O reformatio in pejus ​e a Soberania dos Veredictos do Tribunal do Júri

 

O princípio da ne reformatio in pejus veda a possibilidade de modificar a sentença para pior, quando a decisão for submetida à nova análise por provocação apenas da defesa. Ou seja, se somente o réu recorrer da decisão, a decisão do juízo ad quem deverá ser mais benéfica ao réu ou manter a sentença recorrida.

Neste sentido, importante mencionar a reformatio in pejus indireta, que seria a imposição de pena superior àquela que havia sido imposta na sentença condenatória anteriormente proferida no mesmo processo, e que fora anulada a pedido do réu. Segundo entendimento majoritário também é proibido. Em tais situações a sentença anulada, ou seja, incapaz de produzir efeitos, ganha eficácia para limitar o livre convencimento do juiz.  

Outrossim, este princípio também se aplica às apelações no Tribunal do Júri. A peculiaridade ocorre quando o fundamento da apelação da defesa for o previsto nas alíneas “a” ou “d” do inciso III do artigo 593 do CPP, já que acolhida a pretensão do recorrente, a decisão será anulada e submetida a um novo julgamento. Ocorre que o responsável pela reforma da decisão é o Júri, ao qual foi atribuído soberania dos veredictos, prevista no inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal.

Assim, em sede do Tribunal do Júri, o princípio da ne reformatio in peju indireta conflita com o princípio constitucional da soberania dos veredictos. Este assunto gera divergência da doutrina e jurisprudência quanto à possibilidade de, anulado o primeiro julgamento proferido pelo Conselho de Sentença, seja agravada a situação do réu em recurso exclusivo da defesa.

A doutrina majoritária entende que deve prevalecer a soberania dos veredictos sobre o princípio da proibição da reformatio in pejus indireta.

E, em decorrência de tal soberania, não haveria como o Conselho de Sentença encontrar-se limitado à pena proferida na primeira decisão. Segundo Paulo Rangel:

“(...) anulada a decisão dos jurados, o Tribunal do Júri tem plena liberdade para decidir como juiz natural da causa e o juiz-presidente proferirá sentença de acordo com as provas dos autos e a decisão dos jurados, permitindo-se, assim, pena superior, até porque a decisão anterior foi cassada. Não mais existe. O nada não pode servir de fator limitativo para a segunda decisão.”

No entanto, não pode se perder de vista que Paulo Rangel é contra a proibição da reformatio in pejus indireta, sendo que o fundamento transposto não parece o mais correto, pois o “nada” poderia servir de fator limitativo para a segunda decisão, se a primeira não tivesse sido proferida pelo Tribunal do Júri.

Para facilitar o entendimento, segue um exemplo: O réu, em primeiro julgamento, foi condenado pelo Conselho de Sentença por homicídio qualificado. Haja vista recurso interposto pelo réu, verifica-se que a decisão foi manifestamente contrário à prova dos autos, sendo assim anulado e colocado em pauta para novo julgamento. Os jurados, em nova decisão, poderia perfeitamente reconhecer uma qualificadora, não estando adstrito ao resultado do primeiro julgamento, justamente por prevalecer a soberania dos veredictos.

Contudo, há uma corrente minoritária que entende que, no segundo julgamento, o Juiz Presidente estará vinculado à pena do primeiro, mesmo que o Conselho de Sentença reconheça situação menos favorável, pois somente assim o princípio da proibição da reformatio in pejus estaria sendo respeitado em sua amplitude. Sustentam que a soberania dos veredictos não estaria sendo afetada, pois o Júri decidiria como bem entendesse, ficando somente o Juiz vinculado na aplicação da pena.

Neste sentido, segue entendimento do Professor Jorge Vicente Silva:

“... A tese defendida pela segunda corrente, acreditamos, seja a que mais atende ao princípio da proibição dareformatio in pejus em toda sua amplitude. Observa-se que nesse caso, fica mantida a soberania do Júri, restando apenas vinculado o Juiz Presidente à decisão anterior, quanto à pena então aplicada. O próprio art. 617 do Código de Processo Penal, quando permite ao Tribunal dar nova classificação ao fato, impedindo porém, seja a pena agravada, permite interpretação no sentido de que o Juiz Presidente do Tribunal do Júri pode ter sua decisão, ao proferir a sentença, vinculada ao máximo da pena fixada no anterior julgamento. Isto porque, se este dispositivo legal permite que o Tribunal ad quem dê nova definição jurídica ao fato, como por exemplo, reclassificar um delito de furto para roubo impróprio, devendo, porém, manter a mesma pena aplicada ao furto, nada impede que o Tribunal Popular dê nova classificação ao crime...”.

De mesmo entendimento, o Supremo Tribunal Federal em julgamento de um Habeas Corpus, decidiu que a reformatio in pejus não impede a incidência do princípio constitucional da soberania dos veredictos, podendo o júri decidir pó intima convicção no segundo julgamento. Sendo que, o juiz presidente deverá fixar pena nos limites da pena imposta na primeira decisão. Veja:

AÇÃO PENAL. Homicídio doloso. Tribunal do Júri. Três julgamentos da mesma causa. Reconhecimento da legítima defesa, com excesso, no segundo julgamento. Condenação do réu à pena de 6 (seis) anos de reclusão, em regime semi-aberto. Interposição de recurso exclusivo da defesa. Provimento para cassar a decisão anterior. Condenação do réu, por homicídio qualificado, à pena de 12 (doze) anos de reclusão, em regime integralmente fechado, no terceiro julgamento. Aplicação de pena mais grave. Inadmissibilidade. Reformatio in peius indireta. Caracterização. Reconhecimento de outros fatos ou circunstâncias não ventilados no julgamento anterior. Irrelevância. Violação conseqüente do justo processo da lei (due process of law), nas cláusulas do contraditório e da ampla defesa. Proibição compatível com a regra constitucional da soberania relativa dos veredictos. HC concedido para restabelecer a pena menor. Ofensa ao art. 5º, incs. LIV, LV e LVII, da CF. Inteligência dos arts. 617 e 626 do CPP. Anulados o julgamento pelo tribunal do júri e a correspondente sentença condenatória, transitada em julgado para a acusação, não pode o acusado, na renovação do julgamento, vir a ser condenado a pena maior do que a imposta na sentença anulada, ainda que com base em circunstância não ventilada no julgamento anterior. (STF - HC: 89544 RN , Relator: CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 14/04/2009, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-089 DIVULG 14-05-2009 PUBLIC 15-05-2009 EMENT VOL-02360-01 PP-00197)

Entretanto, entendo que este entendimento não é o mais correto, já que de nada adiantaria dizer que o Tribunal decidiria como quisesse, se a pena, estaria vinculada ao primeiro julgamento. Em tal caso, a soberania dos veredictos estaria sendo afetada indiretamente, pois de que adiantaria ser reconhecida uma qualificadora na segunda decisão se a mesma não poderia influir no cálculo da pena?

O grande problema desta questão é a harmonização dos princípios constitucionais. E, para promover esta harmonia, deve-se partir da premissa de que o bem maior sobrepõe-se ao bem menor, e neste caso a soberania dos veredictos deve prevalecer, pois tornaria toda a instituição sem efeito, caso pudesse ficar a decisão vinculada.

Segundo Heráclito Antônio Mossim:

“Há na nova decisão plena liberdade de os jurados votarem o questionário de forma que melhor lhes prouver, mesmo porque os juizes de fato que participaram do julgamento que restou anulado não podem participar do novo conselho de sentença, a teor do que se encontra insculpido na Súmula 206 do Colendo Supremo Tribunal Federal. A hipótese releva impedimento especial. A liberdade em questão está vinculada à soberania do tribunal do júri consagrada constitucionalmente (art. 5º, XXXVIII, c, da CF).”

Assim, segundo o entendimento mais acertado, pode perfeitamente o Juiz Presidente proferir uma pena maior, se o Conselho de Sentença reconhecer situação menos favorável àquela reconhecida no primeiro julgamento. Não há violação à reformatio in pejus indireta, pois tal decisão foi proferida pelo Tribunal do Júri, decorrendo do princípio constitucional da soberania dos veredictos.

Deve-se ter em vista que a soberania dos veredictos é norma constitucional, e a proibição da reformatio in pejus é norma infraconstitucional, e não há dúvidas acerca da superioridade da primeira.

Todavia, caso o Conselho de Sentença decida no segundo julgamento de maneira idêntica ao primeiro, não poderá o Juiz Presidente aplicar pena maior, pois neste caso a proibição da reformatio in pejus indireta deve ser aplicada, porque não fere a soberania do Tribunal do Júri.

Nas lições de Eugênio Pacelli de Oliveira:

“(...) em se tratando de procedimentos da competência do Tribunal do Júri, a soberania do júri popular constituirá obstáculo à vedação da ‘reformatio in pejus’. Por isso, na hipótese de realização de novo julgamento - se anulado o anterior, ou mesmo em decorrência da utilização do protesto por novo júri -, a nova decisão poderá piorar, validamente, a situação do réu, na hipótese, por exemplo, de reconhecimento de agravantes, causas de aumento ou mesmo qualificadoras, não apreciadas ou rejeitadas no julgamento anterior. Todavia, se a decisão do novo júri for igual à primeira, no que concerne á definição do crime e suas circunstâncias, não poderá o juiz-presidente agravar a situação do acusado, exclusivamente por ocasião da dosimetria (fixação) da pena.”

Assim, no caso do julgamento proferido pelo Tribunal do Júri ser anulado em segunda instância, a soberania dos veredictos em contraposição à proibição da reformatio in pejus indireta deve prevalecer, podendo perfeitamente, caso o Conselho de Sentença reconheça situação menos favorável, ser aplicada pela maior. Contudo, caso os jurados profiram decisão idêntica, a pena aplicada no primeiro julgamento irá vincular o Juiz Presidente, pois a ele aplica-se a proibição da reforma para pior indireta, pois se aplica o princípio da soberania dos veredictos somente à decisão dos Jurados, e não do magistrado.

Caso fosse adotado o entendimento da corrente minoritária, o princípio da soberania dos veredictos, mesmo que indiretamente, estaria sendo violado, pois mesmo podendo decidir como bem entender, a pena que é o objetivo da condenação, não poderia ser alterada.

De todo o exposto, concluo que o entendimento mais coerente é o adotado pela corrente majoritária, de modo que, no tribunal do júri, por força do princípio constitucional da soberania dos veredictos, anulada a decisão, no novo julgamento é possível que os jurados reconheçam crime mais grave e consequentemente a pena seja maior do que aquele que constava da decisão anterior. Ainda, soberana é a decisão dos jurados e não a pena aplicada pelo juiz presidente, portanto se no novo julgamento a decisão dos jurados for idêntica à do primeiro julgamento o juiz presidente não poderá impor pena mais grave. Assim, o princípio da soberania dos veredictos se sobrepõe à proibição da reformatio in pejus indireta, caracterizando exceção a este princípio.