Princípio Da Possibilidade De Refutação Como Corolário Da Ampla Defesa
Publicado em 27 de fevereiro de 2008 por Warley Belo
Princípio da Possibilidade de Refutação como Corolário da Ampla Defesa
Warley Belo
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais / UFMG
“Quem deu a ti, carrasco, esse poder sobre mim?”
(Goethe)
Desde o advento da Carta, nesta República, há garantias fundamentais expressas. Dentre essas, o contraditório, a ampla defesa e a igualdade de partes (ou par conditio) que formam o arcabouço do axioma nulla probatio sine defensione e serve para nortear legisladores e tribunais contra as investidas injustas e arbitrárias.
O contraditório é “a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os ´interessados´, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor” (Aroldo Plínio Gonçalves, Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 120).
O princípio da ampla defesa está expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Carta Magna de 1988. Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é a “oportunidade de o réu contraditar a acusação através da previsão legal de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa. (...) constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável". (Manual de Processo Penal, 5a ed., São Paulo, Saraiva,1998)
A ampla defesa deve ser o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal. Compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa.
A primeira apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, que deve ser plenamente exercida visando à máxima efetividade possível. A segunda, por sua vez, é renunciável, exercida pelo próprio acusado a partir da atuação pessoal junto ao magistrado por meio do interrogatório ou pela presença física aos principais atos processuais (Antônio Sacarance Fernandes, Processo Penal Constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 294. No mesmo sentido: Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier. Apontamentos iniciais acerca do Garantismo, Boletim do ITEC, ano I, n.04, Porto Alegre, p. 6.).
O fato da ampla defesa ser renunciável não indica que é dispensável. Tão somente garante que poderá, o acusado, se assim desejar, declinar sua presença no interrogatório e em outros atos processuais de instrução, bem como abster-se de postular pessoalmente aquilo que lhe é permitido por lei. Não induz, todavia, submissão ao arbítrio do julgador. Mas, é essencialmente ao réu preso, que está sob o pálio da justiça e não tem a escolha de ir à audiência se defender, mesmo querendo, que se deve dar essa guarita. Já se afirmou em julgamento: “... ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, por meio da presença do acusado aos atos processuais.” (RTJ 46/653)
A doutrina, na lavra do processualista português, Jorge de Figueiredo Dias, esclarece que se deve “dar ao argüido a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si, e ao mesmo tempo garantir-lhe uma relação de imediação com o juiz e as provas” (Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 432).José Frederico Marques, (Tratado de direito processual penal, Saraiva, 2º. Vol., p. 153), reforça extreme de dúvidas que a “defesa técnica não se torna a única a poder desenvolver-se no processo penal. A seu lado existe a autodefesa, a qual consiste na participação direta do réu em quase todos os atos do processo”. Segue nessa mesma linha de pensamento Rogério Lauria Tucci ensina: “à evidência que se deverá conceder ao ser humano enredado numa persecutio criminis todas as possibilidades de efetivação da ampla defesa, de sorte que ela se concretize em sua plenitude, com a participação ativa, e marcada pela contrariedade, em todos os atos do respectivo procedimento, desde a fase pré-processsual da investigação criminal, até o final do processo de conhecimento, ou de execução, seja absolutória ou condenatória a sentença proferida.” (Direitos e Garantias individuais no processo penal brasileiro, Saraiva, 1993, p. 205).
A autodefesa, portanto, apresenta-se como direito de audiência, direito de presença e direito de, pessoalmente, postular sua defesa, quando presente o ius postulandi.
Os conceitos de contraditório e ampla defesa são atuais, embora seu princípio fundamental, audiatur et altera pars, seja já bastante difundido. Como expõe Luigi Ferrajoli: “O pensamento iluminista, coerente com a opção acusatória, reivindicou a presença de um e de outro a todas as atividades probatórias. Voltaire protestou contra a possibilidade de que o confronto entre o imputado e as testemunhas fosse entregue à discricionariedade do juiz em vez de ser obrigatório. (...) E o mesmo fez Pagano, que desejou que as testemunhas de acusação ‘serão interrogadas ex integro na presença do réu’ e sublinhou ‘o quanto ajuda a conhecer a verdade tal contradição’” (Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, SP: RT, 2002, p. 491). Rudolf von Ihering pugnou a igualdade jurídica entre as partes, “a sombra e a luz” (A evolução do Direito. Salvador: Progresso, 1956).
A praxe forense, entretanto, vem induzindo à verdadeira inexistência material destas garantias, eis que a presença do réu preso, comumente, é tida como dispensável. Ex vi: “A falta de requisição do réu preso para acompanhar a audiência não induz nulidade se o seu advogado constituído comparece ao ato” (STJ – 6ª. T – HC 21.739). Tememos pela razão a Francesco Carnelutti quando, num arroubo de desânimo, afirmou que “o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo” (As Misérias do Processo Penal, SP: Conan, 1995, p. 51).
Atinge-se, assim, o princípio da possibilidade de refutação, a que trata Luigi Ferrajoli (Direito e Razão, op. cit., p. 124) e o que entende o STF em decisões mais garantistas: “O direito de estar presente à instrução criminal conferindo ao réu e seu defensor assenta princípio do contraditório penal. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, decorrente da presença do acusado aos atos da instrução, quando lhe é dado contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de parcialidade ou indigna de fé (art. 214 do CPP), bem assim auxiliar seu defensor na oportunidade das reperguntas.” (STF – RHC – Rel. Néri da Silveira – RT 601/443)
Audiência de instrução de réu preso ausente, quando à disposição do juízo, é um escândalo que pulula voraz a condenar a “justiça administrada na sombra”, como diria Romagnosi (Istituzioni di civile filosofia, ossia di giurisprudenza teorica, Opere, t. XIX, Piatti, Firenze, 1839, liv. IV, p. 265). Inocência e segredo jamais andaram juntos...
Para que se tenha a verdadeira existência do princípio do contraditório e da ampla defesa é mister que haja contato entre réu e seu defensor. Inclusive durante a audiência de instrução. O réu também tem o direito de contraditar com contra-hipóteses e contraprovas. Se for verdade que o advogado deve assistir o réu, informá-lo da situação que se encontra perante o juízo, não menos verdadeiro é que o réu também deve ter a oportunidade de orientar o seu advogado, chamar-lhe atenção para suspeições, inimizades, mentiras que as testemunhas, no ato de depor, fantasiam.
O art. 5o, inc. LXIII, da CF/88, assegura ao preso assistência ao advogado. É evidente, então, para que se tenha perfeito o contraditório, sem prejuízo para a defesa, deve estar também o advogado acompanhado do réu em audiência, mormente em se tratando de réu preso, à disposição do juízo.
A presença do réu preso na produção da prova é elemento assegurador da plenitude do exercício do direito de defesa e do contraditório que a Constituição Federal e a lei processual penal instrumentaliza. Como conclui Rosemiro Pereira Leal, “ausente o contraditório, (o processo) perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida imponderável da liberdade das partes.” (Teoria Geral do Processo, 2ª.ed., Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 191)
O réu preso, à disposição do juízo sentenciante, tem também o direito de assistir, comparecer e presenciar os atos processuais, principalmente sendo ato instrutório. O quadro processual é extremamente adverso aos direitos e interesses do acusado que se configura por inércia imputável exclusivamente ao Poder Público. A gravidade é acentuada pela ausência, involuntária, do próprio réu aos atos de instrução processual, decorrente de sua não-requisição pelo juízo competente. Deve-se entender comprometida a autodefesa, anulando-se o processo, conforme remansosa jurisprudência e doutrina.
Ao versar o tema, Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I/475, 17ª. ed., 2005, SP: Atlas) expende magistério irrepreensível, verbis: “É causa de nulidade a ausência de requisição do réu preso na mesma unidade da Federação, quando é de conhecimento do juízo.” Também Antonio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 81): “A presença do acusado no momento da produção da prova testemunhal é essencial, sendo exigência decorrente do princípio constitucional da ampla defesa. Estando na audiência, pode ele auxiliar o advogado nas reperguntas a serem dirigidas à testemunha ouvida. Por isso, em caso de acusado preso, este deve ser requisitado, ainda que a prova testemunhal seja colhida em precatória.”
Trata-se de direito subjetivo público do acusado. Tem a própria garantia da jurisdição a impedir injustiças patentes, a olhos postos. Sendo evidente que se infringe uma norma constitucional, mais claro ainda que desse vício patente só possa advir duas conseqüências: a nulidade absoluta ou a inexistência do mesmo, sendo mesmo desnecessária a demonstração de prejuízo. É também a conclusão da mais alta corte desta República: “O direito de estar presente à instrução criminal garante ao acusado a ampla defesa. A violação desse direito importa em nulidade absoluta, e não simplesmente relativa do processo.” (RTJ 79/110)
A doutrina mais abalizada é uníssona na lavra de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal. 3ª. ed., SP: Malheiros, 1993, p. 133): “A validade da audiência depende, assim, de providências prévias... O acusado preso deve ser requisitado (art. 360, CPP), sob pena de invalidade da prova, colhida sem sua presença...” Também José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, 2 ed., RJ: Forense, 1965, vol. II, p. 64): “A autodefesa é defesa particular do acusado, através da participação em vários atos processuais e da presença àqueles que se realizam coram populi para instrução e debates da causa.” Esse também o pensamento de Antônio Magalhães Gomes Filho: “O imputado deve participar de todos os atos do processo, principalmente os da instrução, a fase processual mais decisiva para a aferição da efetividade do contraditório; é aqui, com efeito, que a participação ativa dos interessados mais se justifica; são as partes que tiverem contato com os fatos e estão mais aptas a trazê-los ao processo; por isso mesmo, também são elas que possuem os melhores elementos para contestar e explorar as provas trazidas pelo adversário, possibilitando ao julgador uma visão mais completa – e ao mesmo tempo crítica – da realidade” (Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p. 154).
Em tal processo, nunca se poderá guardar certeza da prova porque valorada às escuras. Certamente a presença do réu traz outro deslinde à causa, pois outro teor tem a prova oral e diversa a sua valorização.
Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8, inc. 2, f, decreto nº 678 de 06.11.1992 - DOU 09.11.1992) assegura o direito de inquirir a testemunha. Ex vi: “Art. 8º (...) 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.”
Parece-nos inquestionável o direito do réu em estar presente ao ato procedimental. O juízo penal deve ser o principal contribuidor da lógica do próprio réu e não seu algoz inquisidor. Observe-se o pensamento da insigne Ada Pellegrini Grinouver: “O réu, como qualquer cidadão, é portador de uma série de direitos, de relevância prioritária e autônoma. Tais direitos devem ser tutelados pela própria autoridade jurisdicional que, no exercício de sua atividade, encontra, assim, uma série de limites.” (Liberdades públicas e processo penal, RT, 1982, p. 15). É, em fim, inconcebível que o juiz se possa pretender, cegamente, como substituto dos interesses pessoais do réu. Parafraseando Bentham (Traité des preuves judiciaires, cit. por Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 493): “a verdadeira honradez de um juiz consiste em não exigir jamais uma tal confiança, em refuta-la quando se lha quiser atribuir, em colocar-se acima de qualquer suspeitas, impedindo que elas possam nascer e oferecendo ao público o espetáculo da sua consciência e de sua virtude.”
Warley Belo
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais / UFMG
“Quem deu a ti, carrasco, esse poder sobre mim?”
(Goethe)
Desde o advento da Carta, nesta República, há garantias fundamentais expressas. Dentre essas, o contraditório, a ampla defesa e a igualdade de partes (ou par conditio) que formam o arcabouço do axioma nulla probatio sine defensione e serve para nortear legisladores e tribunais contra as investidas injustas e arbitrárias.
O contraditório é “a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os ´interessados´, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor” (Aroldo Plínio Gonçalves, Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 120).
O princípio da ampla defesa está expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Carta Magna de 1988. Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é a “oportunidade de o réu contraditar a acusação através da previsão legal de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa. (...) constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável". (Manual de Processo Penal, 5a ed., São Paulo, Saraiva,1998)
A ampla defesa deve ser o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal. Compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa.
A primeira apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, que deve ser plenamente exercida visando à máxima efetividade possível. A segunda, por sua vez, é renunciável, exercida pelo próprio acusado a partir da atuação pessoal junto ao magistrado por meio do interrogatório ou pela presença física aos principais atos processuais (Antônio Sacarance Fernandes, Processo Penal Constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 294. No mesmo sentido: Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier. Apontamentos iniciais acerca do Garantismo, Boletim do ITEC, ano I, n.04, Porto Alegre, p. 6.).
O fato da ampla defesa ser renunciável não indica que é dispensável. Tão somente garante que poderá, o acusado, se assim desejar, declinar sua presença no interrogatório e em outros atos processuais de instrução, bem como abster-se de postular pessoalmente aquilo que lhe é permitido por lei. Não induz, todavia, submissão ao arbítrio do julgador. Mas, é essencialmente ao réu preso, que está sob o pálio da justiça e não tem a escolha de ir à audiência se defender, mesmo querendo, que se deve dar essa guarita. Já se afirmou em julgamento: “... ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, por meio da presença do acusado aos atos processuais.” (RTJ 46/653)
A doutrina, na lavra do processualista português, Jorge de Figueiredo Dias, esclarece que se deve “dar ao argüido a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si, e ao mesmo tempo garantir-lhe uma relação de imediação com o juiz e as provas” (Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 432).José Frederico Marques, (Tratado de direito processual penal, Saraiva, 2º. Vol., p. 153), reforça extreme de dúvidas que a “defesa técnica não se torna a única a poder desenvolver-se no processo penal. A seu lado existe a autodefesa, a qual consiste na participação direta do réu em quase todos os atos do processo”. Segue nessa mesma linha de pensamento Rogério Lauria Tucci ensina: “à evidência que se deverá conceder ao ser humano enredado numa persecutio criminis todas as possibilidades de efetivação da ampla defesa, de sorte que ela se concretize em sua plenitude, com a participação ativa, e marcada pela contrariedade, em todos os atos do respectivo procedimento, desde a fase pré-processsual da investigação criminal, até o final do processo de conhecimento, ou de execução, seja absolutória ou condenatória a sentença proferida.” (Direitos e Garantias individuais no processo penal brasileiro, Saraiva, 1993, p. 205).
A autodefesa, portanto, apresenta-se como direito de audiência, direito de presença e direito de, pessoalmente, postular sua defesa, quando presente o ius postulandi.
Os conceitos de contraditório e ampla defesa são atuais, embora seu princípio fundamental, audiatur et altera pars, seja já bastante difundido. Como expõe Luigi Ferrajoli: “O pensamento iluminista, coerente com a opção acusatória, reivindicou a presença de um e de outro a todas as atividades probatórias. Voltaire protestou contra a possibilidade de que o confronto entre o imputado e as testemunhas fosse entregue à discricionariedade do juiz em vez de ser obrigatório. (...) E o mesmo fez Pagano, que desejou que as testemunhas de acusação ‘serão interrogadas ex integro na presença do réu’ e sublinhou ‘o quanto ajuda a conhecer a verdade tal contradição’” (Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, SP: RT, 2002, p. 491). Rudolf von Ihering pugnou a igualdade jurídica entre as partes, “a sombra e a luz” (A evolução do Direito. Salvador: Progresso, 1956).
A praxe forense, entretanto, vem induzindo à verdadeira inexistência material destas garantias, eis que a presença do réu preso, comumente, é tida como dispensável. Ex vi: “A falta de requisição do réu preso para acompanhar a audiência não induz nulidade se o seu advogado constituído comparece ao ato” (STJ – 6ª. T – HC 21.739). Tememos pela razão a Francesco Carnelutti quando, num arroubo de desânimo, afirmou que “o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo” (As Misérias do Processo Penal, SP: Conan, 1995, p. 51).
Atinge-se, assim, o princípio da possibilidade de refutação, a que trata Luigi Ferrajoli (Direito e Razão, op. cit., p. 124) e o que entende o STF em decisões mais garantistas: “O direito de estar presente à instrução criminal conferindo ao réu e seu defensor assenta princípio do contraditório penal. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, decorrente da presença do acusado aos atos da instrução, quando lhe é dado contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de parcialidade ou indigna de fé (art. 214 do CPP), bem assim auxiliar seu defensor na oportunidade das reperguntas.” (STF – RHC – Rel. Néri da Silveira – RT 601/443)
Audiência de instrução de réu preso ausente, quando à disposição do juízo, é um escândalo que pulula voraz a condenar a “justiça administrada na sombra”, como diria Romagnosi (Istituzioni di civile filosofia, ossia di giurisprudenza teorica, Opere, t. XIX, Piatti, Firenze, 1839, liv. IV, p. 265). Inocência e segredo jamais andaram juntos...
Para que se tenha a verdadeira existência do princípio do contraditório e da ampla defesa é mister que haja contato entre réu e seu defensor. Inclusive durante a audiência de instrução. O réu também tem o direito de contraditar com contra-hipóteses e contraprovas. Se for verdade que o advogado deve assistir o réu, informá-lo da situação que se encontra perante o juízo, não menos verdadeiro é que o réu também deve ter a oportunidade de orientar o seu advogado, chamar-lhe atenção para suspeições, inimizades, mentiras que as testemunhas, no ato de depor, fantasiam.
O art. 5o, inc. LXIII, da CF/88, assegura ao preso assistência ao advogado. É evidente, então, para que se tenha perfeito o contraditório, sem prejuízo para a defesa, deve estar também o advogado acompanhado do réu em audiência, mormente em se tratando de réu preso, à disposição do juízo.
A presença do réu preso na produção da prova é elemento assegurador da plenitude do exercício do direito de defesa e do contraditório que a Constituição Federal e a lei processual penal instrumentaliza. Como conclui Rosemiro Pereira Leal, “ausente o contraditório, (o processo) perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida imponderável da liberdade das partes.” (Teoria Geral do Processo, 2ª.ed., Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 191)
O réu preso, à disposição do juízo sentenciante, tem também o direito de assistir, comparecer e presenciar os atos processuais, principalmente sendo ato instrutório. O quadro processual é extremamente adverso aos direitos e interesses do acusado que se configura por inércia imputável exclusivamente ao Poder Público. A gravidade é acentuada pela ausência, involuntária, do próprio réu aos atos de instrução processual, decorrente de sua não-requisição pelo juízo competente. Deve-se entender comprometida a autodefesa, anulando-se o processo, conforme remansosa jurisprudência e doutrina.
Ao versar o tema, Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I/475, 17ª. ed., 2005, SP: Atlas) expende magistério irrepreensível, verbis: “É causa de nulidade a ausência de requisição do réu preso na mesma unidade da Federação, quando é de conhecimento do juízo.” Também Antonio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 81): “A presença do acusado no momento da produção da prova testemunhal é essencial, sendo exigência decorrente do princípio constitucional da ampla defesa. Estando na audiência, pode ele auxiliar o advogado nas reperguntas a serem dirigidas à testemunha ouvida. Por isso, em caso de acusado preso, este deve ser requisitado, ainda que a prova testemunhal seja colhida em precatória.”
Trata-se de direito subjetivo público do acusado. Tem a própria garantia da jurisdição a impedir injustiças patentes, a olhos postos. Sendo evidente que se infringe uma norma constitucional, mais claro ainda que desse vício patente só possa advir duas conseqüências: a nulidade absoluta ou a inexistência do mesmo, sendo mesmo desnecessária a demonstração de prejuízo. É também a conclusão da mais alta corte desta República: “O direito de estar presente à instrução criminal garante ao acusado a ampla defesa. A violação desse direito importa em nulidade absoluta, e não simplesmente relativa do processo.” (RTJ 79/110)
A doutrina mais abalizada é uníssona na lavra de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal. 3ª. ed., SP: Malheiros, 1993, p. 133): “A validade da audiência depende, assim, de providências prévias... O acusado preso deve ser requisitado (art. 360, CPP), sob pena de invalidade da prova, colhida sem sua presença...” Também José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, 2 ed., RJ: Forense, 1965, vol. II, p. 64): “A autodefesa é defesa particular do acusado, através da participação em vários atos processuais e da presença àqueles que se realizam coram populi para instrução e debates da causa.” Esse também o pensamento de Antônio Magalhães Gomes Filho: “O imputado deve participar de todos os atos do processo, principalmente os da instrução, a fase processual mais decisiva para a aferição da efetividade do contraditório; é aqui, com efeito, que a participação ativa dos interessados mais se justifica; são as partes que tiverem contato com os fatos e estão mais aptas a trazê-los ao processo; por isso mesmo, também são elas que possuem os melhores elementos para contestar e explorar as provas trazidas pelo adversário, possibilitando ao julgador uma visão mais completa – e ao mesmo tempo crítica – da realidade” (Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p. 154).
Em tal processo, nunca se poderá guardar certeza da prova porque valorada às escuras. Certamente a presença do réu traz outro deslinde à causa, pois outro teor tem a prova oral e diversa a sua valorização.
Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8, inc. 2, f, decreto nº 678 de 06.11.1992 - DOU 09.11.1992) assegura o direito de inquirir a testemunha. Ex vi: “Art. 8º (...) 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.”
Parece-nos inquestionável o direito do réu em estar presente ao ato procedimental. O juízo penal deve ser o principal contribuidor da lógica do próprio réu e não seu algoz inquisidor. Observe-se o pensamento da insigne Ada Pellegrini Grinouver: “O réu, como qualquer cidadão, é portador de uma série de direitos, de relevância prioritária e autônoma. Tais direitos devem ser tutelados pela própria autoridade jurisdicional que, no exercício de sua atividade, encontra, assim, uma série de limites.” (Liberdades públicas e processo penal, RT, 1982, p. 15). É, em fim, inconcebível que o juiz se possa pretender, cegamente, como substituto dos interesses pessoais do réu. Parafraseando Bentham (Traité des preuves judiciaires, cit. por Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 493): “a verdadeira honradez de um juiz consiste em não exigir jamais uma tal confiança, em refuta-la quando se lha quiser atribuir, em colocar-se acima de qualquer suspeitas, impedindo que elas possam nascer e oferecendo ao público o espetáculo da sua consciência e de sua virtude.”