Ianna Arruda[1]

Rômulo Alves Dias[2]

RESUMO

Apresenta a crise no judiciário brasileiro provocada pela falta de isonomia decisional para casos semelhantes. Aponta o uso inadequado do princípio do livre convencimento do juiz como catalisador da desordem jurisprudencial. Aborda o instituto do precedente do common law como forma de criação de uma teia lógica para emanação de decisões. Apresenta os conceitos de ratio decidendi, obiter dictum, overrruling e distinguishing. Apresenta a positivação no CPC/2015 da imposição aos tribunais para manterem jurisprudência estável, coerente e íntegra. Analisa a opção legislativa de vinculação a precedentes relacionada com a teoria da integridade de Ronald Dworkin. Apresenta o risco do fenômeno da hiperintegração na utilização de precedentes no Brasil. Mostra a necessidade de uma efetiva viragem decisional para afastar o protagonismo judicial por meio do uso (por similitude, não aplicação ou superação) de casos paradigmas, nunca renegando a origem fática do caso piloto. Aborda a tendência da mudança na eficácia nos julgamentos dos embargos de declaração no novo CPC.

 

Palavras-chave: Integridade. Coerência. Estabilidade. Precedente. Hiperintegração. Dworkin. Embargos de declaração.

 

1 INTRODUÇÃO

 

É aparente a insegurança e a falta de previsibilidade quando se demanda o judiciário. Paira um sentimento de dados lançados ao acaso, pois a jocosa máxima "de cabeça de juiz tudo se pode esperar" infelizmente se vivifica quando casos aparentemente semelhantes destoam por completo quanto ao seu desfecho decisional.

Adicionalmente, no desenrolar do novelo da crise de confiança das proclamações dos julgadores, causa muitos transtornos a insidiosa utilização da revisão de decisões judiciais sem o verdadeiro interesse em refutar os argumentos que lastrearam as sentenças. A bem da verdade, tais recursos se transmutam em meros mecanismos de protelação da prestação jurisdicional ao se aproveitarem do atolamento processual dos tribunais. Entretanto, certamente é equivocada a postura de magistrados que se desobrigam de fundamentar o julgamento de recursos, como embargos de declaração, como se estes fossem a priori meramente protelatórios. Em geral muitos julgadores se refugiam em um mix do princípio da razoável duração do processo com o princípio do livre convencimento motivado para se desobrigarem de fundamentar de maneira idônea suas teses decisórias.

É bem verdade que se faz necessário o constante repensar do direito para que seus operadores e usuários não parem de criticar os mecanismos ineficientes que existem, pois o crescente aumento de demanda por pronunciamentos judiciais alimenta a máquina judiciária que não tem capacidade sequer de dar vazão adequada ao seu atual estoque de processos.

 A desordem interna do Poder Judiciário gera falta de agilidade e falta de previsibilidade no teor das sentenças, decorrente assaz da nociva sinergia entre a elevada quantidade de ações judiciais e a má qualidade das decisões proferidas (WOLKART, 2015). Ora, não é de se esperar que sentenças justas emirjam de uma engrenagem assoberbada e com juízes julgando de forma sintética e automatizada.

Assim, atento ao déficit de segurança jurídica e de presteza jurisdicional, o legislador positivou no novo CPC um traço característico dos sistemas common law: o uso de precedentes judiciais como fundamentação vinculante para a argumentação das decisões dos juízes. Essa forma de introdução pela via legal do mecanismo de precedentes de observação mandatória é algo que não tem correspondência no histórico jurídico dos países que secularmente adotam o direito consuetudinário e por isso levanta questionamentos quanto ao seu desenrolar no Brasil (FREIRE, 2014).

Deveras a inovação trazida pelo CPC/2015 será palco de muitos estudos, pois se pretendeu dar uma guinada no atual modus operandi dos juízes singulares e dos tribunais, o que obviamente só se concretizará com o efetivo engajamento daqueles que darão vida prática à letra da novação legal. Cabe perquirir em que medida a busca pela razoável duração do processo pelo uso de precedentes vinculantes não se transmutará em  prolação de decisões inadequadas, inclusive em âmbito recursal. Nessa esteira, os autores desse artigo se sentem particularmente atraídos pelo tema, porque em breve estarão exercendo atividades profissionais diretamente ligadas aos novos mandamentos processualísticos.

Sendo assim, este trabalho se propõe a analisar como o novo CPC introduziu a vinculação a julgados paradigmas nas razões de decidir das sentenças, qual o impacto dos precedentes judiciais na esfera recursal e qual o seu reflexo na melhora da crise do judiciário, em particular quanto à clareza buscada nas fundamentações judiciais por meio dos embargos de declaração.

 

2 INSTITUTOS CARACTERÍSTICOS DO COMMON LAW

 

A opção legislativa de incorporar ao novo CPC institutos característicos do common law na perspectiva da integridade de Dworkin não será levada efetivamente a efeito na qualidade/quantidade das decisões judiciais se o estudo desses institutos não for feito com seriedade (STRECK, 2015b). Como nosso sistema é preponderantemente codificado (civil law), tendo a lei como fonte primeira e imediata para dizer o direito, simplesmente preceituar que a jurisprudência dominante e os precedentes agora também serão arvorados a substrato direto para fundamentar as sentenças judiciais não é suficiente para aparelhar de forma adequada os julgadores no intuito de decidirem de maneira justa e isonômica.

Naturalmente exsurge a necessidade de primeiramente analisar conceitos como os de jurisprudência dominante e precedente e também entender com profundidade a) a formação deste último, b) a extração da sua parte vinculativa na análise de um caso concreto (ratio decidendi) e a extração das demais fundamentações acessórias (obiter dictum), c) o seu afastamento pela não subsunção à causa concreta em discussão (distinguishing) e d) a sua superação no novo contexto sociojurídico (overruling). Freire (2014) ensina que jurisprudência e precedente têm significados distintos, sendo que a primeira se refere a uma coletânea de julgados sedimentados em determinada orientação decisional, enquanto que o precedente é um único julgado que servirá de paradigma para futuros julgamentos semelhantes.

Entretanto, um apanhado de conceitos descontextualizados também serão de pouca valia quando o magistrado tiver que "meter a mão na massa" e decidir sem o "coringa" do livre convencimento motivado que servia de panaceia para disfarçar uma convicção pessoal ou até mesmo uma displicência em razão de decidir. Felizmente o novo CPC expurgou a polivalente consciência motivada dos julgadores como régua padrão da decisão, o que evidentemente não terá por si só o condão de fulminar essa prática decisional já tão arraigada nas cortes dos tribunais.

Não se trata portanto de simplesmente revisitar esses conceitos, visto que a bem da verdade os juízes e tribunais pátrios nunca os efetivamente "visitaram" em sua materialização no direito consuetudinário (STRECK, 2015b). Deduz-se que é imprescindível um mergulho não perfunctório no estudo da evolução do common law para melhor entender como essas concepções foram construídas e se solidificaram com o exercício jurisdicional empírico nos países adotantes deste sistema. A incorporação tupiniquim pela via legal de instrumentos típicos do direito costumeiro é um salto sobre séculos de construção prática dos países anglo-saxãos. Por óbvio, quem toma atalhos para chegar a um ponto não experimenta a riqueza do aprendizado de quem efetivamente trilhou o caminho. E não se duvide que isso tem um preço.

 

2.1 Novo CPC: uma via legal para a "commonlização" do direito pátrio

 

O clamor por uma nova carta processual já ecoa há bastante tempo. Isso deriva do fato de que o direito material não se converte em utilidade para aquele que o busca se o rito instrumental for moroso. Evidentemente um caminho sempre percorrido para desatar os entraves jurídicos pátrios é o exame no direito comparado dos caminhos adotados por outras democracias.

A adoção do respeito obrigatório a precedentes judiciais, prática comum nos países sectários do direito consuetudinário, parece uma alternativa interessante para economizar tempo processual e para atrair as proclamações dos magistrados e tribunais em torno de uma linha decisional coerente.

Numa explícita tentativa de sincretismo das tradições do civil law com o common law, o novo CPC trouxe codificado vários artigos que prescrevem o respeito à vinculação aos precedentes. Streck (2015b) destaca que a mais retumbante inovação é devida ao artigo 926, a saber, "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente". Integridade e coerência têm presença nos estudos de Dworkin e são balizas para a sua teoria da decisão. Cabe afirmar que são fenômenos que se inter-relacionam, mas que não se confundem (DMITRUK, [200-?]). Complementariamente, a estabilidade seria um "conceito autorreferente que traduz a relação direta com os julgados anteriores" (STRECK, 2014, p. 158). Assim teria estabilidade e coerência (não-contradição), por exemplo, uma sentença que mantém a linha decisional de casos semelhantes já decididos, mesmo que estas decisões propaguem algum vício em suas fundamentações. Por outro lado,  

 

a integridade  exige que os juízes construam seus argumentos de forma coerente ao conjunto do direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antiética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade (STRECK, 2014, p. 158).

 

Noutras palavras, é a integridade que permite a revisão de uma estabilidade que está chocando com a ordem constitucional constituída e permite ao juiz não se aferrar a um passado de sentenças maculadas pela injustiça. Nessa linha, Didier (2015, p. 395) dispara que há de se "compreender o Direito como um sistema de normas, e não um amontoado de normas. O dever de integridade é nesse sentido uma concretização do postulado da unidade do ordenamento jurídico [...]".

A coerência efetivamente adequada não se configuraria tão somente no alinhamento com o passado e sim principalmente por meio da consonância com o eixo principiológico constitucional que lastreia o ordenamento. Assim, uma tese já ossificada que não condiz com os mandamentos da Lei Maior deve ser abandonada. Isso demonstra a insuficiência do uso isolado do binômio estabilidade/coerência para estabelecer os fundamentos de uma decisão.

Em conformidade com esse raciocínio, os magistrados encontrarão agora dois grandes óbices para decidirem meramente de acordo com o seu livre arbítrio, o que contribuirá sobremaneira para a previsibilidade das decisões e principalmente para a aceitação do resultado por parte do jurisdicionado. A pacificação social ganha fôlego quando casos semelhantes têm tratamento isonômico. Em relação ao primeiro limitador, pode-se citar que

 

o CPC/2015, ao retirar o poder de livre convencimento ou livre apreciação, assume nítido sentido 'não protagonista' [...]. Não se pode mais invocar, igualmente, o princípio da presunção racional. O novo Código não compactua com presunções, mesmo que venham com epítetos como 'racional', etc. Trata-se de uma opção paradigmática feita pelo legislador (STRECK, 2014, p. 34).

 

Isso reforça o entendimento de que a fundamentação das decisões não encontra mais amparo na vaga noção de que o magistrado assim prolatou porque precipuamente se deu por convencido, mas que na prática decidiu em um ato de puro protagonismo. Um trecho de um voto do STJ didaticamente apresentado por Streck em sua obra ilustra bem nosso atual estágio de ativismo judicial extremado:

 

Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. [...] Decido, porém, conforme minha consciência. [...] Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém (STRECK, 2015a, p. 24).

 

O segundo empecilho para o "julgar conforme a consciência" é o próprio raciocínio dworkiniano de ver a decisão jurídica como o capítulo de um romance, isto é, há um encadeamento lógico da narrativa (sentenças de cada caso concreto) dentro de um norte principiológico.

[...] podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar de 'romance em cadeia'.

Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade (DWORKIN, 1999, p. 275-276).

 

Nesse contexto de integridade, cada capítulo da história a priori reforça um entendimento assentado em julgados anteriores e poderá servir de arrimo para julgados posteriores. Isso é diametralmente oposto a prática de julgar um caso como se estivesse isolado do resto do direito, apartado do "romance".  Nas palavras de STRECK (2014, p. 163) "o realismo jurídico produz contos, ou seja, decisões adhoc que só possuem sentido quando observadas isoladamente, em si mesmo são início-meio-fim".

Esse entendimento tem repercussão inclusive em âmbito recursal, visto que o julgamento das impugnações não serão feitos ao alvedrio do juiz ou tribunal. Assim, não pode o magistrado se opor a fundamentar a sua decisão frente a uma impugnação. Nem sequer pode fundamentar de forma contrária a tradição com que vêm sendo tratados casos semelhantes se não for exposto de forma clara o não cabimento dos precedentes ou a efetiva superação do status quo decisional e o arvoramento de uma nova tese. A quebra da estabilidade jurisprudencial deve seguir o princípio da "inércia argumentativa em sua perspectiva de norma que

estabelece a necessidade de uma forte carga argumentativa para aquele que pretende afastar (por distinção ou superação) o precedente diante de caso que se assemelhe àquele que ensejou sua formação, exigindo-se não apenas a fundamentação ordinária nos termos do art. 489, caput e § 1°, CPC, como também uma fundamentação qualificada que justifique o overruling ou distinguisshing nos moldes do art. 489, § 1°, VI, CPC (DIDIER, 2015, p. 385).

 

 

 

 3 EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E AS ESCUSAS JUDICIAIS EM FUNDAMENTAR CORRETAMENTE AS DECISÕES

 

De acordo com o art. 535 do CPC/73, o embargo de declaração é cabível contra decisão que contenha obscuridade, omissão ou contradição. Existe um claro lastro constitucional nesta espécie recursal, pois "se a Constituição impõe que todas as decisões sejam motivadas, não se concebe que o sistema toleraria a prolação de decisões obscuras e contraditórias" (MEDINA; WAMBIER, 2013, p. 205). Não houve inovação significativa quanto a esse aspecto no tratamento dado pelo novo CPC.

Em síntese apertada, aponta-se a ocorrência de obscuridade quando a decisão não é inteligível, de contradição quando há um conflito intestino de entendimentos na decisão e, por fim, de omissão quando algo importante suscitado pelas partes não foi enfrentado pelo julgador. No tocante a esta última, acertadamente Medina e Wambier (2013, p. 208) afirmam que

de fato, a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional ficaria seriamente comprometida se as partes tivessem o direito de submeter suas razões ao Poder Judiciário, e a este direito não correspondesse o dever de se examinar todas elas, proferindo uma sentença completa.

 

Por óbvio que as decisões judiciais são atos humanos e por isso estão fortemente passíveis dos vícios a pouco aventados. Para contornar esse inconveniente, o remédio dos embargos de declaração está a disposição dos interessados para atacar tais defeitos e, se for o caso, eventualmente purificar a sentença.

Entretanto, o mau uso por parte dos magistrados do princípio do "livre convencimento do juiz", incluindo suas encarnações "livre apreciação da prova" ou "julgamento conforme a consciência", têm transformado a espécie recursal dos embargos de declaração em um placebo, tornando inócuo o esforço das partes em ter um diálogo efetivamente contraditório com o julgador. Espera-se que o banimento desse princípio do texto do CPC/2015

[...]fará com que se altere, substancialmente, a jurisprudência sobre 'a fundamentação nos embargos de declaração'. Vedadas, portanto, decisões do tipo: 'O sistema normativo pátrio utiliza o princípio do livre convencimento motivado do juiz, o que significa dizer que o magistrado não fica preso ao formalismo da lei (...) levando em conta sua livre convicção pessoal (Recurso Cível 5001367-22.2011.404.7119). Do mesmo modo, inadmissíveis de agora em diante decisões como esta: 'O juiz, na linha de precedentes do STF, não está obrigado a responder a todas as questões articuladas pelas partes. As razões de meu convencimento são suficientemente claras. Rejeito os embargos.' (STRECKa, 2015, p. 33).

 

Essa transformação por certo exigirá uma mudança radical no modo como as decisões judiciais têm se utilizado dos precedentes como forma de fundamentação. Atualmente, em geral, um apanhado de ementas e súmulas são escolhidas estrategicamente para dar ares de legitimidade a uma sentença. Mas não adianta a internalização pelos juízes de que o caráter abstrato da lei é frágil ao querer lidar com todos os possíveis casos concretos e repassar essa "onisubsunção" para a jurisprudência (parcamente representada em enunciados de súmula ou em resumos de precedentes).

 

O Juiz, assim, não pode ser só a boca da jurisprudência (como já o fora da lei, no tempo dos exegetas), repetindo ementas ou trechos de julgados descontextualizados dos fatos, ou usar julgados pontuais porque precisa ter uma noção do que os julgadores do passado fizeram coletivamente. Não dá para usar julgados isolados como se estes representassem a completude do entendimento de um tribunal. Isso, além de uma simplificação odiosa, está em desconformidade com a práxis do common law de que se diz estar buscando inspiração (THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA; PEDRON, 2015, p. 306-307).

 

O CPC/2015 corporificou esse espírito quando nega a fundamentação de sentença que meramente "se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos" (art. 489 § 1° inc V) ou "deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento" (art. 489 §1° inc VI).

Atente-se que observar a ocorrência de similitude (subsunção), superação (overruling) ou não aplicação (distinguishing) de um precedente não é verdadeiramente possível sem perscrutar as questões fáticas que contextualizam o leading case. O equilíbrio entre os mecanismos de distanciamento (metáfora) ou aproximação (metonímia) em relação à concretude das peculiaridades do precedente é que definirão a atração do caso piloto ao caso em análise (THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA; PEDRON, 2015).

Inadmissível, portanto, aceitar o magistrado se desonerar de verdadeiramente enfrentar questões suscitadas em embargos de declaração simplesmente alegando seguir precedentes sem lançar mão do mandatório princípio da "inércia argumentativa", nesse particular na vertente de norma que

facilita a elaboração da fundamentação (carga argumentativa mais fraca) para aquele que pretende aplicar o precedente à resolução de caso semelhante, mas sem que se abra mão de, ao menos, identificar seus fundamentos determinantes e demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (art. 489, § 1°, V, CPC) (DIDIER, 2015, p. 385-386).

 

Essa inteligência acertadamente foi utilizada pelo CPC/2015 ao prescrever que "ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação" (art. 926 § 2°). Não há portanto que se falar em fundamentação com base em ratio decidendi descolada do contexto do caso concreto do qual foi extraída.

Repise-se que o que se busca é a manutenção de uma jurisprudência estável, coerente e íntegra e não um mecanismo de legislação judiciária que avance em terreno próprio da atividade parlamentar na criação de regramentos abstratos. Isso será alcançado com a superação do fenômeno da hiperintegração de precedentes que sustenta intrincadas teses com um modesto "lego" construído a partir de estéreis súmulas, ementas, temas e outras cláusulas de simplificação do direito, que a bem da verdade ignoram o passado fático que ensejou a tese interpretativa modelo. A pseudo utilização de precedentes já foi alertada pela doutrina.

 

Corremos os riscos de uma hiperintegração. Esta existe na interpretação 'quando os fatos de um caso com alguma especificidade e restrição acabam se tornando um parâmetro geral para casos subsequentes que não guardam suficientes padrões de identificação com ele. É como se uma decisão singular inaugurasse uma nova afinação na orquestra, e todo o restante da prática jurídica se modulasse por ele, de forma nem sempre pertinente.' Tal fenômeno gera uma prática comum de considerar dois casos (o presente e o paradigma) idênticos ao aumentar o grau de abstração (distanciamento) entre eles. Dependendo do nível de abstração, dois elementos aparentemente diferentes podem se mostrar similares ou até idênticos  (THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA; PEDRON, 2015, p. 307).

 

4 CONCLUSÃO

 

Existe uma crise no judiciário nacional. Já não bastasse o tecnicismo que obstaculiza o entendimento dos jurisdicionados sobre as decisões judiciais, ainda há uma sensação generalizada de que comportamentos semelhantes recebem tratamentos diversos, mesmo quando analisados pelo mesmo magistrado ou tribunal. A exacerbada discricionariedade do julgador e o seu livre convencimento motivado desmedido acabam servindo como combustível para a emanação de uma miríade de decisões descoordenadas que parecem não seguir um eixo principiológico comum, como defendia Dworkin em diversas de suas obras (DMITRUK, [200-?]).

Freire (2014, p.7) corrobora com esse entendimento ao afirmar que  "[...] permitir que qualquer juiz aja de acordo com sua própria interpretação, ignorando decisões tomadas por tribunais no passado e mesmo por si, sem nenhuma razão convincente, equivale a anarquia jurídica". Frise-se que uma teoria decisional que renega limites objetivos é terreno fértil para arbitrariedades. Também é uma falácia crer que a simplória possibilidade de revisão das decisões se alinhe com o verdadeiro objetivo de se obter sentenças justas.

No intuito de enfrentar tal desordem jurídica, o parlamentar cunhou no novo CPC a vinculação das decisões aos precedentes judiciais com perceptível inspiração nos institutos do common law. O entendimento do novo modus operandi processualístico perpassa pela teoria da integridade de Ronald Dworkin.

Repita-se que o correto uso dos precedentes, a fim de evitar a hiperintegração decorrente de julgamentos de juízes ativistas e "céleres", dependerá da compreensão e comprometimento dos operadores do direito perante a viragem trazida pelo novo CPC. O incipiente uso de precedentes no CPC/1975 está muito aquém do desafio trazido pelo legislador de 2015.

Nesse bojo, analisou-se a repercussão em âmbito recursal do uso de precedentes, máxime em relação aos embargos de declaração, pois esta é a espécie recursal que por excelência escrutina a qualidade da decisão judicial. Espera-se que o correto uso da teoria de precedentes patrocinada pelo CPC/2015 traga substancial incremento na eficácia dos embargos quanto à construção de melhores decisões por meio do contraditório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres instituicionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. In: DIDIER, JÚNIOR et al. (cood.). Precedentes. Coleção grandes temas do novo CPC. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2015.

 

DMITRUK, Erika Juliana. O princípio da integridade como modelo de interpretação construtiva do direito em Ronald Dworkin. Revista Jurídica da UniFil, Ano IV, n. 4, [200-?].

 

DWORKIN, Ronald. O império do direito.  São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

FREIRE, Alexandre. Elementos normativos para a compreensão do sistema de precedentes judiciais no processo civil brasileiro. Revista dos Tribunais, vol. 950/2014, p. 199, dez. 2014.

 

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recursos e ações autônomas de impugnação. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

 

STRECK, Lenio Luiz. A Critica Hermenêutica do Direito e o novo Código de Processo Civil: apontamentos sobre a coerência e a integridade. In: STRECK, Lenio Luiz, ROCHA, Leonel Severo da, ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 11. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2014. p. 157-168.

 

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - decido conforme minha consciência? 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

 

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

 

THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

 

WOLKART, Erik Navarro. Precedentes no Brasil e cultura - um caminho tortuoso, mas, ainda assim, um caminho. Revista de Processo, vol. 243/2015, p. 409-433, maio. 2015. 

[1] autora

[2] autor