O DIREITO AO MEIO AMBIENTE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL: CRÍTICA À DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL ATRAVÉS DA PEC Nº 341/2009[1]

 Alessandra de Jesus Diniz Lemos

Tereza Lisieux Gomes Martins[2] 

Sumário: Introdução. 1 A ecologização da constituição. 1.1 Questão ambiental: do anonimato à crise na sociedade de risco. 1.2 Ecologização do texto constitucional brasileiro: “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. 2 Contornos de fundamentalidade no direito ao meio ambiente: um direito de terceira geração. 3 Crítica à PEC nº 341/2009. Conclusão. Referências. 

RESUMO

O presente artigo propõe um exame crítico sobre a PEC nº. 341/2009 no que concerne, especificamente, à desconstitucionalização do Direito Ambiental, engendrada na proposta. Ao estabelecer um liame entre a ecologização do texto constitucional, imperativo emergente de sociedades em contexto de uma (iminente) crise ambiental, e a categorização do “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” como um direito fundamental de terceira geração, expõe-se posicionamento contrário à pretensa reforma à Constituição Federal.

 

PALAVRAS-CHAVE:

Direito Ambiental. Direitos Fundamentais. PEC nº. 341/2009. Inconstitucionalidade.

 

INTRODUÇÃO

Inserido definitivamente na agenda política mundial a partir da Conferência de Estocolmo/1972, o meio ambiente é objeto de discussões que ultrapassam os contornos políticos perfazendo essencialmente o âmbito econômico e jurídico dos Estados contemporâneos, cenário que, por conseguinte, demanda a estabilização e a ordenação dessa matéria no seio constitucional: a constitucionalização do ambiente, ou seja, a formação do Estado Constitucional Ecológico.

Obstante, recente proposta de emenda à Constituição Federal de autoria do deputado Regis de Oliveira almeja a desconstitucionalização da matéria ambiental, reduzindo-a a conteúdo legislativo. Pergunta-se: qual a legitimidade de uma reforma constitucional tendente a abolir o direito transgeracional ao meio ambiente, direito fundamental?

Este breve panorama será tratado no texto em três partes: o tópico primário apontará a proficuidade do Direito Ambiental, destacando em breves linhas o trajeto histórico – “do anonimato à crise” e a crescente constitucionalização; na abordagem seguinte, o destaque será para a categorização do direito ao meio ambiente como um direito fundamental, tratando, para tanto, das gerações de direitos; e o derradeiro tópico versará sobre o equivoco da PEC n. 341/2009 em excluir a proteção constitucional à matéria em foco.

 

1 A ECOLOGIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

O art. 225 da constituição de 1988 assegura: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A transcrição do artigo único do Capítulo IV da Ordem Social da Constituição Federal oferece categorias suficientes para subsidiar uma breve descrição dos principais elementos do Direito Ambiental e de sua inserção nos textos constitucionais.

Dessa proposição normativa é possível depreender a preocupação com um bem jurídico de natureza difusa, a solidariedade transgeracional, a relação do bem ambiental com a vida e a dignidade humana e os princípios sobre os quais se fincam os pilares da matéria jurídico-ambiental, elevada à máxima juridicização, ou seja, à ordem de matéria constitucional, a partir do desvendamento de uma crise.

Como se há verificar, gradativamente as questões ambientais passam “do anonimato à crise”.

1.1 Questão ambiental: do anonimato à crise[3] na sociedade de risco

Expressão cunhada por Ulrich Beck, a sociedade de risco pode ser definida como “uma fase do desenvolvimento da sociedade moderna onde os riscos sociais, políticos, ecológicos e individuais criados pela ocasião do momento de inovação tecnológica escapam das instituições de controle e proteção da sociedade industrial”[4] constituiu um marco na concepção de Direito Ambiental.

Oportuno se torna dizer que tal posição teórica, cuja finalidade consiste em aclarar os riscos de certezas científicas provisórias, que constantemente desmontam-se diante de manifestações naturais – à exemplo de graves crises de perda de biodiversidade, e por conseqüência, escassez de matéria prima –, viabilizou a elevação da matéria ambiental ao nível global, suplantando o “anonimato”.

Formatou-se a partir de um conjuntura de tensão ecológica – “crise que é multifacetada e global, com riscos ambientais de toda ordem e natureza”[5] – o bem ambiental, como bem jurídico de natureza difusa, afeto à toda coletividade, à todas as gerações, à todas as nações.

Assevera BENJAMIN, a quem se atribui o termo “ecologização da constituição”, ao discorrer sobre a insuficiência de Estados fundados apenas em prestações negativas e/ou positivas, que “além de ameaças à liberdade física e política, as pessoas comuns se preocupam com receios de outra natureza e grandeza, típicos daquilo que se vem denominando sociedade de risco”[6].

Nesta seara, a Conferência de Estocolmo em 1972 demarcou precisamente essa virada ao apontar cogentes padrões ambientais nas sociedades modernas, asseverando que a defesa e o melhoramento do meio ambiente humano para as gerações presentes e futuras se converteu na meta imperiosa da humanidade, que se deve perseguir, ao mesmo tempo em que se mantém as metas fundamentais já estabelecidas, da paz e do desenvolvimento econômico e social em todo o mundo, e em conformidade com elas.[7]

 Este ínterim de consolidação de um sistema de proteção ao meio ambiente resultou no processo de constitucionalização da matéria, que, no Brasil, fora inaugurado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ao recepcionar integralmente o conteúdo normativo da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.

1.2  Ecologização do texto constitucional brasileiro: “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”

Expõe BENJAMIN que a partir de estudo comparado alguns elementos são comuns às Constituições ecológicas, dentre os quais destacam-se: a compreensão sistêmica do meio ambiente, superando o paradigma individualista e tornando-o bem jurídico afeto à sujeitos indetermináveis, à coletividade; o compromisso ético em conservar os recursos naturais de maneira a garantir a existência futura das espécies, inclusive do homem: “o intuito de assegurar no amanhã um planeta em que se mantenham e se apliquem, quantitativamente e qualitativamente, as condições que proporcionam a vida em todas as formas”[8].

Este paradigma de solidariedade transgeracional está ressaltado no art. 225, da Constituição Federal, e a doutrina autorizada assegura que o bem jurídico-ambiental é elevado ao patamar de direito fundamental, posto que a excelência pela qualidade de vida do ambiente ecológico é imanente a outros direitos humanos aclamados pelo Constituinte, como o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.

2  CONTORNOS DE FUNDAMENTALIDADE NO DIREITO AO MEIO AMBIENTE: UM DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO

Empós as noções preliminares dispostas no item anterior, indiscutível é a crescente importância que o meio ambiente, como bem de uso comum do povo, incluindo aqui as gerações presentes e futuras, tem ganhado ao longo dos anos, especialmente no que tange à sua especial característica de direito fundamental, indispensável, pois, à pessoa humana, assegurando a esta uma existência digna, livre e igual.

A existência de direitos inerentes à condição humana não é fruto de um pensamento moderno, mas se faz presente desde os tempos antigos, quando então era possível averiguar a presença de fundamentos diversos[9] para a sua concepção.

No que se refere a tais direitos, muito se tem discutido, especialmente no que concerne à sua denominação e conceito. A constatação mais corrente, como a de José Afonso da Silva, é a de uma acentuada imprecisão, dada a polissemia empregada. Para esse autor, a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se empregarem várias expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem[10].

Sob outro enfoque, poder-se-ia dizer, ainda, que a implementação de direitos fundamentais do homem está associada também à variação de conceitos elaborados ao longo dos tempos sobre a compreensão do que viria a ser a pessoa humana.[11]

Os direitos fundamentais podem ser identificados sob diferentes aspectos: individuais, sociais, coletivos, etc, o que culminou na sua classificação doutrinária, entre outros critérios, em gerações de direitos ou, mais recentemente, para alguns constitucionalistas, sob o enfoque de dimensões dos direitos fundamentais.

Os de primeira geração, direitos individuais, concebidos como aqueles inerentes ao homem e oponíveis ao Estado, ganharam relevância no final do século XVIII, após a Revolução Francesa, com as declarações de direito na França e nos Estados Unidos[12]. Tais direitos, civis e políticos, englobam as liberdades clássicas, negativas e formais, onde o princípio da liberdade ganha relevância. Sob a ótica de tais direitos é possível identificar elementos relacionados ou formadores da personalidade humana, como a vida, a intimidade, a segurança pessoal etc[13].

Seguindo o contexto histórico da época e enaltecendo o princípio da igualdade, quando então se busca a igualdade material como condição de liberdade, apresentam-se os direitos sociais como sendo os de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), onde é possível se identificar as liberdades positivas, reais e concretas e, dessa forma, uma concepção transpersonalista dos direitos fundamentais[14].

Os direitos de terceira geração, por sua vez, atribuindo ao Estado a proteção de interesses coletivos, refletem a idéia de direitos que “mesmo utilizados por todos, não lhes pertence, pois nunca os terão por completo, sendo permitido, no máximo, assumir-lhes a gestão até o limite legal”[15]. Nesse sentido, alicerçados sobre o princípio da solidariedade, os direitos de terceira geração “constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade”[16].

É neste escopo de direitos de titularidade coletiva e interesses difusos que está inserido o meio ambiente, como um bem coletivo e indispensável à vida humana, que não pertence a uma só pessoa, mas a uma coletividade, sendo por isso um direito transindividual.

Sob essa perspectiva de atribuir ao meio ambiente a característica de direito fundamental, Benjamin[17] destaca que “os mais recentes modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao nível não de um direito qualquer, mas de um direito fundamental [...]”, evidenciando sua característica de direito de maior dimensão[18].

Convém ponderar, portanto, que como direito fundamental, o direito a um “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e, por conseguinte, a defesa e a proteção ambiental, arroladas no art. 225 da Constituição Federal brasileira, deixam de ter menor valor no ordenamento jurídico em comparação às leis infraconstitucionais.

3   CRÍTICA À PEC Nº 341/2009

A proposta de emenda à Constituição, um dos objetos dessa análise, é justificada pelo proponente em argumentos como o que segue: “o que estamos analisando é o retorno à pureza do conteúdo constitucional, evitando-se a existência das constituições formais, onde cabe toda e qualquer matéria por mais irrelevante que seja”.

Não olvidar-se após as análises que antecedem que a disposição de matéria ambiental no seio constitucional não represente “qualquer matéria, por mais irrelevante que seja”, mas a proteção de um direito fundamental sob a égide da supremacia constitucional.

Analítica por natureza, a Constituição brasileira não deve estar sujeita a excessos do poder constituinte reformador, como o que se propõe, sendo imperiosa a salvaguarda de cláusulas pétreas, articuladas no art. 60 da Constituição Federal, sob pena de deturpar a força normativa do poder constituinte originário, único legitimado a operar rompimentos radicais à unidade política refletida no texto constitucional.

Tenha presente que é defesa proposta de emenda tendente à abolir, dentre outros objetos, os direitos e garantias individuais, considera-se indubitável que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem essencial à sadia qualidade de vida, constitui meio inafastável de concretização do direito individual à vida[19], pois não há falar-se em existência humana exterior ao meio ambiente.

Ao ensejo de conclusão deste item, cumpre ressaltar que o direito ao meio ambiente, direito fundamental de natureza solidarista, está intrinsecamente relacionado aos direitos e garantias individuais - que, por herança de um paradigma civilista, ainda são os únicos formalmente protegidos por cláusula pétrea – devendo figurar na ordem constitucional como matéria implicitamente protegida de reforma.

CONCLUSÃO

Na atual conjuntura político-administrativa em que se encontra o Brasil, necessário se faz a constitucionalização de direitos que garantam um mínimo de dignidade humana à nação brasileira. A flexibilização de direitos fundamentais, como aquele pertinente ao meio ambiente, configura-se como um perigo à noção de um Estado Democrático de Direito e um atentado ao Estado Constitucional Ecológico.

 

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Antonio Herman. Contitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 57-130.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 15. ed., rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 692.

LEITE, José Rubens Morato, AYALA, Patryck de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 11-47.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 17. ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MORAES, Luís Carlos Silva de. Curso de Direito Ambiental. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

STF – Pleno – MS nº 22.164/SP – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206.

 


[1] Trabalho apresentado às disciplinas Direito Constitucional e Direito Ambiental, em 2009.2.

 [2] Acadêmicas do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

 [3] Título de aula ministrada pela Profª. MSc. Thaís Viegas na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco em julho de 2009.

 [4] LEITE, José Rubens Morato, AYALA, Patryck de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 12.

 [5] BENJAMIN, Antonio Herman. Contitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 60.

 [6] BENJAMIN, Antonio Herman. Op. cit., p. 58.

 [7] Declaração de Estocolmo.

 [8] BENJAMIN, Antonio Herman. Op. cit., p. 66.

[9] Por não ser o foco deste trabalho, uma abordagem sobre teorias desenvolvidas, a fim de justificar e esclarecer o fundamento dos direitos humanos, pode ser encontrada em MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

 [10] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 175.

 [11] Sobre esse enfoque ver COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

 12] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 15. ed., rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 688.

 [13] MORAES, Luís Carlos Silva de. Curso de Direito Ambiental. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 15

 [14] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Op. cit., p. 692.

 [15] MORAES, Luís Carlos Silva de. Op. cit., p. 15

 [16] STF – Pleno – MS nº 22.164/SP – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206.

 [17] BENAJAMIN, Antônio Herman. Op. cit., p. 73.

 [18] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 17. ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 127.

[19] Haja visto não constituir foco desta analise esgotar o tema “Direitos e garantias individuais”, recomenda-se consultar SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.