O Dogma da Supremacia do Interesse Público

Supremacia do Interesse Público: verdade formal ou real?



                                                               Patrícia Nunes Guimarães1

 

Sumário: 1- Introdução; 2 indisponibilidade do interesse público; 3-interesse público versus cláusulas pétreas; 4-direitos difusos tutelados pelo Estado; 5- conclusão



 

                                                                    RESUMO

Realiza-se um estudo a cerca da indisponibilidade do interesse público, demonstrando sua relativização em relação ao interesse particular. Ressaltam-se os principais pontos que fazem com que o interesse público não prevaleça sobre as cláusulas pétreas da Constituição Federal. Destacam-se os principais direitos difusos tutelados pelo Estado. Analisa-se a distinção entre satisfação do interesse público e supremacia.

 

                                                       

                                                 PALAVRAS-CHAVE

                                           Interesse público. Indisponibilidade. Cláusulas pétreas



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1 Acadêmica do 7° período do curso de Direito da UNDB ([email protected])

1-INTRODUÇÃO

Celso Antônio ressalta que o interesse público não se contrapõe necessariamente aos interesses privados, ele nada mais é do que uma forma, um aspecto, uma função qualificada do interesse das partes, ou seja, não há como se conceber que o interesse público seja contraposto e antinômico ao interesse privado, caso assim fosse, teríamos que rever imediatamente nossa concepção do que seja a função administrativa. O interesse público é a dimensão pública dos interesses individuais dos partícipes da sociedade, uma expressão dos direitos individuais, vista sob um prisma coletivo. Vale dizer, o interesse público diz respeito a cada pessoa enquanto membro da sociedade resulta do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelos simples fato de o serem. 2

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado apresenta seu fundamento normativo implicitamente contido respectivamente nos artigos 5º, inciso XXV e 170, inciso VI da Constituição Federal. Hely Lopes Meirelles afirma que o princípio do interesse público está intimamente ligado ao da finalidade. A primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral. Em razão dessa inerência, deve ser observado mesmo quando as atividades ou serviços públicos forem delegados aos particulares. 3

Ou seja, diante disso, sinteticamente pode-se conceituar o interesse público como sendo a finalidade legal do ato administrativo, portanto vincula-se ao princípio da legalidade limitando o poder discricionário dos entes da administração pública, evitando arbitrariedades. Logo, o dogma consiste na interpretação errônea da supremacia do interesse da sociedade sobre o particular, quando na verdade o que há é uma satisfação do interesse da sociedade em proteger direitos difusos, que consequentemente são inerentes a cada particular como membro da sociedade.

 

Assim, o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional que envolve a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível. O instrumento deste raciocínio ponderativo é o postulado da proporcionalidade. 4

Ou seja, a sociedade se adequa a lei, e esta é criada por necessidade do interesse público para cumprir a finalidade de gerenciar os atos administrativos e de estabelecer um padrão de convivência social, impondo limitações às liberdades individuais. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao tratar de interesse público, dispõe o seguinte:

As normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, tem o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando, depois de superados o primado do Direito Civil (que durou muitos séculos) e o individualismo que tomou conta dos vários setores da ciência, inclusive a do Direito, substituiu-se a idéia do homem com fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos tem supremacia sobre os individuais. 5

 

No dizer de Maria Sylvia Zanella di Pietro, o princípio da supremacia do interesse público, também chamado de princípio da finalidade pública, está presente tanto no momento da elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação. Além disso, afirma que em nome do primado do interesse público, inúmeras transformações ocorreram: houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas, com a conseqüente ampliação do próprio conceito de serviço público.O mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas, além de ampliar o seu campo de atuação, que passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social. Surgem, no plano constitucional, novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida econômica e no direito de propriedade. Assim, são as normas que permitem a desapropriação para a justa distribuição da propriedade. Cresce a preocupação com os interesses difusos, como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico nacional. 6 (grifo nosso)

Celso Antônio de Mello faz ainda uma importante observação a respeito da relação entre a auto-executoriedade dos atos administrativos com a supremacia do interesse público. Vejamos:

Como expressão desta supremacia, a Administração, por representar o interesse público, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigações mediante atos unilaterais. Tais atos são imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsão legal de sanções ou providências indiretas que induzam o administrado a acatá-los. Bastas vezes ensejam, ainda, que a própria Administração possa, por si mesma, executar a pretensão traduzida no ato, sem necessidade de recorrer previamente às vias judiciais para obtê-la. É a chamada auto-executoriedade dos atos administrativos. 7(grifo nosso)

 

O princípio da impessoalidade também se vincula ao da supremacia do interesse público, já que a impessoalidade determina que os atos realizados pela Administração Pública, ou por ela delegados, devam ser sempre imputados ao ente ou órgão em nome do qual se realiza, e são destinados à coletividade, sem consideração, para fins de privilegiamento ou da imposição de situações restritivas. Ou seja, a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, pautando-se na igualdade constitucional. Uma vez que satisfazendo o interesse público tratam-se desigualmente os desiguais e igualmente os iguais.

É relevante também observar o elo existente entre o princípio da supremacia do interesse público e a moralidade, à qual se baseia nos valores éticos, na razoabilidade e na justiça. Portanto, um ato que vai contra os valores éticos de uma sociedade fere o interesse público.

Em relação ao princípio da publicidade, este por sua vez, impõe plena transparência em relação aos comportamentos da administração pública. Ora, sabe-se que é um direito da sociedade ter informações dos atos públicos da Administração, logo, se há um contra-senso em relação à publicidade desses atos, por conseguinte, contraria também o interesse público de ter acesso aos atos da Administração. Mais uma vez fica evidente a relação entre a supremacia do interesse público e outro princípio da administração, no caso, o da publicidade.

No tocante ao princípio da eficiência, sendo a sociedade quem usufrui da organização e controle da administração pública, caso a administração estatal interrompa a prestação de seus serviços e crie atos ilegais ou inconvenientes, ela estará sendo eficiente? Não, e consequentemente também fere três princípios de uma só vez, o princípio da continuidade dos serviços públicos, o princípio da auto-tutela e claro, o da supremacia do interesse público. Visto que, a sociedade será a mais prejudicada.

2-INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

O agente público não é dono do interesse coletivo, ele apenas serve às entidades que representam e administram esses interesses. Literalmente, a indisponibilidade significa que não se pode dispor do interesse público, ele é irrenunciável. O núcleo do interesse público é a vontade geral, em termos históricos: “o pacto social”. ROUSSEAU traz em seu Contrato Social:

... a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a favor de toda a comunidade, porque primeiramente, entregando-se cada qual por inteiro, a 'condição é igual para todos, e, por conseguinte, sendo esta condição idêntica para todos, nenhum tem interesse em fazê-la onerosa aos outros". 8

 

O administrador público tem o dever de agir, ele tem por obrigação exercitar esse poder em benefício da comunidade. Esse poder é irrenunciável. O agente público não pode dispor deste poder se omitindo ou se escusando de cumprir suas obrigações perante a sociedade, pois tal responsabilidade é de competência indelegável.

O decreto 3.201/99 estabelece no art. 2°

§ 2o Consideram-se de interesse público os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou sócio-econômico do País.

Zelando pela supremacia do interesse público são criadas OSCIPS (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), que são ONG’S criadas por iniciativa privada e que firmam termo de parceria com o poder público para melhor servir a sociedade.

3-INTERESSE PÚBLICO VERSUS CLÁUSULAS PÉTREAS

O interesse público não pode reformar ou pôr em dúvida as cláusulas pétreas. As cláusulas pétreas inseridas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 encontram-se dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas: A forma federativa de Estado; O voto direto, secreto, universal e periódico; A separação dos Poderes; Os direitos e garantias individuais.

Um Estado federado possui autonomia e a sociedade não pode intervir nessa atuação, senão fere uma garantia constitucional. Assim também o voto direto, secreto, universal e periódico, que é imutável. O Brasil adota a teoria tripartite, possui três poderes independentes e harmônicos entre si: executivo, legislativo e judiciário. Logo, a sociedade não pode delegar funções aos poderes, que sejam alheias às suas competências. Ademais, o interesse público não pode afetar direitos e garantias individuais, como, por exemplo: direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.

4-DIREITOS DIFUSOS TUTELADOS PELO ESTADO

Direitos difusos constituem direitos transindividuais, ou seja, que ultrapassam a esfera de um único indivíduo, caracterizados principalmente por sua indivisibilidade, onde a satisfação do direito deve atingir a uma coletividade indeterminada, porém, ligada por uma circunstância de fato. Como, por exemplo, os direitos da criança e do adolescente, direitos do idoso, direitos da mulher, do portador de deficiência, entre outros.

No tocante ao acesso à justiça, este deve ir de encontro aos direitos consagrados na Constituição Federal, por isso, os direitos difusos tutelados pelo Estado têm total relação com o acesso à justiça.

5-CONCLUSÃO

Para que seja possível verificar a real satisfação do interesse público, é indispensável à efetiva motivação do ato administrativo. Logo, tendo em vista todos os apontamentos deste artigo conclui-se que o relevante interesse público trata-se de uma verdade real, que deve ser satisfeita. Porém, a sua “supremacia” é que é apenas formal, mítica e abstrata.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 24. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007

3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006.

4 BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo Paradigma para o Direito Administrativo. INTERESSES PÚBLICOS versus INTERESSES PRIVADOS. Editora Lumen Juris, 2007

5 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 19ª edição. Editora Atlas. São Paulo, 2006

6 IBDEM- DI PIETRO

 7 IBDEM- Celso de Mello

 8 ROUSSEAU, Jean Jacques – “Do Contrato Social”, in “Os Pensadores”, vol. XXIV, São Paulo, Ed. Victor Civitas, 1973.

                                                              REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 24. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006.

BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo Paradigma para o Direito Administrativo. INTERESSES PÚBLICOS versus INTERESSES PRIVADOS. Editora Lumen Juris, 2007

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 19ª edição. Editora Atlas. São Paulo, 2006

 ROUSSEAU, Jean Jacques – “Do Contrato Social”, in “Os Pensadores”, vol. XXIV, São Paulo, Ed. Victor Civitas, 1973.