Isabelle Christine Pinho Pereira*

Laura Rita Sousa Cardoso**


Sumário: Introdução; 1. Relações de Poder: a genealogia; a história; a verdade; o direito; 2. A Disciplina; 3. As Técnicas de biopoder e o Direito: a estruturação da biopolítica; Considerações Finais; Referências.

RESUMO
O presente estudo se propõe a analisar a figura do Direito a partir dos conceitos elaborados por Michel Foucault, marcadamente as noções de disciplina e técnicas de biopoder e biopolítica. Nesse sentido, a análise é direcionada a ver o campo jurídico como ferramenta a serviço de um contexto determinado econômica e politicamente. O Direito é engendrado a partir de relações de poder, nas quais é organizada uma estrutura de intervenção social baseada na ideia de legitimidade do Estado.
PALAVRAS-CHAVE
Direito; Relações de Poder; Disciplina; Biopolítica.


INTRODUÇÃO
O Direito visto sob o ângulo de um campo resultante de relações de poder se tornou objeto de estudo de forma marcante a partir dos escritos de Michel Foucault. Este autor, dentre outros elementos de observação, teceu importantes comentários acerca de como o Direito foi construído e pensado a partir critérios operacionalizáveis. Em outras palavras, quais os métodos utilizados na feitura do agir jurídico com base na ideia de um Estado operante. Pode-se dizer também, que “ferramentas” são utilizadas para tornar efetiva a ação estatal frente os componentes do arranjo social.
Nesse contexto, diversos são os domínios nos quais a utilização da força se torna eficaz, por mais que esta se efetive por meios dito oficiais e legítimos para a manutenção da ordem. Entender como essa rede se materializa e como a atuação estatal se torna “fundamental” para a conservação da “coesão” social é um dos principais elementos de análise do intelectual francês. Esse exame toma corpo a partir da genealogia do objeto, no caso aqui, o Direito, vendo a constituição dos saberes, dos discursos, e de seus domínios (FOUCAULT, 2004, p.07). Os domínios nos quais a análise foucaultiana se tornou fundamental foram: a análise do direito a partir do conceito de biopolítica; as formas jurídicas e a vontade de saber; a governamentalidade como mecanismo de uso do direito; e o processo como forma de conquista da verdade.


1. RELAÇÕES DE PODER: a genealogia; a história; a verdade; o direito
Não se pode conceber um estudo acerca de Michel Foucault, mesmo que de forma não aprofundada, sem falar ou levar em consideração os conceitos de poder, genealogia, verdade e história, e suas implicações para os diversos âmbitos do saber.
O autor francês analisa o aspecto da produção do conhecimento humano a partir do que ele chama de genealogia, tomando certa influência do pensamento de Nietzsche, mas não fincando seus postulados nas mesmas balizas delineadas por este autor.
A genealogia caracteriza-se pela busca das condições que possibilitaram o aparecimento, desenvolvimento e continuidade de determinado saber. Tal análise é marcadamente direcionada para a verificação do contexto em que o discurso foi construído, que relações de poder foram preponderantes para que dado discurso se sobrepusesse a outro, que condições políticas se delinearam. Tudo isso, na realidade, é fundamental para se chegar à conclusão que nenhum saber é neutro, assim como todo e qualquer conceito é forjado a partir de determinismos políticos, econômicos e sociais, entremeados por um contexto histórico. “Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber.” (ASENSI, 2006, p. 4). As relações de poder que constituem o conhecimento devem ser o objeto inicial e fundamental para se efetivar uma análise que se digne ampla e competente.
A verdade, nesse sentido, não é algo universal e neutro, é apenas uma dentre muitas, mas que tem sua importância alcançada por via do contexto que surgiu e das implicações que efetivou, possibilitando o seu embate com outras verdades.
Genealogia e história não podem ser dissociadas, são ferramentas absolutamente necessárias para uma análise plural acerca do objeto de estudo. “A genealogia pode e deve escutar a história, pois, a história, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir.” (FOUCAULT, 2004. p. 20).
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O conhecimento, assim, deve ser entendido como o resultado de relações de luta, do embate entre posicionamentos ideológicos, política e economicamente determinados. A genealogia e a história são os mecanismos fundamentais para a análise dessas relações, na verificação do que está por detrás do enfoque tradicional, seus bastidores.
A noção de discurso não foge a essa lógica, e sua estruturação é marcadamente influenciada pelos conceitos de relações de poder e verdade até aqui mencionados. O discurso jurídico, nesse sentido, é resultado de um intenso embate de forças. Em A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault, tece uma análise acerca dos elementos constituidores do direito, seu desenvolvimento histórico, a ideia de justiça privada e sua “evolução” ao conceito de justiça pública, a partir da intervenção de um terceiro. Sento este, quem se apropria dos procedimentos e mecanismos de resolução de conflitos, passando das mãos do soberano para as do Estado Moderno posteriormente.
2. A DISCIPLINA
A análise aqui buscada não pode fugir do que acima se falou acerca dos elementos definidores do saber humano. Nesse sentido se constrói a ideia de disciplina em Foucault, seu estudo se desenvolve a partir desses elementos. A ideia de poder, mais necessariamente, saber poder, possibilita ou legitima a atuação do Estado por meio seu aparato. Assim, é indubitável a função das formas punitivas do Estado, nas suas variações e significações. O excluir, organizar, marcar, e aprisionar constituem os mecanismos nos quais o saber é conduzido à função de poder, legitimando a atuação mais violenta do aparato estatal.
Todas as formas estão inseridas, para Foucault, na esfera de poder, e dela não pode escapar justamente pelo fator legitimação, que como é sabido, constrói-se com base em elementos próprios incluídos nas práticas e saberes jurídicos atinentes ao âmbito do agir estatal por via do Direito.
Como resultado de uma construção desenvolvida em um âmbito de relações de força, com objetivos próprios e funções demarcadas, o disciplinamento forja a securitização de um modelo que serve a um contexto. Este possibilita o exercício do poder que o forjou, e se torna em peça fundamental em toda essa engrenagem.
O primeiro elemento a que Foucault fez referência foi o modelo capitalista, sob suas diversas facetas. Assim, as instituições foram trabalhadas e organizadas a partir de critérios rígidos quanto à possibilidade do exercício do poder direcionado à manutenção do modelo de produção de riqueza próprio de um contexto histórico e social. Nesse sentido, são
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concebidas as funcionalidades direcionadas à parcelas da vida em sociedade, efetivadas a partir das instituições, mais tarde, tidas como tradicionais.
É nesse contexto, que as formas jurídicas aparecem com maior importância e de forma mais preponderante, justamente pelo fato de serem necessários para servir a um modelo, não um regime estruturante1 e estático, mas algo que tem seu funcionamento marcado pelo controle por via de práticas que tem sua significação reiterada e solidificada pelas instituições.
Para Foucault, o elemento disciplinar só pode funcionar a partir de critérios que vão além do seu sentido prático imediato. Por exemplo, a prisão não pode ser pensada única e exclusivamente embasada em uma teoria penal ou sociológica (FONSECA, 2012, p. 169). A concepção de todo o modelo deve perpassar pela funcionalidade específica da prisão como punição. Esta deve ser analisada também sob o enfoque econômico e político, e como tal, associada ao fundamento de toda a ordem.
É em função disso também que o Direito não pode ser pensado como elemento isolado. Ele serve a um contexto bem maior, e seus mecanismos, marcadamente os disciplinares, são forjados para atender a funcionalidades específicas e gerais ao mesmo tempo. A normalização disciplinar, com seus fundamentos e instrumentos foi muito bem trabalhada na obra Vigiar e Punir, do filósofo francês.
A constituição de uma individualização útil a um modelo e caracterizada pela docilidade, perfeitamente compreendida dentro de uma vigilância hierárquica, é o resultado mais visível da disciplina trabalhada por Foucault.
Essa individualidade caracteriza o perfil do sujeito normalizado, não-autônomo, estabelecido por uma medida que estipula os ditos “normais” e aqueles considerados “anormais”, desviantes do referido perfil. Esse personagem desviante seria o delinquente.
Entretanto, o discurso foucaultiano trouxe elementos notadamente inovadores, na medida em que trabalhou esse indivíduo desviante como um produto próprio do modelo. Em outras palavras, o regime não produz apenas aqueles que o seguem, mas também já é prevista a existência da individualidade enquanto perfil “anormal”. Esta seria, nas palavras de Foucault, a “delinquência útil”, uma espécie de ilegalismo dominado. Não há como dissociar essa imagem dos conceitos elaborados posteriormente pelos pensadores da criminologia crítica relacionada à análise das pessoas marcadas pelo estereótipo da delinquência, que, ao
1 A noção de estrutura é rechaçada por Michel Foucault. Em sua obra Microfísica do Poder, o autor francês, afirma que a noção de estrutura paralisante não possibilita uma análise eficaz com relação aos acontecimentos. Este deve ser pensado a partir de aspectos gerais, com base em diferentes elementos, que possibilitam, a seu turno, uma análise mais ampla, frisando os níveis e redes aos quais pertencem. (FOUCAULT, p. 06)
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contrário de uma interpretação simplista direcionada a entendê-los como sujeitos marginalizados, adota o pensamento de que esses indivíduos são absolutamente necessários ao sistema, na medida em que funcionam como a “marca do desvio”.
Nesse sentido, não há a marginalização aduzida, mas sim o fato de que o delinquente é peça fundamental nessa engrenagem, é totalmente parte do sistema. “Pode ser controlada, canalizada para formas de ilegalismos menos perigosos, ou mesmo ser objeto de uma ‘utilização direta’”. (FONSECA, 2012, p. 179). Não há como concebê-la fora dessa lógica que serve a um regime caracteristicamente plural.
3. AS TÉCNICAS DE BIOPODER E O DIREITO: a estruturação da biopolítica
A(s) função(ões) a que a disciplina serve, assim como as formas nas quais os elementos punitivos são materializados convergem para a manutenção de um forma de condução da sociedade, entremeada na sua modulação a partir de rígidos critérios de controle. Este, entretanto, é pensado e efetivado com base em ações que não evidenciam o poder de repressão, mas que, ao mesmo tempo, deixa claro quem está no comando.
O filósofo francês exemplificou muito bem a forma como essa manobra é concebida na sua História da Sexualidade, em que restou evidenciada que a repressão não é o mecanismo mais eficaz, embora seja utilizável. O discurso a partir de uma posição de força é o elemento primordial na asseguração das ferramentas de controle, com funções legitimadas e legitimadoras da atuação estatal.
O poder disciplinar toma uma nova vertente com base na estruturação de mecanismos que efetivam um controle específico do corpo daquele que está no meio social. Ao mesmo tempo, o elemento coletividade ganha forma nessa vertente de intervenção. A regulação da vida, nos seus mais diversos atos, formula um conjunto de saberes a que Foucault denominou tecnologia política dos corpos.
Essa forma de tratamento daqueles que estão reunidos no meio social se adequa à maneira pela qual o Estado garante sua soberania no âmbito interno. Esta é a marca da estratégia de poder que se delineou a partir do fim do período das grandes guerras do século XVIII, em que o Estado se concentrou em regular seu poder no âmbito interno.
A própria organização do espaço urbano funcionou como modelo de intervenção da biopolítica na vida dos habitantes das cidades, marcadamente direcionadas a se adaptarem às funcionalidades políticas, econômicas e administrativas. A concepção do cotidiano não fugiu à esfera de intervenção do Estado, este estendeu suas teias aos mais variados âmbitos da
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sociedade, deixando claro que vida seria controlada na sua totalidade, servindo a um modelo em que a repressão é apenas uma faceta, apenas aquelas visível como atuação direta, talvez a menos influenciadora.
A diferença de tratamento que se concebeu do poder disciplinar para o biopoder de segurança traçou os elementos configuradores de um Direito adaptado e adaptável à determinado contexto, e portanto, mais eficaz como ferramenta de controle.
A disciplina não foi rechaçada, mas ficou como elemento de intervenção mais visível, ao passo que as formas de segurança foram articuladas para um tratamento menos agressivo e mais apropriado à complexidade das sociedades modernas. O Direito é pensado nesse sentido, como instituição perfeitamente adaptada às mudanças ocorridas no seio social, e também como ferramenta estatal utilizada na gestão, no governo da população, a partir dos critérios definidores na economia e na política.
Pensar o Direito dissociado da ideia de intervenção é não entendê-lo eficazmente. A intervenção aqui tratada não é aquela somente direcionada a impor uma sanção à pessoa que comete um crime. Esta é a tradicional forma de normalização do indivíduo, caracterizada pela repressão ao desvio, que esteve presente desde os primórdios da humanidade. A forma de intervenção baseada no modelo de segurança trabalhada por Foucault no Direito é mais complexa justamente pelo fato de ser adequada aos conceitos ligados a outras áreas de conhecimento e levar em consideração as diversas facetas do meio social.
O Direito é forjado assim, como elemento de convergência para um modelo previamente estabelecido, levando em consideração a economia, a política e elementos sociológicos. Não se pode mais pensar a sociedade a partir de critérios que não estejam adequados a sua complexidade.
Para os economistas do século XVIII, a população deixa de aparecer como uma coleção dos sujeitos de um soberano e passa a expressar ‘um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural’. A população aparece como o objeto técnico-político de uma gestão, ou seja, de um governo.
Essa forma de tratamento será utilizada posteriormente no que Foucault chama governamentalidade. Esse conceito não será aqui trabalhado já que o cerne do presente estudo direciona-se tão somente aos elementos disciplinares e a forma de atuação do Direito por meio das técnicas de intervenção do biopoder em Foucault. A governamentalidade seria o terceiro e último estágio do complexo – “mecanismos de segurança – população – governo.”, levando em consideração a utilização dos elementos até aqui trabalhados na concepção de governo, entendido em Foucault como “arte de governar”.
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A concepção de segurança por meio das técnicas de biopoder é perfeitamente associada à ideia de um Estado que tem sua malha espalhada pelos mais diversos âmbitos, utilizando as mais variadas ferramentas de apropriação da vida. É totalmente inconcebível pensar que o Direito esteja fora dessa estrutura, e foi justamente por isso que Foucault dedicou ao campo jurídico parte considerável de sua análise, objeto do estudo aqui proposto.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como não é concebível pensar o Direito fora dessa trama de intervenção, também não se pode deixar de mencionar que o campo jurídico é adequado a um regime, decorre de relações de poder. Essa seja talvez a mais simples, mas também verdadeira explicação de ser este Direito e não outro.
A neutralidade há muito foi derrubada, e embora Foucault não tenha sido o primeiro a tecer comentários sobre sua falácia, acabou sendo de grande importância na discussão dos mecanismos que engendram as instituições com base em seus conceitos de poder, genealogia e verdade.
O discurso jurídico sempre visa a adesão do interlocutor (ASENSI, 2006, p. 8), justamente pelo fato de servir a um contexto que se coloca como exclusivo e excludente. Um ponto de vista sempre será a vista de um determinado ponto. O discurso sempre terá um lócus no qual se firma, determinado seja econômico seja politicamente.
Pensar a partir desses “crivos” é uma primeira etapa para que se efetive um estudo, no mínimo não ingênuo. O Direito é ferramenta e como tal deve ser pensado, sua estrutura se adequa a um modelo de significação complexa, como o é a sociedade.
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REFERÊNCIAS
ASENSI, Felipe Dutra. Direito e sociologia segundo o pensamento de Michel Foucault. Boletim Jurídico. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1142. Acesso em: 20 de maio de 2012.
FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. 2. Ed.- São Paulo: Saraiva, 2012.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999
_________________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1987
_________________. Nietzsche, a genealogia e a história. In: MACHADO, Roberto (org.). Microfísica do poder. São Paulo: Editora Graal, 2004
_________________. Nietzsche, Freud, Marx. In: MOTTA, Manoel Barros da (org.). Michel Foucault: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000
________________. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 29ª edição. Editora Vozes. Petrópolis, 2004