O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) – Lei 10.792/2003

Histórico e sistemática atual

 

 

Autor: Jonas Freire de Lima Neto

 

 

RESUMO

 

Este trabalho tem por objetivo apresentar um breve histórico do instituto do Regime Disciplinar Diferenciado no ordenamento jurídico pátrio, bem como conceituá-lo e tecer críticas acerca da aplicação do mesmo em sua sistemática atual.

 


I. Histórico

         
             O Estado Democrático de Direito, através do poder punitivo que lhe é incumbido, estabelece, àqueles que descumprem as normais penais postas, uma sanção privativa de liberdade ou restritiva de direitos. São medidas que visam inibir condutas tidas como torpes pela sociedade, que tornam instáveis as relações sociais e que, se permitidas pelo Estado, transformariam o convívio humano em um verdadeiro caos. Portanto, àqueles que não obedecem a esse dever de abstenção de condutas, resta, na maioria dos casos, a privação de sua liberdade em estabelecimentos prisionais. Esta sistemática se mostra presente desde as mais primórdias sociedades humanas, em que aqueles que descumpriam os regramentos sociais ali estabelecidos eram punidos de forma bastante severa, com a privação de sua liberdade em condições bastante degradantes ou, até mesmo, com a pena de morte.

Com o passar dos séculos, o sistema punitivo dos Estados foi sendo aperfeiçoado de forma a tornar a prisão menos tortuosa para a população carcerária. Passou-se a se entender que o estabelecimento prisional, e o período em que o presidiário ali estaria, deveriam ser encarados como fatores que fossem contribuir para uma ressocialização do detento. Ou seja, a prisão deveria ser encarada não como uma vingança pela conduta errônea do indivíduo, mas sim como um estabelecimento regenerador e ressocializador do preso.

 

Ocorre que, principalmente em países como o Brasil, que não dispõe de vastos recursos, ou mesmo de uma política social bem definida, a prisão não se apresenta como capaz de regenerar o indivíduo. As condições dos estabelecimentos prisionais não proporcionam aos presos a oportunidade real de ressocialização, sejam pelas precárias estruturas físicas dos presídios, pela falta de oportunidade de estudo ou de trabalho ou pelo tratamento desumano a que são submetidos. Assim, as prisões, em vez de fomentar a reinserção do detento no convívio social, acabam por incentivar a reincidência do preso no crime.

Esta problemática foi o principal motivo para criação do Regime Disciplinar Diferenciado – RDD- pela Lei 10.792/2003. A permanência no estabelecimento criminal, pelas condições que ali impostas, acaba não inibindo a atuação criminosa dos detentos, mesmo dentro dos presídios. Dessa forma, toda sorte de delitos é cometida por ações iniciadas no seio da própria prisão, através facções criminosas que ali se formam e que se digladiam entre si. O ápice dessa problemática ocorreu entre os anos 90 e 2000, no Brasil. Sobretudo nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, diversas rebeliões prisionais eclodiam sistematicamente, chamando a atenção da sociedade pela crueldade dos rebelados, que depredavam de forma bastante violenta os presídios e que, em alguns casos, chegavam a matar outros detentos. Assim, pela insegurança e o clamor social pela ordem nos presídios, foi instituído o Regime Disciplinar Diferenciado na Lei de Execuções Penais - LEP. Este instituto visa segregar e tirar dos convívios dos demais detentos aqueles presos que se mostrarem mais perigosos. Isolam-se, assim, os indivíduos que possam ameaçar a integridade e a ordem dos presídios, através das rebeliões e mesmo da prática de mais crimes. Isso porque estes presos, de exacerbada periculosidade, acabam por subjugar os demais detentos, obrigando-os, por vezes, a contribuir com os seus interesses criminosos. Assim, segundo a lógica do RDD, excluindo-se os detentos mais perigosos do convívio dos demais, aniquilar-se-ia mais um fator de recriminalização dos outros presos, além de garantir, à sociedade, que a instabilidade provocada pelas rebeliões não mais se apresentaria.

Destarte, em 1º de dezembro de 2003, foi promulgada a Lei 10.792/2003, que alterou a Lei de Execuções Penais e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado.

 

 

II. Conceito

 

O Regime Disciplinar Diferenciado tornou mais severa a privação de liberdades de alguns presos que se enquadraram em seu grau de periculosidade. Apesar disso, não pode ser considerada como uma nova forma de cumprimento de pena, uma vez que o próprio Código Penal estabelece, taxativamente, os regimes em que este se dará, quais sejam o regime aberto, semiaberto e fechado. Assim, o RDD é, tão somente, uma sanção disciplinar que é imposta àqueles indivíduos que tenham praticado fato previsto como crime doloso que ocasione a subversão da ordem e disciplinas internas, conforme está disposto no art. 54 da LEP. Dessa forma, a maior parte da doutrina entende que o RDD é apenas uma espécie de punição ao preso que conturbar a ordem interna e se mostrar perigoso ao convívio dos outros detentos, devendo ser isolado e ter seu contato com o mundo externo mais restringido. Não há que se falar, portanto, em um novo regime de cumprimento de pena pelo detento, mas sim em uma sanção disciplinar a ele imposta.

A Lei 10.792/2003, que introduziu, na LEP, o Regime Disciplinar Diferenciado, exigiu, para sua configuração, uma série de requisitos para que ao preso, em regime fechado, fosse aplicada a maior cerceação de liberdade. O então novel diploma legal alterou a redação do art. 52 da Lei de Execuções Penais, explicitando os requisitos para a imposição do RDD. Eis o dispositivo:

 

"Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando."

 

 

Apreendem-se, na leitura da LEP, algumas características deste instituto. Será cabível contra o preso, provisório ou condenado, que praticar crime doloso causador da subversão da ordem ou disciplina, ou que apresentar alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade, bem como aquele que seja suspeito de envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilhas ou bando. Ou seja, fica mais explicito o espírito da lei em evitar a disputa entre facções dentro dos presídios, bem como as rebeliões, que, na maioria das vezes, vitimam inocentes.

O art. 52 da LEP traz mais características do RDD, como a sua duração máxima de 360 dias, sem prejuízo da repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de 1/6 da pena aplicada; o recolhimento do preso em cela individual, mas nunca escura, conforme o art. 45 da LEP; a visita semanal de duas pessoas, sem contar as crianças com duração máxima de duas horas, frisando que não há, no RDD, a possibilidade de visita íntima, e a saída da cela para banho de sol diário por duas horas, ressaltando-se que, mesmo neste período, será proibido o contato do preso com os demais detentos.

Por fim, interessante observar o art. 60 da LEP, em que há a previsão do isolamento preventivo a ser decretado pela autoridade administrativa, que deve ser submetido, posteriormente, à apreciação do juiz competente pela execução penal. Eis o dispositivo legal:

 

"Art. 60. A autoridade administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo de até dez dias. A inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado, no interesse da disciplina e da averiguação do fato, dependerá de despacho do juiz competente.

Parágrafo único. O tempo de isolamento ou inclusão preventiva no regime disciplinar diferenciado será computado no período de cumprimento da sanção disciplinar."

 

Observa-se, portanto, que o Regime Disciplinar Diferenciado é um instituto bastante rígido e, para muitos doutrinadores, com características bastante inconstitucionais, na medida em que se mostra desumano para com os presos que são a ele impostos.

 

III. Críticas ao Instituto

 
          O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) consiste em um tipo de regime de exceção que foi criado no sistema penitenciário brasileiro com a edição da Lei 10.792 de 1º de dezembro de 2003. Tal legislação foi elaborada em consequência de grandes rebeliões que ocorreram dentro dos presídios e unidades de segurança nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Dessa forma, a mencionada lei foi nítido resultado das pressões sociais que imperavam naquele momento,  isto é, levou-se muito mais em conta a opinião pública do que os direitos constitucionalmente atribuídos aos indivíduos presos. Logo, revelou-se apenas uma resposta à sociedade, que passava um momento de desconfiança em relação ao sistema penitenciário.

Tal regime gerou o surgimento de várias críticas doutrinárias, uma vez que apresentou medidas que manifestamente são contrárias não só às disposições da Lei de Execução Penal originária - ou seja, antes de ser modificada pela Lei 10.792 – como também às garantias constitucionais conferidas aos indivíduos em geral.

Nesse contexto, o panorama que se revelou no momento da criação do RDD foi de que seria necessário recrudescer a pena, com o intuito de aumentar o sofrimento do preso, colocando-os em situações desumanas, para que, com isso, teoricamente, obtivesse a ordem e a paz dentro dos estabelecimentos carcerários.

 

Com a edição da referida lei que originou o RDD, a finalidade da execução da pena tornou-se contraditória, levando em consideração os objetivos previamente estabelecidos na LEP, a qual buscava a ressocialização do preso, prevendo meios para que, concomitantemente ao cumprimento da pena, fosse dada ao apenado oportunidade de buscar a sua inserção no meio social.

Assim, ao contrário de conceder meios para se recuperar o preso, foi determinado o estabelecimento de medidas que maximizaram o sofrimento imposto ao apenado, tais como o isolamento celular individual por até 360 dias, podendo ser repetida até 1/6 da pena se houver falta grave da mesma espécie; apenas duas horas para o banho de sol; restrição de visitas semanais, bem como de entrevistas com seus advogados.

Como podemos ver, são sanções disciplinares que apenas implicam enormes desgastes físicos e psicológicos aos presos, com o escopo de se eliminar o contato com o mundo extra-cárcere e coibir a corrupção interna, sem representar, contudo, quaisquer providências que visem à recuperação destes indivíduos para retornarem à vida social.

Em relação a esse tema, é o comentário contido no seguinte excerto da obra “Teoria da Pena e Execução Penal: Uma Introdução Crítica” dos autores André Giamberardino e Massimo Pavarini, a saber:

 

A inclusão no RDD significa uma contundente mudança qualitativa na pena aplicada: muito além da privação da liberdade, eleva-se o quantum de sofrimento imposto ao sujeito, sob a égide de justificativas de cunho utilitário mas, paradoxalmente, sem que fique demonstrada sua necessidade. Afinal, não é necessária uma intensificação tão significativa da produção de sofrimento humano para consecução dos fins propostos, vinculados à segurança e à ordem internas e atingíveis mediante a utilização de recursos tecnológicos e o combate interno à corrupção. Em outras palavras, não é preciso fazer o indivíduo “sofrer mais” para o impedir de entrar em contato com o ambiente extra-cárcere ou aumentar a segurança interna.” 

 

 

Por outro lado, como dito anteriormente, a instituição do Regime Disciplinar Diferenciado viola diretamente princípios e garantias constitucionais atribuídas aos indivíduos em geral.

Pois bem, inicialmente a inconstitucionalidade do RDD pode ser aferida em relação a garantia de proibição do estabelecimento de penas cruéis, a qual está exposta no art. 5º, inciso XLVII da Constituição Federal. Torna-se evidente que as medidas estabelecidas por tal regime representam penas cruéis aos presos, uma vez que os colocam em situações desumanas, privando-lhes, quase que em sua plenitude, a liberdade, se considerarmos o isolamento celular individual, que pode se apresentar por um período de até um ano, bem como o banho de sol de apenas duas horas diárias, ou seja, o indivíduo fica enclausurado 22 horas por dia, fato que se revela de visível crueldade também.

Outrossim, o RDD malfere a garantia de obrigação de respeito à integridade física e moral, pois tais sanções disciplinares expõe o preso a situações que propiciam prejuízos não só físicos, mas principalmente morais, tendo em vista que não oferecem meios para se ocuparem, fazendo com que a clausura force o surgimento de problemas psicológicos desses indivíduos.

Ademais, há violação de um princípio e principalmente fundamento da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana, visto que, além de serem postos em situações deploráveis, os presos são desrespeitados em sua dignidade como indivíduo, sendo vítimas de uma construção legislativa que utiliza o obsoleto “direito do inimigo”, o qual visa somente ao sofrimento e ao suplício do preso,  olvidando, por completo, seus direitos como pessoa.

Além disso, analisando as hipóteses que ensejam a inclusão do preso no RDD, constata-se que há imprecisão na sua redação, fato que reflete o malferimento do princípio da legalidade (art. 5º, inciso II da Constituição Federal), bem como atribui ampla discricionariedade aos agentes públicos responsáveis pela aplicação do regime.

Outra crítica importante a ser feita é em relação ao fato de, para que sejam aplicadas as restrições decorrentes desse regime de exceção, é tomado em consideração o perfil do autor e não o fato por ele realizado. Assim, objetiva-se dificultar a vida carcerária de uma classe de indivíduos que se apresentam, teoricamente, com uma feição mais perigosa. Com efeito, a aplicação do regime diferenciado de execução da pena revela-se como sendo um “Direito Penal de inimigo”, tendo em vista que desconsidera certa classe de indivíduos como pessoas de direitos iguais às demais, a partir de uma caracterização feita por agentes de instâncias de controle.

Dessa forma, a aplicação do RDD consiste em um tratamento desumano de determinado tipo de autor de delito, o qual é segregado, distinguindo o que são cidadãos e o que são “inimigos”.

Nesse sentido, é o seguinte comentário de lavra de Paulo César Busato, em seu texto Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal de Inimigo, que assim prescreve:

 

“Todas estas restrições não estão dirigidas a fatos, e sim a determinada classe de autores. Busca-se claramente dificultar a vida destes condenados no interior do cárcere, mas não porque cometeram um delito, e sim porque segundo o julgamento dos responsáveis pelas instâncias de controle penitenciário, representam um risco social e/ou administrativo ou são “suspeitos” de participação em bandos ou organizações criminosas. Esta iniciativa conduz, portanto, a um perigoso Direito Penal do autor, onde “não importa o que se faz ou omite (o fato) e sim quem – personalidade, registros e características do autor – faz ou omite (a pessoa do autor)”.              

 

Desse modo, é evidente que tal regime de exceção apresenta-se apenas como uma política criminal equivocada, que resulta na reprodução e maximização da violência. A criação do RDD no sistema penitenciário brasileiro foi consequência justamente da realidade existente nos presídios e unidades de segurança, qual seja, a existência de facções criminosas que comandavam uma série de crimes de dentro do presídio, bem como organizavam rebeliões. Assim, tal regime de exceção foi um meio proposto para neutralizar tais inconvenientes, que estavam gerando um clima de insegurança na sociedade.

Entretanto, tal regime diferenciado não tomou como base os direitos individuais concedidos pela Constituição Federal, fato que implica várias situações cruéis e desumanas nas quais estão submetidos os presos, demonstrando inclusive a sua manifesta inconstitucionalidade.

Face ao exposto, torna-se evidente a necessidade de uma reforma em tal regime, com o escopo de se evitar o estabelecimento de penas cruéis e de condições desumanas ao apenados, fazendo com que se combata a corrupção interna aos presídios de maneira racional e socializadora.

      

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

1. O regime disciplinar diferenciado: notas críticas à reforma do sistema punitivo brasileiro. Salo de Carvalho e Christiane Russomano Freire

 

2. Notas sobre a inconstitucionalidade da L. 10792/03, que criou o regime disciplinar diferenciado na execução penal. Ma. Thereza Moura

 

3. Regime disciplinar diferenciado como produto de um direito penal do inimigo. Paulo Busato.

 

4. Teoria da pena e execução penal. Pavarini e Giamberardino, pp. 342-345

 

5. Execução penal. A. Couto de Brito, pp. 170-178.

 

6. O inimigo no direito penal. Zaffaroni, pp. 70-81.