente dito.

Ocorre ainda que, provando a flexibilização da perpetuidade do direito de propriedade perante a persecução da função social, temos o art. 1.276 do Código Civil:

Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.

§ 1º 0 imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.

§ 2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais. (BRASIL, 2002, grifo nosso).

Com excepcionalidade, a qualificação da perpetuidade da propriedade é esvaziada, não pela ausência de finalidade, mas tão logo em sua origem. São os casos de propriedade resolúvel ou revogável, previstas no artigo 1.359 do Código Civil:

Art. 1.359. Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. (BRASIL, 2002).

Nestes casos, o próprio título constitutivo estabelece a cláusula que expressa a duração do direito de propriedade, subordinando-a a evento futuro – implemento de condição resolutiva ou advento de termo.

Observe-se que a perpetuidade relaciona-se diretamente com o direito subjetivo de propriedade, diferentemente da plenitude e exclusividade que qualificam o domínio.

2.2.4 Elasticidade e consolidação

O direito de propriedade “Tem ainda como característica a elasticidade, pois pode ser distendido ou contraído, no seu exercício, conforme se lhe agreguem ou retirem faculdades destacáveis.” (GOMES, 2008, p. 110).

Como se percebe, a elasticidade expressa uma qualidade do domínio. As faculdades destacáveis referidas anteriormente representam as faculdades de usar, gozar ou dispor, que uma vez cedidas a terceiros fragiliza o pleno poder dominial do proprietário.

Essa fragmentação de parcelas do domínio permite que um terceiro receba algum dos poderes de senhorio sobre a propriedade, convertendo o titular do direito de propriedade no que a doutrina denomina de nu-proprietário, por este encontrar-se “despido” de parte dos poderes dominiais.

Via de regra, há a concentração dos atributos do domínio, ou seja, a propriedade é plena – ou alodial. “A alodialidade é uma qualidade do imóvel sobre o qual não incidem ônus reais.” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 196).

Resulta que, na eventualidade de destacamento de algum dos poderes do domínio para a instituição de direito real sobre coisa alheia, há uma contração do domínio. Esta também pode ocorrer na constituição de propriedade resolúvel ou advir da transmissão da propriedade gravada com cláusula de inalienabilidade.

A contração permite que a essência do direito de propriedade permaneça com seu titular, porém de forma residual. Como bem exemplifica o processo de falência:

Aquele que for constituído judicialmente como falido titularizará uma propriedade vazia, posto afastado do exercício de suas quatro faculdades. O proprietário falido não poderá usar, fruir, dispor ou reivindicar os bens arrecadados ao juízo universal, atribuições dominiais que agora pertencem ao administrador da massa [...] (art. 22, Lei nº 11.105/05). Contudo, o empresário ainda é o proprietário e, ao termo do processo, poderá ter os seus bens resgatados à plenitude. (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 196).

Podemos por fim depreender o princípio da consolidação, que como decorrência da elasticidade, preconiza que todas as compressões ou contrações do domínio serão transitórias e anormais.

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

“a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária ou imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder” (DUGUIT apud GONÇALVES, 2012, v. 5, pp. 244 e 245).

A função social encontra-se fundamentada na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXIII – “a propriedade atenderá a sua função social;” (BRASIL, 1988).

O Código Civil dispõe acerca da função social em seu art. 1.228, § 1º, da seguinte forma:

Art. 1.228 [...]

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2002).

3.1 Generalidades: função social como decorrência da evolução da propriedade.

Recordando o que fora estudado em seção anterior deste trabalho, poderíamos sintetizar a evolução da propriedade culminando com a adoção dos primados da função social valendo-se das palavras de Eros Roberto Grau (apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 197):

“a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função”.

A propriedade anteriormente atendia aos anseios da ordem econômica capitalista em seu estágio inicial - que extremava o caráter individualista e intensificava o incentivo a produtividade e apropriação dos bens, sem preocupar-se com a divisão social desses benefícios perante a coletividade.

Nas lições de Gonçalves (2012, pp. 22 e 244, grifo do autor) foi somente no século passado que o caráter social da propriedade foi acentuado, com contribuição significante das encíclicas Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, e Quadragésimo Ano, de Pio XI, onde sustentavam a necessidade de o Estado reconhecer a propriedade e defendê-la, porém em função do bem comum.

De origem controvertida, o princípio da função social teria sido postulado no início do século XX, por Léon Duguit, mas sua formulação é atribuída a Augusto Comte.

3.2 Análise dos termos da “função social”

 

Nos ordenamentos jurídicos, o termo função - procedente do latim functio, que significa cumprir algo ou desempenhar um dever ou atividade – é empregado para indicar a finalidade de um instituto jurídico, ou seja, o papel a ser cumprido por determinado modelo jurídico ou direito com características morfológicas peculiares.

O direito subjetivo compõe-se, como modelo jurídico, de estrutura e função. Enquanto a primeira responde à pergunta “como é?”, revelando a gênese do modelo, a segunda reponde ao questionamento “para que serve?”, revelando a orientação e a teleologia do instituto.

Quanto à qualificadora da função em questão (social), temos significado mais ambíguo. Em uma formulação negativa, teríamos por social aquilo equivalente a não-individualístico. Porém, da sua utilização prática, adquirimos o social como um “critério de avaliação de situações jurídicas ligadas ao desenvolvimento de determinadas atividades econômicas, para maior integração do indivíduo na coletividade.” (GOMES, 2008, p. 125).

Presumidamente a função social apresenta-se como um princípio inerente a todo direito subjetivo. Contudo, durante o período do liberalismo, de individualismo exacerbado, o finalismo do direito foi deturpado, de modo a elevarem-se condutas atinentes à concessão de ampla liberdade a qualquer cidadão em prol da satisfação de seus interesses próprios. O interesse privado representava comumente o sacrifício de interesses coletivos.

A evolução social demonstrou que não se admitiria mais que a satisfação de uma necessidade individual sobrepujasse as necessidades da coletividade. Soa mesmo redundante indagarmos acerca da função social do direito, que pela própria natureza sinaliza a busca pelo princípio da justiça e bem-estar social.

Hodiernamente, observamos a ampla inserção do princípio da função social nos diversos ordenamentos jurídicos, com vistas a promover o resgate do real valor finalístico que fora propositadamente alterado a fim de justificar uma ideologia outrora dominante. Assim, o ordenamento jurídico tenderá a apenas conceder causa a busca de interesse individual, sendo este compatível com os interesses coletivos interrelacionados.

Nas lições de Noberto Bobbio (apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, pp. 199 e 200), podemos verificar mutação evolutiva da função social por meio da passagem do direito repressivo ao direito promocional:

“Enquanto o direito repressivo procurava sancionar negativamente todo aquele que praticasse uma conduta contrária aos interesses coletivos, o Estado promocional pretende incentivar todas as condutas que sejam coletivamente úteis, mediante a imposição de sanções positivas, capazes de estimular uma atividade, uma obrigação de fazer.”

A função social encontra-se tão intrínseca a qualquer direito subjetivo e, portanto, presente em todo o sistema de direito privado, que se cogita de sua presença em outros modelos do Direito, tais como das obrigações, família, responsabilidade civil etc.

Exemplificativamente, quanto às obrigações temos no artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002, grifo nosso): “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” A atenuação do princípio da relatividade no direito das obrigações também revela a presença da função social. Sem embargo, os negócios jurídicos produzem efeitos não apenas inter-partes, como também geram consequências para terceiros e a sociedade como um todo, fazendo-se necessário a imposição dos deveres de cooperação e proteção das partes em prol terceiros e, de modo recíproco, induz a um dever geral de abstenção por parte da sociedade vedando que terceiros venham a interferir na execução de uma relação negocial que esteja em andamento.

3.3 Propriedade: direito subjetivo com função social

“A partir do momento em que o ordenamento jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão-somente para a satisfação do seu interesse, a função da propriedade tornou-se social.” (GOMES, 2008, p. 125).

A partir da referida citação supratranscrita podemos perceber que, inicialmente, a função social direcionou-se a contenção de atos de abuso do direito de propriedade, os chamados atos emulativos. Tais atos eram dispostos pela simples intenção de lesar interesses alheios.

Antes mesmo de se falar em função social, o que se buscou na realidade, foi uma forma de restringir o absolutismo do direito de propriedade. A adoção da teoria do abuso do direito teve início no século XIX, na França, talvez por terem sido os primeiros a experimentar as falhas do liberalismo, pois, por coincidência, foram os ideais liberais franceses que inseriram a postura absolutista da propriedade.

Cumpre-nos por ora, distinguir a função social, do abuso de direito e dos demais limites que o ordenamento jurídico impõe à propriedade.

3.3.1 Abuso de poder e atos emulativos

 

No Código Civil atual encontramos - com um considerável atraso de cem anos, visto em relação aos precedentes franceses - a adoção da teoria dos atos emulativos e a vedação ao abuso do direito de propriedade dispostos no artigo 1228, § 2º: “São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (BRASIL, 2002).

Como se haveria de supor, o dispositivo já nasce ultrapassado sob duas perspectivas. Primeiramente, subjuga o abuso do direito a um contexto subjetivo, à medida que requer a prova da culpa do proprietário para a aferição do ato emulativo, e isto se mostra incompatível com a teoria finalista presente no artigo 187 do Código Civil, que claramente configura o ato ilícito em sentido estritamente objetivo: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).

Em outra análise, segundo Farias e Rosenvald (2010, p. 202), podemos afirmar ser ultrapassado o referido dispositivo:

por não introduzir o princípio da função social, pois, a vedação aos atos emulativos consiste na imposição de limites negativos e externos ao exercício do direito subjetivo de propriedade; já a função social vai além, pois estabelece limites internos e positivos à atuação do proprietário.

Assim, a função social relaciona-se mais propriamente, na verdade, como “um elemento interno do domínio, um pressuposto de legitimidade. Muito antes do ato emulativo, a propriedade tem de se submeter a um controle social de utilização positiva na promoção dos valores sociais e constitucionais” (TEPEDINO apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 202).

A vidência do abuso decorre do abandono do tradicionalismo que afirmava que tudo que não fosse proibido seria permitido. Nessa fronteira entre proibição e permissão que se encontra o abuso. O ato abusivo passou a ser tão ilícito quanto o ato proibido, vide Código Civil de 2002: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”. (BRASIL, 2002).

Eis que o proprietário incorre em ato abusivo (ilícito objetivo) quando pratica uma atividade lícita em sua origem – por decorrência das faculdades do domínio, porém ilícita em sua finalidade, posto que ofensiva aos interesses coletivos e difusos que se interrelacionam ao exercício do direito de propriedade. O ato abusivo classifica-se como uma limitação jurídica do direito de propriedade que atua sobre o seu exercício.

3.3.2 Extensões do direito de propriedade

O critério da utilidade foi o adotado pelo Código Civil de 2002 para limitar a extensão da propriedade:

Art. 1.229. A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se natividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las. (BRASIL, 2002, grifo nosso).

Segundo Gonçalves (2012, p. 247), desfaz-se a formulação medieval que afirmava: qui dominus est soli dominus est usque ad coelos et usque ad ínferos – quem é dono do solo é também dono até o céu e até o inferno.

A delimitação da extensão vertical da propriedade para abranger espaço aéreo e subsolo se faz imprescindível a partir do momento que dele se utiliza o proprietário, seja para construir os alicerces de uma edificação no subsolo ou simplesmente lançar fogos de artifício ao espaço aéreo.

Quanto à natureza do poder que o proprietário detém, verifica-se que não há desdobramento em direitos distintos (direito ao solo, direito ao subsolo e direito ao espaço aéreo), pois o que ocorre é a projeção do direito de propriedade. Portanto, não há que se cogitar o domínio do espaço aéreo.

Segundo Gomes (2008, p. 134) “em verdade, o subsolo e o espaço aéreo são meras extensões da propriedade da superfície, isto é, simples consequências”.

Quanto à delimitação da extensão da propriedade, o critério da utilidade adotado por nosso ordenamento mostra-se insuficiente, pois onde objetivamente cessa o interesse utilitário do proprietário? Mesmo que aplicada a teoria do abuso para tal propósito teríamos impasses gerados pelo interesse legítimo do proprietário que contrariasse a lei. Temos um exemplo citado por Gomes (2008, pp. 134 e 135), onde um proprietário tem interesse legítimo em realizar o plantio de grandes árvores, entretanto pela proximidade com um aeroporto é proibido de fazê-lo. “Dir-se-á que, neste caso, o imóvel sofre servidão imposta pela lei”. Restando que o limite que deveria ser do animus nocendi do proprietário é, na verdade, proveniente de dispositivo legal, cabendo inclusive ao proprietário indenização por danos que venham a ser causados pelo tráfego aéreo.

Quanto ao subsolo o raciocínio é semelhante, o critério é da utilidade, porém não cabendo ao proprietário opor-se, por exemplo, ao tráfego de veículos em túneis construídos abaixo de sua superfície, porém cabendo-lhe de igual modo indenização por danos causados.

Ainda quanto ao subsolo aventa-se outra questão, que seriam as riquezas encontradas abaixo da superfície (jazidas, recursos minerais diversos etc.). Com o novo Código Civil de 2002 o artigo 1.230 passou a normatizar tais riquezas: “A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais” (BRASIL, 2002), restando claro e indubitável a vedação ao proprietário em impedir sua exploração. O referido artigo apenas conforma o Código Civil com texto constitucional que já previa a distinção da propriedade do solo e das riquezas e recursos naturais, conforme se observa no artigo 176, da Constituição Federal de 1988:

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

Quanto à extensão às partes integrantes tem-se que a propriedade estende-se ás partes essenciais, que seriam aquelas que não podem ser separadas da coisa sem destruição ou deterioração, como a plantação de uma fazenda por exemplo. Por conseguinte, não podem ser objeto de propriedade distinta.

3.3.3 Limitações ao direito de propriedade

Em relação às limitações do direito de propriedade, encontram-se estas impostas pelo ordenamento jurídico. Predominantemente são normas do Direito Administrativo e de Direito Civil, mas podem ser também de ordem jurídica geral, configurada na teoria do abuso anteriormente abordada e também serem de caráter voluntário.

As restrições decorrentes do Direito Administrativo possuem fundamentação no interesse social, coletivo ou público, atingindo o domínio em seu conjunto ou apenas algumas de suas faculdades. Por não estabelecerem qualquer vínculo recíproco restam caracterizadas pela unilateralidade, prevalecendo o interesse público, submetendo a este o interesse particular. Dentre as limitações mais energéticas encontramos a desapropriação e a requisição, que atingem o domínio como um todo, diferenciando uma forma da outra na manutenção do direito de propriedade nos casos de requisição. O confisco, no entanto, é vedado, excepcionando-se pela hipótese presente no seguinte dispositivo da Constituição Federal de 1988:

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. (grifo nosso)

No Direito Civil encontram-se as limitações decorrentes do interesse particular de outros proprietários, de modo a possibilitar a coexistência pacífica entre si, consequentemente atingem tão-somente o exercício do direito de propriedade, resguardando as faculdades do domínio. Por apresentarem a finalidade social de harmonizar interesses privados, estabelecem-se em uma relação de bilateralidade, vinculando reciprocamente os interesses ora limitados. Embora não seja consenso, alguns autores assim classificam as servidões. Mas indubitavelmente se encaixam nesse perfil as restrições decorrentes direito de vizinhança, presentes no artigo 1277 do Código Civil de 2002:

Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.

Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.

Há ainda por se apresentar, as limitações voluntárias, decorrentes da livre vontade do proprietário. Comumente essas limitações ocorrem da constituição dos direitos reais sobre coisas alheias, quando o dominus se priva da faculdade de uso e gozo em prol de terceiro. Porém, importa no momento analisarmos as limitações impostas à faculdade de dispor.

Tais limitações ocorrem por determinação do proprietário, através de ato unilateral ou mediante contrato, no momento deste transmitir a propriedade a outrem. Assim, pode recair sobre terceiro, por ocasião da recepção do bem, que cumpra determinada exigência do transmissor. A tradição do bem pode ser onerosa ou não.

Assim, um testamento pode gravar um bem com uma cláusula de inalienabilidade ou tornar a propriedade resolúvel, por exemplo. Da mesma forma, em uma doação pode ser estabelecida cláusula de inalienabilidade ou mesmo encargos a benefício do donatário.

No contrato de compra e venda, a depender do acordo de vontades entre as partes, podem constituir-se pactos que limitem o poder de dispor do adquirente. Como exemplo clássico, temos o pacto de retrovenda, que reserva ao alienante o “direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo o preço mais as despesas feitas pelo comprador. Em consequência, fica este impossibilitado de alienar o bem comprado enquanto perdure a faculdade de resgate” (GOMES, 2008, p. 152).

Dentre as limitações voluntárias mais comuns podemos citar as cláusulas de impenhorabilidade, de incomunicabilidade e de inalienabilidade, onde esta requer especial atenção por sua extensão, englobando as outras duas.

A cláusula de inalienabilidade exige duas condições para sua instituição. A primeira que seja constituída no título que lhe dê causa a transmissão do bem. A segunda exigência diz que a transmissão deverá se dar a título gratuito. Assim, veda-se a composição de tornar inalienável um bem sobre o qual o instituidor exerce domínio, visto que poderia dar causa à fraudes e abusos de direito, posto a inalienabilidade carrear, por vezes, a impenhorabilidade.

Outra característica deste instituto é sua temporariedade, que inibe a perpetuidade da limitação. A inalienabilidade, portanto, há de ser sempre temporária (sujeita a termo ou condição que devem ocorrer durante a vida do proprietário) ou vitalícia – cessando com a morte do proprietário. Podendo este, até mesmo, testamentar o bem, conforme se extrai da seguinte jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL. NULIDADE DE TESTAMENTO. INOCORRÊNCIA. CLÁUSULAS RESTRITIVAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE QUE SE EXTINGUEM COM O ÓBITO DO FAVORECIDO. INCIDÊNCIA DO ART. 1.723 DO CC/16. INAPLICABILIDADE DO ART. 1.717, III, DO CC/16.1.723 CC/16CC/161.717III CC/16CC/16 1) Consoante dispunha o art. 1.723 do CC/16, incidente na espécie, a cláusula de inalienabilidade não obstará a livre disposição dos bens por testamento. 2) As cláusulas restritivas vitalícias desaparecem com a morte do beneficiário. [...] (TJRS, Apelação Cível: AC70048535710/RS, Rel. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 23.08.2012).

De todo modo, a inalienabilidade não é absoluta, podendo advir certas circunstâncias a indicar a alienação do bem gravado, devendo, entretanto obter-se autorização judicial para tanto. Além disso, deve-se operar a transferência do ônus ao bem que obrigatoriamente deve ser adquirido para a substituição do bem alienado. Denomina-se tal procedimento de sub-rogação real.

CIVIL. DOAÇAO. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. PRETENSAO DE EXTINÇAO DAS RESTRIÇÕES PELOS DONATÁRIOS. ALEGAÇAO DE MAU ESTADO DO IMÓVEL. JUSTIFICATIVA NAO ADMITIDA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. ADMISSAO DE VENDA COM SUB-ROGAÇAO DA CLÁUSULA SOBRE OUTRO BEM A SER ADQUIRIDO. AUSÊNCIA DE INTERESSE A TANTO DEMONSTRADA PELOS DONATÁRIOS. EXTINÇAO DO PROCESSO. CC, ART. 1.676. I. Conquanto admissível temperar-se o disposto no art. 1.676 do Código Civil anterior, de modo a ser eventualmente possível, em circunstâncias excepcionais, atenuar as cláusulas de impenhorabilidade e inalienabilidade impostas pelo doador, para evitar prejuízo aos donatários, é necessário que as justificativas apresentadas convençam as instâncias ordinárias, o que, no caso, não ocorreu, porquanto se o imóvel é velho e necessita de reparos, impedindo a auferição de lucro, a solução aberta pelo Tribunal a quo, de autorização de venda vinculada à aquisição de outro, com sub-rogação da cláusula, se afigurou mais harmônica com a necessidade dos requerentes e a vontade do doador, mas aqueles por ela não se interessaram, resultando no indeferimento do pleito. [...] (STJ, REsp 327156/MG 2001/0061447-0, Relator: Min. Aldir Passarinho Junior, j. 07.10.2004, Data de Publicação: DJ 09/02/2005 p. 194, grifo nosso).

 

3.3.4 Função social como conformadora da propriedade

Como vimos, as limitações impostas até então, constituem-se de conteúdos negativos e limites externos ao direito de propriedade, são obrigações de não fazer que atendem a interesses opostos aos do proprietário.

Em sentido diverso, encontramos a função social, que não limita, mas antes conforma a propriedade, penetrando na própria estrutura e substância do direito subjetivo. Traduzindo, pois, não uma restrição ou limitação, mas um chamamento à ação, uma necessidade de atuar, um estímulo a obrigações de fazer que recaiam sobre o proprietário. De modo a vincular este a estabelecer medidas capazes de implementar a melhor utilização do bem, tanto para satisfação dos seus interesses econômicos, como também para a promoção do desenvolvimento social e econômico como um todo, em atenção a demandas da coletividade.

Segundo Farias e Rosenvald (2010, p. 206):

A utilização da expressão função social da propriedade, na verdade, não passa de uma opção ideológica para, em um sentido mais amplo, podermos compreender que toda e qualquer situação individual patrimonial se submete a um perfil solidário e redistributivo, no qual a prevalência axiológica da realização da pessoa humana submete as exigências utilitaristas de produtividade econômica a uma dose de conformação.

Em suma, a função social consistindo em um complexo de recursos (encargos, ônus, estímulos) que direcionam o proprietário a orientar a propriedade aos fins comuns, tende a evitar que o domínio se torne ocioso ou meramente especulativo, privando a sociedade do adequado proveito do bem particular. Por isso, tem-se denominado a propriedade de poder-dever ou direito função.

Até então um direito subjetivo meramente patrimonial, passa o direito de propriedade ao status de complexa situação jurídica subjetiva, na qual agora se inserem obrigações positivas perante a comunidade, surgindo uma série de contradireitos a favor dos não proprietários.

Não por acaso, encontramos a disposição imediatamente sequencial de princípios constitucionais relacionados ao direito de propriedade. O primeiro tratando da garantia individual da propriedade, que assiste ao proprietário a exigir o dever genérico de abstenção: “Art. 5º [...] XXII - é garantido o direito de propriedade;” (BRASIL, 1988, Constituição Federal). E o segundo, revestindo a coletividade da titularidade de direito subjetivo difuso, de exigir a concessão por parte do proprietário de uma função social do bem: “Art. 5º [...] XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;” (BRASIL, 1988, Constituição Federal).

Devido a essa situação jurídica complexa de direitos e deveres recíprocos entre sociedade e proprietário, este só se reveste da possibilidade de demandar a abstenção geral da coletividade se, a contraponto, constituir função social ao bem.

Eis que três princípios veem nortear essa reestruturação do direito de propriedade: o bem comum, a participação e a solidariedade.

Decorre o bem comum da vontade geral, onde a sociedade termina por estabelecer uma busca por aquilo que seria o melhor para todos. Um bem que é o almejado pela comunidade e por isso dispõe-se a construí-lo. A ele se subordinam todos os demais bens particulares.

A participação ocorre da contribuição de todos, para a construção da sociedade e do bem comum, a partir do que são e do que possuem, transformando o indivíduo em ser humano.

A solidariedade resulta da percepção de que, em sociedade e pela busca da construção participativa do bem comum, todos vivemos uns pelos outros. Sem essa compreensão valorativa perde o caráter de humana, a sociedade.

Converte-se, pois, a função social em princípio básico que vem a incidir no conteúdo do próprio direito de propriedade. Pode-se afirmar, portanto, que a função social torna-se um quinto elemento da propriedade, somando-se às faculdades já estudadas (usar, gozar, dispor e reivindicar). Estas últimas seriam os elementos estruturais estáticos, enquanto o elemento funcional apresenta-se como dinâmico e desempenha papel decisivo no controle dos demais, como ilustra a seguinte passagem:

Todo e qualquer ato de uso, gozo e disposição da coisa será submetido ao exame de finalidade, bem como eventual pretensão reivindicatória poderá ser paralisada, se o proprietário não conceder destinação relevante ao bem, apesar de ostentar a titularidade formal. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 207).

De fato, a propriedade desincumbida de uma função social resta paralisada, carecendo de fundamento constitucional de merecimento e tutela, inexistindo, pois, direito, posto que este apenas se perfaz quando do seu exercício. Ainda, consistindo a pretensão em uma decorrência de uma lesão a direito subjetivo; sendo a reivindicatória, especificamente, a que visa recobrar o conteúdo econômico de um bem que se encontra em posse injusta de terceiro; veda-se ao proprietário, portanto, a possibilidade de atuar quando este omitir finalidade social ao bem, posto que, o resta subutilizado ou mesmo abandonado.

Ilustra-se com a seguinte jurisprudência:

CIVIL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA - ARGUIÇÃO DE USUCAPIÃO - MATÉRIA DE DEFESA - CABIMENTO - ESCRITURA DE CESSÃO DE DIREITOS POSSESSÓRIOS E BENFEITORIAS - JUSTO TÍTULO - DOCUMENTO INAPTO - DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DO DOMÍNIO POR PARTE DO AUTOR - ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO REIVINDICATÓRIA - FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE - CONVERSÃO DO PEDIDO REIVINDICATÓRIO EM PERDAS E DANOS – CABIMENTO. 1. A Escritura de Cessão de Direitos Possessórios e Benfeitorias não representa justo título para fins de reconhecimento de usucapião ordinária. Assim, há de se ter por inexistente o aludido pressuposto legal, de modo a obrigar o suplicante a comprovar os requisitos ensejadores da usucapião extraordinária, inclusive, o respectivo transcurso do prazo vintenário da posse ad usucapionem. 2. Diante da comprovação inequívoca do domínio por parte do autor sobre o bem reclamado, e tendo em vista a ausência de demonstração por parte do réu de qualquer embasamento jurídico a respaldar a sua posse, torna-se irretorquível a concessão em favor do proprietário da devida restituição da coisa reivindicada. 3. Em que pese o cabimento da restituição do bem ao reivindicante, não se pode ignorar o fato de o réu já haver ali construído a sua própria moradia há anos. Nesse passo, com base na função social da propriedade, - "princípio inerente a todo direito subjetivo" (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Reais. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 199) -, é razoável converter-se a restituição do terreno ocupado, que significaria inexoravelmente na demolição daquela construção, em perdas e danos. (TJSC, Apelação Cível: AC390179/SC 2005.039017-9, Rel. Luiz Cézar Medeiros, j. 13.11.2009).

CONCLUSÃO

Justifica-se o esforço anterior em distinguir propriedade e domínio, uma vez que, no ordenamento inexiste a expressão função social do domínio, devido a este não se prestar a relações jurídicas do mesmo modo que o direito de propriedade. Os poderes dominiais são exclusivos do proprietário, e mesmo que caiba a coletividade a faculdade de exigir o cumprimento da finalidade social do bem, não há de se consentir com a possibilidade de não proprietários dividirem com os proprietários seus poderes de uso, gozo ou disposição.

Privar o proprietário dos seus poderes dominiais é tão ilegítimo e inconstitucional quanto o absolutismo da propriedade. Qualquer que seja a forma de intervenção na propriedade privada, não deve ser tratada como busca pela finalidade social, sendo formas excepcionais de restrição os institutos do Direito Administrativo, anteriormente estudados.

Por fim, não há de se confundir a função social da propriedade com qualquer indício de socialização ou coletivização do direito de propriedade. Esta seria nada mais que uma forma de aniquilar o Estado Democrático de Direito e instituir um Estado Autoritário que bane a propriedade e a autonomia.

O alvo é paralisar o egoísmo do proprietário. Não se busca coibir o seu individualismo, pelo contrário, o que se espera da função social nada mais é que o estímulo ao atuar particular, ao empreendedorismo, que possa propiciar retornos individuais (rendimentos) e sociais (ganhos coletivos).

“Enfim, o que se humaniza é o direito de propriedade, pois ele é fonte produtora de obrigações ao seu titular em favor da coletividade” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 212).

REFERÊNCIAS

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