O recreio havia terminado naquele momento. Eu já não estava muito bem, sentia-me enjoado, pálido, gosto amargo na boca. Mas teria que resistir às duas últimas aulas do dia, antes de finalmente ir pra casa. Só me lamentava pelo fato de que essas aulas não seriam da professora Zinara, de educação artística. Aí eu conseguiria esquecer o mal estar enquanto desenhava, pintava, ou construía bonecos com papel reciclado.

Até que, ela finalmente entra na sala. Sisuda, imperial, autoritária. Era dona Josefa, a professora de matemática. Não bastasse o embrulho no estômago, teria que aguentar uma hora e meia de matemática.

Como sempre fazia, ela encarava a turma com um olhar inquisitorial e ficava assim até que nenhuma conversa mais se ouvisse na sala de aula. Então se dirigia triunfante para o quadro e começava a escrever com o giz o assunto do dia.

Surgem equações de todos os tipos: binomial, de Torricelli, da Parábola e diversos conceitos. Foi quando eu senti a primeira pontada na barriga. O mal estar do recreio evoluíra para uma sutil dor de barriga. Constatei que precisava urgentemente executar o número dois.  Mas aos treze anos, tímido com uma pedra, eu me preocupava muito com a opinião dos outros. E os outros eram quarenta adolescentes irresponsáveis e zombadores, cuja principal diversão naqueles verdes anos era apelidar os incautos como eu.

Fiz mentalmente o percurso da minha carteira até a professora, me imaginei pedindo licença para sair da sala.

Ela perguntaria: - e o que você vai fazer fora da sala?

Eu responderia confiante: - vou mostrar pra privada quem é que manda aqui. Ou então: -vou trocar uma ideia com Dona Celite.

Retornaria depois de alguns minutos. Pálido, mas aliviado. E quando entrasse na sala, os impiedosos colegas gritariam em uníssono o tradicional bullying dessas ocasiões: 

-Ca- gão! -Ca- gão! -Ca-gão!

Nesse momento eu interrompo os meus devaneios e desisto de ir ao banheiro. Afinal, seriam apenas duas aulas de quarenta e cinco minutos até o toque de sair. Uma hora e meia?!? Caramba, eu teria que aguentar.

Foi quando a professora terminou de encher o quadro com dezenas de questões sobres equações, pegou a caderneta e encarou a turma com um sorriso sarcástico, meia boca, desses em que a pessoa suspende o músculo de apenas um lado da face. Jack o estripador devia fazer uma cara assim antes de mutilar suas vítimas.

-Hoje vou sortear alguns de vocês para responder essas questões aqui no quadro.

Nesse momento eu gelei. Além de não saber quase nada, eu estava em estado de alerta. A qualquer momento a sirene do intestino poderia tocar e eu teria que sair voando em direção à sala de emergências.

-Número quarenta e dois!  -ela diz em voz alta.

Naquele tempo a chamada era feita pelos números dos alunos. E o meu era dezessete.

A primeira vítima vai ao quadro para a sessão de tortura. Finge que sabe, rabisca, apaga, rabisca, apaga outra vez. Dona Josefa de pé, ao lado do coitado, braços cruzados, encarando a encenação do meu pobre colega e balançando a cabeça negativamente para aumentar ainda mais o vexame daquele condenado.

Por mais cruel que isso possa parecer, eu torcia para que aquela tortura se prolongasse. Nesse dia eu compreendi perfeitamente a expressão: “antes ele do que eu”. Quanto mais tempo ele sofresse, menos tempo sobraria para as próximas vítimas. A minha barriga remexia como se ali houvesse três gatos brigando ferozmente.

-Pode sentar, já vi que você não estudou nada.  –arremata a capitã.

-Olhem aqui, eu disse que se não estudassem iriam se dar mal.

-Próximo: número dezoito.

Nesse momento, a natureza foi mais forte e eu não pude conter aquela primeira golfada de liberdade do meu ventre. Parte da angústia contida rompe as algemas do destino e percorre o caminho súbito das calças. Eu suava em bicas, queria morrer. Por que eu simplesmente não morri naquele momento para depois ressuscitar em alguma ambulância, apenas para me livrar daquele terror? Meu rosto era um misto de pânico e desespero. Não sabia se chorava ou se aceitava a minha desgraça com resignação.

O odor abominável invade a sala.

Gilmar, o aluno mais gaiato, grita sem dó nem piedade:

-‘Fessora’, tem um cavalo morto aqui atrás.

-Silêncio, menino! Vou sortear o próximo.

Meu amigo Martiniano, sentado na mesma direção duas cadeiras adiante, olha pra mim e me pergunta gesticulando se estou sentindo o mau cheiro.

Respondo quase chorando que sim. Depois aponto pra mim mesmo denunciando o autor daquela catástrofe.

Ele arregala os olhos, abre a boca, e como bom amigo me anima quase em cochicho:

-Aguenta firme! Falta uma hora pra terminar.

Era uma eternidade, mas a desgraça já estava feita.

Em meio a esse desespero, Josefa, a estripadora, prosseguia no sorteio, chamando um a um dos infelizes escolhidos aleatoriamente na caderneta do mal.

Os alunos se revezavam enquanto o relógio simplesmente não colaborava e o tempo se arrastava.

-Número dezesseis!  -berra a professora num dado momento.

Foi a gota d’água. Depois desse raspão eu aceitei a derrota e deixei que a natureza terminasse o que havia começado. Era naquele momento um lutador vencido, nocauteado, estendido no octógono da sala de aula enquanto o opositor, muito mais forte, me massacrava com golpes implacáveis. Restavam alguns minutos e naquele ponto eu já aceitara o iminente opróbrio diante dos colegas. Estava com as calças literalmente repletas da minha calamidade.

Finalmente soa o gongo, ou melhor, a sirene da escola, determinando o fim da aula.

Eu estava prostrado, sem forças, anêmico, olhos esbugalhados, suado, trêmulo, mas havia escapado milagrosamente do maldito sorteio.

Deixei que todos saíssem da sala enquanto fingia arrumar indefinidamente os meus livros e cadernos imaginando uma maneira de vencer os poucos metros que me separavam do porto seguro da minha casa.

Escuto o comentário espantado de Martiniano:  -Vai ter sorte assim...

Saio andando cuidadosamente com aqueles passinhos curtos de quem não deseja deixar rastros indesejáveis por onde passa e finalmente chego em casa.

Ao ver minha mãe eu estava literalmente vendo um anjo.

-Vai direto pro banheiro! –ela me diz ao perceber a tragédia.

Debaixo do chuveiro eu mal acreditava que aquele suplício havia terminado. Só queria agora esquecer aquela aula de m...

Aí eu lembro que poderia ter sido pior. Bem pior.