Autoras:
Kálita Rita Gonçalves
Raíssa Guimarães Gonzalez

1 INTRODUÇÃO

Durante muito tempo o pensamento criminológico tradicional vigorou no sistema penal e se legitimou perante a sociedade que passou a conceber as funções declaradas do sistema penal, assim as funções da pena como sendo suficientes para combater a criminalidade. Na verdade esse paradigma de que a criminologia tradicional positivista se utiliza, o paradigma etiológico, esconde uma visão extremamente punitiva do sistema penal, onde as funções declaradas da pena não ocorrem na prática, assim como a função declarada do sistema penal de proteger os bens mais importantes da sociedade e combater a criminalidade. Na prática verifica-se a ocorrência de sua função não declarada que é a de manutenção do status quo social, ou seja, a visão que se tem que a prisão é o local das camadas mais pobres da sociedade, aquela parte da população marginalizada pelo sistema capitalista neoliberal. Em um âmbito totalmente oposto, temos o paradigma da reação social que tem como base a criminologia critica e apesar de só ocorrer em tese, não tendo se propagado para a prática do sistema penal brasileiro mostra o quanto é falacioso o paradigma etiológico explicitando suas principais falhas, como também aquilo que não é transparente em seu belo discurso.


2 QUAIS FATORES LEVARAM A MUDANÇA DE PARADIGMA EM CRIMINOLOGIA?
A mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social se deu após um longo estudo, no qual se constatou que as funções declaradas do primeiro não se realizavam efetivamente e que era necessário um novo paradigma que refletisse na prática o que realmente ocorria no sistema penal. O paradigma etiológico tem como base a criminologia positivista, "a criminologia passa a ser definida como uma ciência causal-explicativa que tem por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural do individuo e com auxilio de métodos experimentais e estatísticas criminais deve prever o remédio para combatê-la" (ANDRADE, 2003, p.35).
De acordo com o paradigma etiológico a criminalidade é uma característica ontológica do individuo e ainda é uma característica de uma minoria transviada da sociedade. Esta tese do criminoso nato foi pela primeira vez proposta pelo médico italiano Cesare Lombroso, onde segundo ele a criminalidade é uma característica biológica dos indivíduos e que poderia ser encontrada de acordo com a anatomia da pessoa. Assim quem possuísse cabelos crespos e espessos; frente fugidia; orelhas grandes; agudeza visual; entre outras características físicas, eram considerados "o tipo antropológico delinqüente, uma espécie à parte do gênero humano predestinada, por seu tipo, a cometer crimes". (ANDRADE, 2003, p.36). Ainda de acordo com esse paradigma, a função da pena seria a de prevenção geral e de ressocialização, o que na prática realmente não ocorre, assim como o seu discurso legitimador em face do sistema penal, no qual este seria o local para onde uma minoria da população deveria ser mandada. Como ressalta Vera Andrade:

... A pena se justifica como meio de defesa social e seus fins socialmente úteis: a prevenção especial positiva (recuperação do criminoso mediante a execução penal) assentada na ideologia do tratamento que impõe, por sua vez, o principio da individualização da pena como meio hábil para a elaboração de juizes de prognose no ato de sentenciar.( ANDRADE,2003, p.37)

No âmbito oposto ao paradigma etiológico temos o paradigma da reação social, o "Labelling Approach" que tem suas bases na criminologia critica e tem como tese central a teoria do etiquetamento idealizada por Howard Becker que a partir da obra Outsiders se tornou o fundador deste paradigma criminológico. Segundo esta teoria do etiquetamento a criminalidade não é uma característica ontológica do individuo, mas sim uma etiqueta negativa atribuída a certas pessoas, que geralmente são os grupos marginalizados pela sociedade capitalista. No dizer de Becker :

Devemos reconhecer que não podemos saber se um certo ato vai ser catalogado como desviante até que seja dada a resposta dos demais. O desvio não é uma qualidade presente na conduta da mesma, senão que surge da interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles que reagem perante o mesmo. (BECKER apud ANDRADE, 2003, p.42).


2.1 a reação da sociedade em relação à mudança de paradigma
Apesar da mudança de paradigma em criminologia ter provocado uma verdadeira revolução no meio acadêmico, isso só ocorre em tese, pois essa mudança não foi levada para a prática, assim o paradigma tradicional ainda "permanece no senso comum e se configura como ciência do controle sociopenal e assim mantenedora do status quo social" (ANDRADE, 2003, p.33). Desta forma a população acaba acreditando que a lógica do sistema penal realmente funciona, assim como a sua função declarada de proteger os bens mais importantes da sociedade e de combater a criminalidade como ressalta Vera Andrade:

...Dessa forma a mudança de paradigma na ciência não tem ultrapassado o espaço acadêmico para alçar o espaço público da rua (em sentido lato) e provocar a necessária transformação cultural no senso comum sobre a criminalidade e o sistema penal; necessária, evidentemente, não do ponto de vista de manutenção, mas de superação do atual modelo de controle punitivo em que o sistema penal se insere.(ANDRADE,2003,p.34)


Como essa mudança de paradigma não é do conhecimento da maioria da população, as pessoas realmente acreditam que o atual sistema penal altamente punitivo consegue resolver os problemas da criminalidade e acabam dando respaldo para o paradigma etiológico. Sendo assim a sociedade acaba sendo excluída desse processo de mudança de paradigma não tendo realmente uma reação efetiva frente a essa mudança e conseqüentemente aceita o modelo vigente imposto pela criminologia positiva.

3 POR QUÊ ESSA MUDANÇA DE PARADIGMA NÃO OCORRE NA PRÁTICA?
O Paradigma da Reação Social estabelece uma nova compreensão do sistema penal, uma nova postura por parte de toda a sociedade e, fundamentalmente, daqueles que intercedem diretamente no funcionamento do sistema penal. Esse novo paradigma propõe transformar a criminologia de ciência das causas para ciência das condições (em que condições uma pessoa se torna um desviante?), enfatizando que não é possível examinar a sociedade e a natureza humana como dados imutáveis, defendendo que a compreensão desses só podem ser analisadas dentro do enquadramento da totalidade no corpo social. A sociedade é resultado da interação do comportamento de seus membros. Como salienta Vera Andrade: "(...) a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer objetivamente, mas o produto de uma ?construção social? obtida mediante um processo de definição e de tipificação por parte dos indivíduos e grupos diversos" (1997, p. 204).
BARATTA (20002, p. 12) observa ainda que a criminalidade inserida na estrutura teórica do Paradigma da Reação Social, não seria apenas uma atitude violadora da norma, mas sim uma realidade social definida por juízos atributivos. A distância social de classes introduz no Paradigma citado acima um importante aspecto. Trata-se do processo de seletivização que possui o sistema penal, já que este se dirige na maioria das vezes apenas contra certas pessoas. ANDRADE (1997) adverte que a clientela penal é formada expressivamente por pobres, mas este fato não se deve a uma maior inclinação ara delinqüir, mas sim por terem maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como criminosos. Essa seletividade no sistema penal, no qual os pobres fazem parte, desmistifica todo o princípio da igualdade. Para BARATTA (2002, p. 12) a seletivização advém pela seleção de bens jurídicos penalmente protegidos e também pela seleção de pessoas estigmatizadas entre todas aquelas que possuem condutas desviantes. Empiricamente esta análise é amparada quando se certifica que apenas 10% de condutas desviantes provocam a reação social, sendo "etiquetadas", fenômeno entendido como "cifra negra" (defasagem entre a criminalidade real e a criminalidade oficialmente registrada). O que não pode deixar de ser citado também são os crimes de "colarinho branco", que contribuem para a imunidade, já que são condutas desviantes cometidas por pessoas de alto padrão social. A partir de então, é possível apresentar com ZAFARONNI (2001) que a seletividade do sistema penal e a utilização da pena como meio reprodutor da violência e legitimador do poder evidencia que as razões éticas não passam de racionalizações.
Com toda a exposição acima é possível a identificação três métodos de explicação para o Paradigma da Reação Social, o primeiro analisa o impacto da atribuição do termo de criminoso na identidade do desviante. O segundo analisa o sistema de atribuição do status criminal (processo de seleção), e o terceiro, por fim, analisa o método de definição da conduta desviada. O paradigma aqui citado expõe como o sistema penal atua escolhendo os candidatos a criminalização, como lembra novamente ZAFFARONI (2001), o perfeito candidato é selecionado pelo seu estereótipo, e assim o sistema penal faz iniciar o processo de criminalização, em que os selecionado são submetidos á uma decisão judicial, podendo obter o título de criminoso através do "etiquetamento". É importante ressaltar que para a obtenção do "etiquetamento" não basta violar uma norma, é preciso também que haja uma reação social, como recorda BARATTA (2002), esta reação desenvolve-se a partir do momento em que o Estado atribui para si a função punitiva com a promessa de proporcionar a segurança jurídica. E quando a sociedade vê-se ameaçada por indivíduos perigosos ao convívio social e destinados ao "etiquetamento", reage lembrando ao Estado seu dever de punir e sua promessa de garantir a segurança social. Com isso surgi um severo sistema punitivo, com o objetivo de capturar os indivíduos de conduta desviada para etiquetá-los, retirando-os do corpo social. E como evidencia Margarida Almeida :

Os operadores do direito são destinados a operacionalizar esta máquina e gerenciar o processo. Vê-se que estes profissionais são especialmente preparados e condicionados pelo positivismo jurídico para não questionarem da justiça ou injustiça; da humanização ou desumanização do sistema. Abstendo-se de qualquer consideração moral ou filosófica, eles simplesmente movem este aparelho de horror adotando sempre uma postura de permanente submissão, dominados pelos efeitos ideológicos da dogmática jurídica e legitimados pelo clamor social de violência. O mais submisso servo do sistema penal é o Juiz. Para ele foi reservado o papel de etiquetar os "estranhos", e lhes infligir overdose de dor pela condenação e execução da pena. (Almeida, 2001, p. 7).

Com base em todo o exposto, ficou demonstrado que o Paradigma da Reação Social oferece significado revolucionário com um novo entendimento do sistema penal, que exibi a fragilidade do Paradigma Etiológico e a falácia de sua representação no sistema penal. Focault acentua o sentido da transformação do sistema penal, evidenciando que ela:

(...) significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade, atividade, gestos, aparentemente sem importância; significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa. O que se vai definindo não é tanto um respeito novo pela humanidade dos condenados ? os suplícios ainda são freqüentes, mesmo para os crimes leves ? quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância penal mais atenta do corpo social (FOUCAULT, 2004, p. 66).

Observa-se que o Paradigma da Reação Social sugere uma nova percepção do sistema penal, abrindo um amplo espaço para questionamentos e desconstruções.

3.1 funções do sistema penal
O discurso legitimador do sistema penal privilegia duas funções principais que são a segurança social e a ressocialização de criminosos. Interpreta-se a segurança social como um estado de relativa paz em que a violência diminui e todos dos direito fundamentais são devidamente respeitados. Mas vale lembrar que há dados que comprovam a ineficácia do sistema penal em produzir a segurança social, como exemplo a existência de verdadeiros Estados localizados nas favelas de grandes cidades, a desconfiança no trabalho da polícia, armas mais sofisticadas encontradas nas mãos de criminosos, espancamento e tortura de presos, e o total desrespeito aos Direitos Humanos. Pois bem, quando à ressocialização, entende-se ser o processo de reinserção de criminosos (ex-criminosos neste caso) no convívio social. Mas é difícil falar em ressocialização quando tomamos conhecimento da superlotação existente nos presídios, do tráfico de armas e substâncias ilícitas dentro das instituições, as inúmeras rebeliões com suas freqüentes reincidências.

Pois não se trata de "explicar" causalmente a criminalidade, mas de instrumentalizar e justificar, legitimando-a, a seleção da criminalidade e a estigmatização dos criminosos operada pelo sistema penal. E não se trata, igualmente, de "combatê-la", porque a função do sistema é, precisamente, a de construí-la ou geri-la seletivamente. (ANDRADE, 1995, p.8)


Conclui-se que o Sistema Penal é ineficaz no procedimento de suas funções declaradas (citadas acima) pelo discurso que tenta legitimá-lo. Existe, portanto, um grande e profunda diferença entre o que o Sistema Penal representa e o que ele diz que representa.


4 CONCLUSÃO
Tendo em vista todos os pontos acima discutidos, verifica-se que as modificações sociais causam, eventualmente, uma forma de crise intelectual que podem motivar rupturas revolucionárias nomeadas "mudança de paradigma". O Paradigma da Reação Social é uma autêntica vertente do pensamento holístico que fomenta um entendimento revolucionário do sistema penal, no qual propõe transformar a criminologia de ciência das causas da criminalidade para a ciência das condições de criminalização. Vale ressaltar que o sistema penal não é um fenômeno isolado que está submetido somente às construções normativas do legislador, antes disto ele é uma porção viva do tecido social. O paradigma aqui citado acentua ainda que não é possível ver a natureza humana com um dado posto e imutável, pois esta só pode ser entendida dentro de um contexto de totalidade. É necessário ressaltar ainda que o Paradigma da Reação Social analisa a criminalidade não como um "comportamento violador", mas sim uma realidade social. Criminoso é uma etiqueta separada para indivíduos selecionados pelo sistema penal.



THE EFFECTS CAUSED NO CRIMINAL SYSTEM FOR CHANGE OF PARADIGMA

ABSTRACT

Initially made an approach about what led to the paradigm shift for the etiological of social reaction in criminology, then immediately sets out what was the reaction of society in relation to this change of paradigm, then indicates the reason why the change of paradigm not occurs in practice, because in that the main factor is in the dominant ideology, in which punitive idea that we have always existed. Finally present demand is this change really brought some benefit to our criminal system.

Words ? Key: Change of Paradigm ? Penal System ? Criminology














REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Margarida Maria Barreto. Paradigma da reação social: uma nova compreensão do sistema penal. Disponível em:
<http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/Anexos/artigos/revista%201/word%20e%20pdf/PARADIGMA%20DA%20REACAO%20SOCIAL.pdf >. Acesso em: 20 outubro 2007.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1997.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência
e no senso comum. BuscaLegis, Porto Alegre, n. 3, p. 8 -13, junho. 1995.
Disponível em: < http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/Seq30Andrade-ParadigmaEPRSMPPCCSC.pdf >. Acesso em: 19 outubro 2007


ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003.


BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

FOCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 2 ed. São Paulo: Vozes, 2001

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.