PRELÚDIO

Ab initio, busca-se neste trabalho colocar em linhas gerais as perspectivas, características e os principais aspectos da parte geral da Lei das Contravenções Penais ? Decreto-lei 3.688 de 3 de outubro de 1941; fazendo-se ao final, uma análise da sua dispensabilidade em nosso ordenamento jurídico.
Contravenções penais são transgressões consideradas de menor potencial ofensivo que muitas pessoas acabam cometendo. Sendo seu potencial lesivo ínfimo, a sociedade chega a tolerar tais condutas, no entanto, são passiveis de punição.
Cumpre-nos neste momento fazer a distinção legal entre crime e contravenção penal para que não pairem dúvidas. Consta na Lei de introdução do Código Penal e à Lei das Contravenções Penais em seu artigo 1º a deferência dada:

Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. (grifo nosso)

Da dicção do artigo acima mencionado entendemos que quando a lei prevê pena de reclusão ou detenção às transgressões penais serão chamadas de crimes. De igual modo, quando a lei atribui pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, estes serão as contravenções penais. Nelson Hungria define as contravenções penais como "crime-anões", por ser menos grave que o crime comum, possui legislação própria regulando as condutas, com tipificação e características próprias (HUNGRIA, 1978).
A distinção legal acima apresentada tem como objetivo a aplicação dos benefícios penais, e quanto ao procedimento correto a ser adotado. Em sua natureza não há distinção, pois ambos constituem um fato típico, antijurídico e culpável.
Com a edição da Lei nº 9.099/95 que trata dos crimes de menor potencial ofensivo, aplica-se às contravenções penais; possibilitando a transação penal (artigo 60), optando por um procedimento sumaríssimo para aferir a culpa (artigo 77), inclusive, não sendo lavrado pela autoridade policial (delegado) o auto de prisão em flagrante, comprometendo o autor do fato a comparecer à audiência preliminar em Juízo, após devidamente intimado (parágrafo único do artigo 69).

ASPECTOS ESSENCIAIS E CARACTERÍSTICAS DA LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS

Dispõe o artigo 2º da LCP que a lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada em território brasileiro, esta é a regra geral, inclusive contemplada no caput do artigo 5º do Código Penal, da territorialidade.
Perpassando por todos os comentários da LCP feita por Nucci, este defende, na maioria das vezes a inaplicabilidade dos dispositivos, por ferir diversos princípios penais e até mesmo constitucionais. Deste modo é o artigo 3º que trata da existência da ação ou omissão voluntária para caracterização da contravenção penal, levando em conta o dolo e a culpa.
No artigo 4º informa que a tentativa não é punível quando se trata de contravenção penal, isso se dá pelo fato de ter no bojo da LCP, condutas tipificadas como infrações leves, com tratamento mais brando; não havendo sentido em punir a tentativa.
As penas principais são prisão simples e multa (artigo 5º). Prisão simples é a pena privativa de liberdade que deve ser cumprida sem o rigor penitenciário (artigo 6º), em estabelecimento especial ou separado dos presídios; sendo que o limite de duração não poderá ser superior a 5 (cinco) anos. No entanto, acaso seja aplicada a pena de prisão simples esta não será cumprida em sua literalidade, uma vez que inexiste no sistema penal brasileiro local adequado para acolhimento dos contraventores; sendo que na maioria das vezes ocorre a conversão em pena de multa.
A multa é a pena pecuniária e sua fixação tem as mesmas regras do Código Penal, variando entre 10 dias-multa até 360 dias-multa.
A reincidência é tratada no artigo 7º da LCP e traz interessante dicção sobre a extraterritorialidade, haja vista que somente é considerado reincidente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, aquele que cometeu contravenção penal no Brasil; não considerando reincidente, aquele que praticou contravenção penal em território estrangeiro. Se porventura tenha cometido crime no estrangeiro, passado em julgado e, venha a ser condenado no Brasil a reincidência recairá sobre o agente.
O erro de direito está previsto no artigo 8º da LCP onde aduz que no caso de ignorância ou errada compreensão da lei, quando escusáveis, a pena pode deixar de ser aplicada. Tal regra, hodiernamente, encontra-se ultrapassada. O dispositivo supra foi inserido numa época em que o erro de proibição (artigo 21 do CP) não era tido como excludente de culpabilidade. Entendemos que o agente poderá utilizar de subterfúgios, alegando o total desconhecimento da lei para provocar um perdão judicial por parte do órgão judiciário. Ademais, após a publicação de uma lei no Diário Oficial, nenhum cidadão poderá descumpri-la sob a alegação de não conhecê-la.
Por redação da Lei nº 9.268 de 1996, onde alterou diversos dispositivos do Código Penal, inclusive o artigo 51 que tratava sobre a conversão da pena de multa em prisão, sendo que após a alteração a multa é considerada dívida de valor, aplicando as normas relativa à dívida ativa da Fazenda Pública; não podendo de forma alguma a multa ser transmutada em prisão, como antes previa o artigo 9º da LCP.
A suspensão condicional da pena de prisão simples, bem como a possibilidade de conceder o livramento condicional está previsto no artigo 11 da LCP. No entanto, entendemos que em caso de concessão de sursis e livramento condicional não deve ser aplicado o disposto no artigo 78 do Código Penal às contravenções penais; como bem lecionado por Guilherme de Souza Nucci por ter a LCP dado tratamento especial ao período de um a três anos, enquanto, no Código Penal prevê o lapso temporal de dois a quatro anos como período de prova (NUCCI, 2009, p. 162).
Ainda conforme Guilherme de Souza Nucci, boa parte da doutrina afirma categoricamente que o artigo 12 da LCP foi revogado pela Lei 7.209 de 1984 por ter abolido as penas acessórias do Código Penal; todavia, com base no princípio da especialidade das leis, estas vigoram na Lei de Contravenções Penais, segundo aduz o mencionado dispositivo:

Art. 12. As penas acessórias são a publicação da sentença e as seguintes interdições de direitos:
I ? a incapacidade temporária para profissão ou atividade, cujo exercício dependa de habilitação especial, licença ou autorização do poder público;
II ? a suspensão dos direitos políticos.
Parágrafo único. Incorrem:
a) na interdição sob nº I, por um mês a dois anos, o condenado por motivo de contravenção cometida com abuso de profissão ou atividade ou com infração de dever a ela inerente;
b) na interdição sob nº II, o condenado a pena privativa de liberdade, enquanto dure a execução da pena ou a aplicação da medida de segurança detentiva.

As penas acessórias são sanções extrapenais que por força de lei acrescentam à condenação penal. Assim, a incapacidade temporária para profissão ou atividade deve ter conexão com a contravenção penal cometida e a atividade profissional do agente. A pena acessória indicada no artigo 12, inciso II da LCP está em consonância com o artigo 15, inciso III da CRFB, perdurando seus efeitos durante o cumprimento de pena por parte do condenado.
A medida de segurança, tipo de sanção penal, também é aplicada aos inimputáveis em caso de cometimento de contravenção; seu intuito é curativo, seguindo as normas gerais do Código Penal. Quanto à última expressão do artigo 13 da LCP concernente "à exceção do exílio local" esta é inaplicável por inexistir legislação sobre o assunto.
A presunção de periculosidade indicada no artigo 14 da LCP não mais se faz necessário no ordenamento jurídico penal brasileiro por não ter aplicação prática e ser ato discriminatório contra o indivíduo indo contra o princípio da dignidade da pessoa humana.

Art. 14. Presumem-se perigosos, além dos indivíduos a que se referem os ns. I e II do art. 78 do Código Penal:
I ? o condenado por motivo de contravenção cometido, em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, quando habitual a embriaguez;
II ? o condenado por vadiagem ou mendicância.

Neste sentido, vejamos entendimento de Patrícia Graziela Gonçalves em brilhante monografia acerca da presunção de periculosidade, in verbis:

No pensamento jurídico penal de meados do século XX havia uma percepção de que determinados segmentos sociais nos centros urbanos eram pessoas que mereciam receio por parte do poder judiciário e também por parte do restante da sociedade. Devido as suas "condutas", "condições de vida", ou mesmo às "práticas sociais e culturais", não respeitavam as normas e estariam mais propensos a cometer crimes. (GONÇALVES, Patrícia Graziela. Presunção de periculosidade no pensamento jurídico-penal brasileiro de meados do século XX. Disponível em: http://www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/VOLUME_4/num_3/artigo%20oficial%20patricia.pdf. Acesso em 14.10.2010.)

Portanto, não merece qualquer forma discriminatória capaz de considerar o ambiente social ou mesmo a cor do agente, como principal responsável pela motivação de pessoas criminosas; como antes ocorria com a presunção de periculosidade, teoria surgida com o positivismo criminológico.
No que se atine o artigo 15 da LCP diz respeito ao sistema duplo binário que não vigora mais no Brasil; não sendo permitida a imposição cumulativa da pena e da medida de segurança.
Trata o artigo 16 da LCP da internação em manicômio judiciário ou em casa de custódia e tratamento, vigorando tal dispositivo no ordenamento jurídico brasileiro em consonância com o Código Penal em seus artigos 96 a 99, tendo o prazo mínimo na LCP de 06 (seis) meses, ao ponto que o prazo máximo é indeterminado.
Exegese interessante do parágrafo único do artigo 16 da LCP que comunga com o propósito da lex em comento, pois deixou para o juiz optar em determinar a internação ou a submissão do agente à liberdade vigiada, que também está prevista na Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984), seja com a internação ou tratamento ambulatorial. Salienta-se que conforme determina o artigo 178 da LEP, na cessão de periculosidade, deverá o agente cumprir as condições do livramento condicional, quais sejam, as condições facultativas e obrigatórias (MARCÃO, 2006, p. 191 e 259).
Entendemos ainda, que a aplicação da medida de segurança deve estar em consonância com a Lei nº 10.216/2001, também conhecida como Lei Antimanicomial ou Lei da Reforma Psiquiátrica, devendo o juiz dar preferência ao tratamento ambulatorial; somente determinando a internação quando os recursos extra-hospitalares se tornarem insuficientes (artigo 4º, caput) e a medida ser estritamente necessária; para após o tratamento o agente ser reinserido no meio social.
Ora, se a medida de segurança não tem caráter punitivo seu aspecto terapêutico deve preponderar. A efígie do sofrimento e da exclusão dos sórdidos celeiros de loucos não pode ter mais espaço numa época de proteção aos direitos fundamentais consagrados em nossa Carta Magna, nem tampouco comportar quaisquer cláusula que os restrinja.
Por fim, todos os casos indicados na Lei de Contravenções Penais são de ação pública incondicionada, mesmo que haja discordância da vítima; com exceção da contravenção penal de vias de fato (artigo 21) que exige a representação a teor do artigo 88 da Lei nº 9.099/95 que a condicionou (STF - HC 80617/MG, julgado em 20/03/2001); ficando a cargo da autoridade policial e do parquet, obrigatoriamente, de ingressar com a ação penal.

O PRINCÍPIO PENAL DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

Interessa ao direito penal os bens relevantes e indispensáveis à vida em sociedade, sendo que sua ingerência na coletividade deve se dar o mínimo possível.
Rogério Greco ao citar Muñoz Conde informa que "o poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do direito" (GRECO, 2009, p. 49).
De igual modo, Guilherme de Souza Nucci sai em defesa da descriminalização das infrações de menor potencial ofensivo das contravenções penais, por serem seus tipos penais totalmente "ultrapassados, vetustos e antidemocráticos" (NUCCI, 2009).
Aquiescemos literalmente desta inteligência, onde se torna imperiosa a ab-rogação da Lei de Contravenções Penais, retirando-a, incontinenti, do nosso ordenamento jurídico, haja vista que as normas penais devem resguardar somente os bens mais importantes ao convívio social.
Conforme assegura Claus Roxin, o direito penal é de natureza subsidiária e "somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada" (ROXIN, 1997).
Destarte, o princípio da intervenção mínima orienta e limita o poder punitivo do Estado, devendo o Direito Penal apenas se atentar para tutela de bens importantes na vida do indivíduo, somente entrando em ação quando, evidenciado, que os demais ramos do direito não forem capazes de cumprir seu papel protetor.

CONCLUSÃO

Dado o exposto, as condutas tipificadas na Lei de Contravenções Penais foram numa época absolutamente distinta vivenciada hodiernamente; com a evolução do direito, muitas foram revogadas e outras se tornaram obsoletas (como a mendicância), mas muitos ilícitos ainda vigoram. Ainda assim, comungamos com o entendimento de diversos doutrinadores e saímos em defesa da retirada da legislação em análise do nosso ordenamento jurídico, que, inclusive, se encontra em andamento Projeto de Lei nº 3629/08 de autoria do deputado Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ) que sugere a revogação da LCP, bem como criminalizando outras condutas, que obteve parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa; e, no mérito, pela aprovação.

REFERÊNCIAS

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Supremo Tribunal Federal - http://www.stf.jus.br.