Faculdade de Direito

  

O CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

 

Antônio Dhiêgo Carneiro Martins¹

Fernanda Ribeiro Gildo²

 

Carlos Cesar Martins Filho³

 

 

Sobral – CE

2014

 

 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO…………………...…………...……………........……..1

2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO PLANO CONSTITUCIONAL...........................................................................2

2.1 As gerações de direitos fundamentais........................................3

2.2 Interpretação axiológica aplicada aos direitos fundamentais......4

3 O SEGMENTO RELIGIOSO TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.............6

3.1 Fundamento religioso para a recusa de tratamentos com sangue.............................................................................................6

3.2 O posicionamento e a responsabilidade médica........................8

4 O CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADO AOS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ NA TRANSFUSÃO DE SANGUE...........................................................................................9

4.1 Direito à vida versus liberdade religiosa...................................10

4.2 A hermenêutica constitucional axiológica.................................15

5 CONCLUSÃO..............................................................................17

REFERÊNCIAS...............................................................................20

 

1 INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais procedem de um processo de constitucionalização e são encarados como requisitos básicos para sustento de uma sociedade de direitos e subsistência humana adequada. Tais direitos são indispensáveis na legislação de qualquer estado democrático de direito, pois são preexistentes ao ordenamento jurídico e evoluem conforme os costumes da sociedade, visto que decorrem da própria natureza do homem e que, de certa forma, limita o poder do Estado.

O Estado Democrático de Direito fundamenta-se na liberdade da pessoa humana. Todavia, hodiernamente, tende mais a limitar a atuação do particular que realmente lhe garantir a liberdade individual. Este trabalho busca encontrar solução plausível para a questão da utilização de hemoderivados pelas Testemunhas de Jeová. Estes, com frequência, têm se abrigado no Poder Judiciário a fim de verem resguardados seus direitos à dignidade da pessoa humana e à liberdade religiosa, posto que a prática médica com hemoderivados encontra resistência nesta comunidade em virtude de dogmas religiosos.

As Testemunhas de Jeová representam um seguimento religioso de orientação cristã. Assim identificados, afirmam que suas práticas e doutrinas se baseiam na interpretação literal do conteúdo da Bíblia, razão pela qual são reconhecidos pela intransigência quanto aos seus princípios religiosos. Um dos principais dogmas religiosos das Testemunhas de Jeová é a política de rejeição a sangue e hemoderivados de animais ou humanos, tanto na alimentação quanto em tratamentos médicos, ainda que isso lhes custe a própria vida. A rejeição decorre notadamente do fato de tratarem o sangue como símbolo da vida e encarar-lhe como sagrado.

Tal posicionamento religioso causa imenso desconforto no judiciário brasileiro e na comunidade médica e acadêmica, tendo em vista a recusa dos adeptos da aludida religião em se submeterem ao tratamento médico que envolva contato direto com sangue e seus derivados. A ação ou omissão médica em face da manifestação de vontade de Testemunha de Jeová põe em confronto dispositivos do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940) e dispositivos constitucionais com caráter de preceitos fundamentais, dispostos na Constituição Federal Brasileira de 05 de outubro de 1988.

Expostos sinteticamente os motivos que envolvem esta questão, traçam-se objetivos, de modo a melhor atender os interesses abrangidos e de solucionar problemas que põem em confronto direitos fundamentais em situações específicas. Afinal, é difícil identificar qual direito fundamental se sobressai no caso de tratamentos com hemoderivados em Testemunhas de Jeová. Bem como, questiona-se sob qual situação o profissional de medicina deve ou não realizar o tratamento e, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, como deveria proceder o profissional de medicina.

Isto posto, traça-se como objetivos, de forma geral, analisar o conflito entre direitos fundamentais existentes na Constituição Federal Brasileira de 1988, dentro do referido caso específico, de forma a harmonizá-los para melhor satisfazer os interesses postos em embate, confrontando o posicionamento dos envolvidos, sopesando as divergências sobre o caso.

Buscar, especificamente, a melhor solução da situação de modo a causar o menor prejuízo para os envolvidos, visto que, posto em embate interesses individuais como direitos fundamentais, o que se busca, em derradeira análise, é a interpretação, conforme a Constituição Federal, da disciplina legal dada à liberdade da Testemunha de Jeová em optar pelo tratamento a que se submeterá e sua repercussão na seara penal infraconstitucional.


2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO PLANO CONSTITUCIONAL

Direitos Fundamentais tratam-se de direitos inerentes à pessoa humana, sendo preexistentes ao ordenamento jurídico, visto que desenvolveram-se através dos costumes e da moral da sociedade, decorrendo da própria natureza do homem, tornando-se indispensáveis para garantir isonomia, dignidade e liberdade à toda sociedade.

A conjetura dos direitos fundamentais esbarra na definição de qual teoria se justifica esclarecer o alicerce dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que existem diversas correntes fundamentalistas que buscam justificar a inserção desses direitos no plano constitucional pátrio.

Destacam-se, majoritariamente, o jusnaturalismo e o positivismo como correntes teóricas aplicadas no intuito de explicar fundamentadamente o surgimento e a manutenção dos Direitos Humanos no plano constitucional.

A teoria jusnaturalista como corrente fundamentadora de que os Direitos Humanos emanam da própria natureza humana, ou seja, de uma ordem superior universal, imutável e constante. Por outro lado, a teoria positivista que fundamenta a inserção dos Direitos Humanos no diploma constitucional como a autêntica manifestação da vontade do povo, ou seja, através da elaboração das normas pelos representantes da sociedade.

Ocorre que a introdução dos direitos fundamentais no plano constitucional resulta da fusão dessas duas correntes, tendo em vista que os direitos fundamentais decorrem da positivação das normas que regem a moral e os costumes da sociedade na qual se inserem.

Portanto, compreende-se que os direitos fundamentais implantaram-se no Ordenamento Jurídico brasileiro, em sua maioria na Constituição Federal, como forma de assegurar à sociedade uma gama básica de direitos, de modo a garantir a igualdade entre a população através de prerrogativas básicas de subsistência, vislumbrando a dignidade da pessoa humana.

Não apenas isso, uma vez que os Direitos Fundamentais impõem limites ao poder político, de forma que garante à sociedade o direito de defesa contra os abusos de poder de autoridades, pois partindo do conceito básico de democracia, tem-se que o povo escolhe seus representantes, aos quais são delegados poderes, porém não absolutos.

2.1 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Compete destacar a diferença entre direitos e garantias fundamentais, consistindo-se em direitos fundamentais as normatizações declaratórias que determinam a validade legal aos direitos consagrados e garantias fundamentais como as disposições garantidoras que restringem o poder em defesa do direito. Neste sentido, a lição de Alexandre de Moraes (2002, p. 61):

 

A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito.

Os direitos fundamentais estão dispostos em todo o texto constitucional brasileiro vigente, porém é no Título II, do referido diploma legal, a maior concentração dos dispositivos, os quais se subdividem em cinco capítulos. Todavia, a principal classificação dos aludidos direitos refere-se à divisão em primeira, segunda e terceira gerações, dispondo-os pela ordem histórico-cronológica, ao passo em que receberam reconhecimento constitucional.

Os direitos fundamentais de primeira geração compreendem os direitos e garantias individuais e políticos, apontando o princípio da liberdade como norteador de suas composições, tendo em vista a liberdade do indivíduo perante o poder do Estado.

Já os direitos fundamentais de segunda geração, abrangem os direitos sociais, direitos culturais e direitos econômicos, levando em consideração o princípio da igualdade como garantidor da busca pela dignidade social do homem.

Por fim, o princípio da solidariedade sustenta a ideia dos direitos fundamentais de terceira geração, compreendendo os direitos da solidariedade e fraternidade, apontando a um meio ambiente saudável e equilibrado, proporcionando boa qualidade de vida com progresso e paz.

Há doutrinadores que defendem, ainda, os direitos fundamentais de quarta e quinta geração, os quais compreendem os direitos à democracia, informação e pluralismo político e os direitos de compaixão e amor ao próximo, respectivamente, no entanto há divergência doutrinária sobre a existência dessas gerações de direitos fundamentais, tendo como um dos principais defensores de suas existências o professor Paulo Bonavides.

Independentemente da classificação ou distribuição dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, mister atentar que a importância destes está diretamente relacionada à garantia de não interferência do Estado na esfera individual e à conservação da dignidade humana como bem maior de uma sociedade.

Conclui-se, portanto, que o fato de elevar os direitos fundamentais ao status constitucional representa, além da materialização dos Direito Humanos, a positivação desses direitos, garantindo ao indivíduo a proteção frente ao poder do Estado, valendo-se do Poder Judiciário para exigir sua tutela visando a concretização da democracia.

2.2 INTERPRETAÇÃO AXIOLÓGICA APLICADA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Considerando a hermenêutica jurídica, dentre as formas de interpretação das normas no direito brasileiro, a interpretação axiológica tem como objetivo sopesar os valores de cada norma em conflito ante o caso específico, buscando a resolução da situação de forma a melhor atender os interesses envolvidos, é o que explica Bonavides (1998, p.579):

A interpretação dos direitos fundamentais vinculada a um entendimento axiológico tem sido alvo de pesadas críticas, nomeadamente quando se emprega referida a um sistema abstrato de valores. Todavia, segundo Böckenförde, a teoria serve para a solução de problemas que envolvem colisão de direitos fundamentais, mútuo entrelaçamento interferencial desses direitos e determinação de seus limites.

Os direitos fundamentais, como normas constitucionais de eficácia plena, produzem seus efeitos de forma integral desde sua vigência, afetando todos os brasileiros e os que estiverem no território nacional, sobrepondo-se a qualquer norma que atente àquilo que é assegurado pelo direito fundamental, como forma de proteger o indivíduo de qualquer tentativa de usurpação no que lhe é necessário para manutenção de sua dignidade.

Na aplicação da interpretação axiológica aos direitos fundamentais, é necessário que se observe o indivíduo sobre o qual recai o efeito da interpretação, ou seja, o resultado que será gerado pela sobreposição de um direito fundamental em conflito com outro direito fundamental, levando-se em consideração os valores inerentes ao sujeito destinatário desses efeitos, estabelecendo-se um liame argumentativo que justifique melhor aplicação para aquele indivíduo. Neste sentido, Bonavides (1998, p. 577):

Em sua essência, o novo conceito de direito fundamental define o status material do membro da comunidade; nesse status se incorporam valores de natureza espiritual, que exigem do jurista uma posição interpretativa distinta daquela usualmente professada pelas escolas do positivismo.

Portanto, a interpretação de valores depende da conveniência do julgador, ao analisar profundamente a situação de cada caso concreto. O valor não representa apenas as diretrizes política e ética da sociedade como indicador valorativo, mas o íntimo de cada indivíduo, levando em consideração, dentre outros, sua crença, suas finalidades, o meio social no qual está inserido, para que, na decretação da decisão, alcance o objetivo de assegurar ao sujeito a possibilidade de manter sua dignidade dentro dos limites sociais e morais em que se fundamenta.


3 O SEGMENTO RELIGIOSO TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

As Testemunhas de Jeová são um seguimento religioso de orientação Cristã. Assim identificados, afirmam que suas práticas e doutrinas se baseiam na interpretação literal do conteúdo da Bíblia, razão pela qual são reconhecidos por terem uma posição intransigente acerca dos seus princípios religiosos.

No Brasil, o início da organização deste seguimento religioso data de meados de 1920, constituído por oito jovens marinheiros brasileiros que formavam reuniões em que, cada vez, atraía mais adeptos.

Em 1922, através da entidade central das Testemunhas de Jeová, a Sociedade enviou pela primeira vez um representante ao Brasil, visita esta que deu causa à primeira reunião pública dos Testemunhas de Jeová neste país, realizada no estado do Rio de Janeiro.

3.1 FUNDAMENTO RELIGIOSO PARA A RECUSA DE TRATAMENTOS COM SANGUE

As Testemunhas de Jeová têm como fundamento religioso a interpretação literal da Bíblia Sagrada, tornando-os persistentes no cumprimento à risca dos ensinamentos bíblicos e positivistas ao extremo em relação aos seus dogmas religiosos.

Um dos principais dogmas religiosos das Testemunhas de Jeová é a política de rejeição de sangue e hemoderivados de animais ou humanos, tanto na alimentação quanto em tratamentos médicos, mesmo que a consequência desta recusa lhes custe a própria vida, notadamente por tratarem o sangue como símbolo da vida e encarar-lhe como sagrado.

Referido dogma religioso tem esteio na passagem bíblica em que Paulo, Tiago e Pedro concluíram acerca do comportamento imposto ao cristão oriundos do judaísmo, disposto em Atos (15, 28-29):

Pois, pareceu bem ao espírito santo e a nós mesmos não vos acrescentar nenhum fardo adicional, exceto as seguintes coisas necessárias: de persistirdes em abster-vos de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação. Se vos guardardes cuidadosamente destas coisas, prosperareis. Boa saúde para vós!

Com isso, tal posicionamento religioso causa imenso desconforto no judiciário brasileiro e na comunidade médica e acadêmica, tendo em vista a recusa dos adeptos da aludida religião em se submeter a tratamento médico que envolva contato direto com sangue e seus derivados. A ação ou omissão médica em face da manifestação de vontade da Testemunha de Jeová põe em confronto dispositivos constitucionais com caráter de preceitos fundamentais dispostos na Constituição Federal brasileira de 1988.

É mister conceber que atribuir a ideia de suicídio aos casos de recusa de transfusões de sangue é fruto de uma confusão. Ao analisarmos o verdadeiro animus que impulsiona a recusa ao tratamento através da transfusão sanguínea ou com manuseio de hemoderivados, concluímos que a Testemunha de Jeová pretende dar sequência à vida, porém, através de um meio que não usurpe seus princípios religiosos. O Testemunha de Jeová não deseja sua morte, o que se pretende alcançar é uma alternativa médica e jurídica que não usurpe sua liberdade religiosa.

Para os seguidores da Religião, o contato com sangue ou hemoderivados humanos, ainda que sejam seus, ou de animais, representa contaminação da qual jamais poderão se purificar. De acordo com suas crenças, tal violação os torna impuros e, por conseguinte, réus de inferno, não merecedores de adentrarem em seu paraíso. Não se questiona aqui a validade ou o desacerto de tal dogma. Não cabe ao Estado fazer julgamento de preceitos religiosos, apenas aceitá-los, respeitá-los e protegê-los. Como forma de consubstanciar o entendimento, a seguir a lição de Luís Roberto Barroso (2010, on line):

A proteção seletiva a determinados dogmas religiosos equivaleria à negação da liberdade de religião e do pluralismo, violando a exigência de que os diferentes grupos sociais sejam tratados com igual consideração e respeito. A única avaliação legítima de que se pode cogitar diz respeito à seriedade do fundamento religioso ou do que pode ser razoavelmente qualificado como religião. Mas isso não está em questão no que diz respeito às testemunhas de Jeová, confissão tradicional que existe desde o final do século XIX e conta, segundo suas próprias informações, com 6 milhões de adeptos em mais de 230 países. Vale o registro de que, na linha da conclusão que se acaba de enunciar, a recusa de tratamento pelas testemunhas de Jeová é aceita em diversos países, dentre os quais a Itália, a Espanha, os EUA e o Canadá. Além disso, tal possibilidade foi incorporada pelo Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue, adotado pela OMS em 2000, que dispõe: ‘o paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento’.

Portanto, a recepção de sangue por Testemunha de Jeová, seja por tratamento médico ou pela alimentação, representa a indignidade não apenas no seu íntimo, mas perante toda a Sociedade de Testemunhas de Jeová, representando um dos maiores pecados que pode ser cometido por aqueles que professam esta fé.

3.2 O POSICIONAMENTO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA

À luz dos breves fatos narrados sobre as liturgias e credos das Testemunhas de Jeová, busca-se, em contrapeso, uma alternativa à conduta médica de modo a evitar, independentemente da decisão sobre a conduta utilizada, a responsabilidade civil e a tipificação penal quando da ocasião da Testemunha de Jeová recusar-se a se submeter a procedimento médico que viole liberdade e fundamento religioso.

Entretanto, o médico tem o dever de prestar socorro e, agindo de tal forma, ou seja, usurpando o dogma religioso, estará passível a procedimento infracional por conta de sua conduta incorrendo na responsabilidade civil. Caso opte por respeitar o direito à liberdade religiosa, não prestando o atendimento mais eficiente e, por consequência, incorrendo em algum dano à vida, poderá incidir em tipos penais.

Note-se que as Testemunhas de Jeová não desejam a morte, em verdade eles desejam ser tratados por todos os meios ao alcance da medicina, desde que isso não viole sua liberdade religiosa. Há que se considerar que o evento morte, apesar de representar o fim da pessoa e, por conseguinte, o fim dos direitos de personalidade, encontra contraponto quando lhe é assegurado o respeito à honra e à boa fama.

Neste tocante, ressaltamos o posicionamento da morte digna, isto é: uma morte que não viole nem os direitos de personalidade nem a dignidade da pessoa humana. Assim, caso a recusa em se submeter a tratamento específico, em razão de crença religiosa, resulte no evento morte, tudo ao alcance deverá ser feito para que se preserve a morte digna, ainda que isso signifique permitir a morte simplesmente.

Com isso, a comunidade médica tem pressionado o Poder Judiciário para que este se posicione de forma unificada, tendo em vista que a omissão médica é conduta penal tipificada, e a ação acarreta dano civil de âmbito constitucional. A situação, além de gerar desconforto, tem deixado médicos e juízes inertes e receosos quanto a que decisão tomar, e o número de processos cíveis e criminais decorrentes deste fato tem se avolumado nas prateleiras das secretarias por todo o País, por ausência de dispositivo ou entendimento que abalize a conduta a ser tomada, o que tem gerado divergência jurisprudencial.

 


4 O CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADO AOS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ NA TRANSFUSÃO DE SANGUE

Inicialmente, não se está defendendo a ausência ou paralisação do tratamento, o que se espera é uma liberdade de escolha de tratamento, de modo a não ferir, em última instância, a dignidade da pessoa humana. Conforme exposto, o médico deverá sempre empregar os demais e quantos forem os tratamentos alternativos.

Ademais, não há nenhuma publicação oficial ou documento médico que comprove que a transfusão de sangue seja o único e exclusivo meio capaz de restabelecer as funções vitais do paciente, desta feita a escolha por tratamento alternativo é medica e legalmente possível, além de excluir qualquer conduta penal típica.

A violação dos preceitos fundamentais invocados decorre da divergência jurisprudencial pátria acerca de como deve proceder o profissional de medicina que se deparar com esse tipo de situação. Tendo em vista a responsabilidade civil ou penal que estes profissionais poderão incorrer, em casos específicos, quando diante da liberdade de pacientes Testemunhas de Jeová, que, em razão de crença religiosa, preferem evitar o tratamento envolvendo hemoderivados, o que eventualmente pode culminar no evento morte ou ainda lesão corporal de natureza grave.

Revolve-se também a questão no tocante a terceiros interessados na proteção da vida de outrem através de transfusão sanguínea ou de tratamentos que envolvam o manuseio de hemoderivados, com o objetivo de proporcionar a continuidade à vida, direito fundamental protegido constitucionalmente, independente de orientação religiosa.

O embate de direitos fundamentais constitucionais criado na situação proposta envolve ainda o direito à liberdade religiosa, disposto no artigo 5º, VI da CFB/88 e o direito à vida deparado no caput do mesmo artigo 5º, CFB/88, assegurado a todos os brasileiros natos ou naturalizado e ainda àqueles que estejam em território nacional.

Observa-se, a dignidade da pessoa humana, de essencial importância, como fundamento da República Federativa do Brasil, disposta no artigo 1º, III, da CFB/88, servindo como balizador, intervindo na interpretação axiológica nos casos pertinentes na presente questão.

Assim, a consagração constitucional da inviolabilidade de crença religiosa assegura a liberdade de culto e liturgias, que, no caso em análise, refere-se ao dogma religioso das Testemunhas de Jeová em recusar sangue. Portanto, usurpar a vontade da Testemunha de Jeová em recusar sangue, trata-se de violação à liberdade de crença religiosa e, por consequência, à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Alexandre de Moraes (2002, p. 73):

A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e a própria diversidade espiritual.

Note-se que a liberdade de crença religiosa é de cunho personalíssimo. Assim, no caso do paciente capaz, mas inconsciente temporariamente por qualquer razão, não poderá ser dada à família ou a quem quer que seja o poder de decisão sobre o tratamento. O mesmo deverá se aplicar àqueles com curador ou tutor. Em todas essas possibilidades o médico deverá sempre empregar todos os recursos possíveis, incluindo o tratamento com hemoderivados.

4.1 DIREITO À VIDA VERSUS LIBERDADE DE RELIGIOSA

É importante que se analise as decisões e os reflexos jurídicos acerca do conflito entre direitos fundamentais, em específico, o direito à vida e à liberdade religiosa.

A prioridade dos direitos fundamentais deve nortear a atuação do Poder Público no Estado Democrático de Direito, visando a resguardar e implementar referidos direitos. Juntamente com os direitos fundamentais há o direito à dignidade humana, o qual também é elemento indispensável do Estado Democrático de Direito.

Acerca do tema, Galindo (2006, p. 196-197) leciona o seguinte:

A norma constitucional em questão é bastante ampla em seu alcance e necessariamente precisa passar por um processo de concretização constitucional para obter eficácia. A ideia da inviolabilidade do direito à vida influencia o próprio legislador a estabelecer normas infraconstitucionais ora de proteção a esse direito, ora de punição às pessoas que atentam contra a vida, como o caso das leis penais que punem, por exemplo, a prática do homicídio, inibindo socialmente o comportamento delituoso.

O direito à vida é pressuposto vital para a utilização dos demais direitos fundamentais, pois abrange não somente a existência biológica, corporal e física, como também a consciência religiosa e moral.

É de fundamental importância estabelecer a relação existente entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais em todas as suas dimensões, objetivando a garantia da ordem jurídica, da liberdade, do desenvolvimento da personalidade humana e, notadamente, do direito à vida, não havendo como dissociá-los.

Acerca desse assunto temos no art. 5º, VI, da CF/88, dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Com isso observa-se que o respeito à liberdade religiosa, considerado um direito fundamental, deve ser analisado juntamente com o direito à vida, pois ambos são interdependentes e necessários para a concretização da dignidade humana.

Portanto o direito à liberdade religiosa corresponde à interdisciplinaridade que compõe o conjunto dos elementos integrantes para a materialização da vida digna.

Ambos os direitos foram alçados ao plano constitucional no art. 5° caput que dispõe sobre a inviolabilidade do direito à vida e à liberdade em sentido amplo. O inciso VI do mesmo dispositivo reserva a mesma proteção, especificamente, à liberdade religiosa, consubstanciada na consciência, na crença e no culto. Desta forma, não há, em tese, hierarquia entre os institutos. Todos eles são invioláveis e, como direitos da personalidade, indisponíveis. Isso significa dizer que é vedado a terceiros, sob as penalidades legais, violar direito alheio nesse campo, assim como também ao próprio titular do direito dispor dos mesmos, cabendo ao Estado a sua tutela ainda que contrária a vontade do titular. Por isso, não há que se falar em liberdade de matar, sendo certo que o homicídio, ou a mera tentativa, já sujeitará o infrator à correspondente responsabilização. Igualmente, o Estado brasileiro não permite a prática do suicídio, aborto ou eutanásia.

Temos então, que em muitos momentos o direito à vida e o direito à liberdade religiosa entram em conflito, ou seja, deve-se partir da construção de uma técnica ponderativa, na qual os princípios são utilizados como mandamentos de otimização, que, no dizer de Nery Júnior (2009, p. 16) “são normas que ordenam que algo seja realizado em medida tão alta quanto possível relativamente às possibilidades fáticas e jurídicas.”

Nas normas jurídicas fica implícito que os direitos fundamentais podem entrar em colisão de forma ampla ou restrita e essa colisão pode ocorrer “[...] quando o exercício ou realização de um direito fundamental de um titular de direitos fundamentais tem repercussões negativas sobre direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais [...].” (NERY JÚNIOR, 2009, p. 17).

A questão que envolve a recusa por parte das testemunhas de Jeová às transfusões de sangue remete, em primeiro instante, a um caso típico de conflito entre direitos fundamentais: de um lado o direito à vida e do outro a liberdade religiosa. Assim, quando por meio de decisões judiciais obriga-se uma Testemunha de Jeová a submeter-se à transfusão sanguínea, percebe-se nitidamente o conflito entre o direito à vida e à liberdade religiosa, ou seja, os dois direitos não podem ser aplicados, ao mesmo tempo, para a solução de um mesmo caso concreto.

Esta polêmica que envolve casos levados ao Poder Judiciário quanto à recusa da realização de transfusão de sangue caracteriza a colisão de direitos fundamentais em sentido amplo, isso porque a preservação do bem jurídico vida e saúde deve ser considerado, haja vista o entendimento de que o direito fundamental da liberdade religiosa não pode sobrepor-se ao direito à vida, sob pena de violar a dignidade da pessoa humana.

Como, então, equilibrar esses direitos conflitantes sem o total sacrifício de um deles? O direito à vida pode ser renunciado em detrimento da liberdade religiosa?

A respeito do tema, leciona Soriano (2002, p. 120):

Se a resposta for fundamentada, simplesmente, na irrenunciabilidade dos direitos humanos, não se chega à solução alguma, posto que tais direitos são igualmente irrenunciáveis. A escolha de um implica, obrigatoriamente, na renúncia do outro. Não há como harmonizar ou conciliar os dois direitos conflitantes sem o sacrifício integral de um dos direitos.

Temos que vida é bem jurídico preponderante, sendo que deve ser protegida em detrimento da liberdade religiosa e autorizada a transfusão sanguínea nos casos em que for recomendada. O direito à liberdade religiosa não é ilimitado e deve sofrer restrições quando estiver ferindo preceitos de ordem pública, ou seja, quando houver o sacrifício desnecessário de vidas humanas.

Ainda neste rumo, Soriano (2002, p. 122) afirma que:

Assim, havendo recusa do tratamento por parte do paciente ou de seu representante legal, cada caso, em particular, poderá ser solucionado a critério do médico, nas situações de emergência, ou através da tutela jurisdicional, quando houver a necessidade de se recorrer a esse meio de resolução de conflitos. Nesse último caso, o médico pode obter uma liminar, autorizando o tratamento.

Nesse sentido, a resolução do conflito ocorrerá por meio do Poder Judiciário, o qual poderá suprir o consentimento do paciente, autorizando o tratamento de transfusão sanguínea.

Evidencia-se que mesmo a liberdade religiosa sendo em sua essência inviolável haverá interferência judicial para a proteção do direito à vida, o qual está na iminência de ser suprimido. O médico possui, inclusive, o dever de realizar procedimentos que garantam a vida e a saúde, não podendo entrar no mérito da colisão dos direitos fundamentais, sendo responsável, naquele momento, pela integridade física do paciente, sob pena de ser responsabilizado civil e penalmente.

Portanto, a solução entre a colisão direito à vida e direito à liberdade de crença há de ser resolvida de modo a não fulminar absolutamente de um direito prevalecer sobre o outro, mas sim de modo a ambos conviverem em equilíbrio, sendo efetivamente aplicados, ainda que de forma mitigada.

E novamente enfatizamos que o direito à vida é indisponível, por isso mesmo havendo grave risco a este direito, o médico ao intervir, em caso de transfusão de sangue em Testemunha de Jeová, não deve ser responsabilizado civilmente, uma vez que ninguém pode dispor da própria vida.

Nesse sentido, lecionam Gagliano e Pamplona Filho (2008, p. 214-217):

Temos plena convicção de que, no caso da realização de transfusão de sangue em pacientes que não aceitam esse tratamento, o direito à vida se sobrepõe ao direito à liberdade religiosa, uma vez que a vida é o pressuposto da aquisição de todos os outros direitos. Além disso, como já colocado, a manutenção da vida é interesse da sociedade e não só do indivíduo, ou seja, mesmo que, intimamente, por força de seu fervor, ele se sinta violado pela transfusão feita, o interesse social na manutenção de sua vida justificaria a conduta cerceadora de sua opção religiosa.

Portanto, a preservação das convicções religiosas não pode sobrepor-se ao bem jurídico maior que é a vida, pois mesmo sendo a liberdade religiosa um direito fundamental, não se acaba em si mesmo, pois faz parte dos elementos que compõem a vida com dignidade.

Eis que uma decisão nesse sentido prolatada pelo Excelentíssimo Juiz de Direito Guilherme Eugênio Mafassioli Corrêanesse do Tribunal de justiça do RS (Processo n. 016/1.11.0005702-0, 2011):

[...] Em sede de cognição sumária, dada a urgência da situação, tenho que merece acolhimento a pretensão deduzida na inicial. Com efeito, a plausibilidade do direito alegado está presente no atestado médico juntado na fl. 09, indicando que o quadro clínico da paciente é de politrauma grave, com necessidade de cirurgia ortopédica para correção das fraturas. Entretanto, a paciente encontra-se sem condições clínicas de realização do procedimento por quadro de anemia grave, demandando a transfusão de sangue. O conflito de direitos fundamentais presente no caso é manifesto, pois de um lado o direito à vida e de outro à liberdade religiosa. Contudo, sobreleva-se o primeiro, uma vez que inviolável, nos termos do que dispõe o art. 5º, caput, da Constituição Federal. Embora respeitado o direito à liberdade de crença da paciente, não há como justificar a negativa do tratamento proposto, mormente porque implica na (única) possibilidade de sobrevivência, inclusive para que se minimizem eventuais danos futuros que possam decorrer do acidente sofrido. Não se desprezam os possíveis reflexos futuros da medida ora deferida na vida da paciente. No entanto, não se pode assegurar que não se tornem mutáveis com o transcurso do tempo. Também por isso, entendo que no confronto entre os direitos em discussão, prepondera a vida de Janete. Sobre o ponto, colaciono excerto do acórdão nº 70037121639, prolatado pelo E. Des. Angelo Maraninchi Giannakos, que adoto como razões de decidir: Frisa-se que a vida por ser direito fundamental maior, garantido constitucionalmente sua inviolabilidade e indisponibilidade pelo ordenamento jurídico e tutelado com primazia pelo Estado, é elemento constitutivo indeclinável ao exercício dos demais direitos inerentes à pessoa humana, cabendo ao Estado o dever positivo de agir em relação à preservação à vida. Em vista disso, diante da iminência de risco de vida da agravante, mesmo contra sua manifestação expressa em não receber o tratamento necessário e indispensável a sua sobrevivência, a intervenção médica, no caso concreto, se justifica e não incorre em ofensa ao princípio da dignidade humana, pois há de ponderar com cautela os direitos contrapostos. De outro lado, o receio de dano irreparável ou de difícil reparação consiste no risco de morte existente caso não realizado o procedimento, inclusive com utilização da transfusão sanguínea. Não havendo notícia nos autos sobre a possibilidade de utilização de outros meios hábeis, no momento, para preservação da vida da paciente, o acolhimento da pretensão inicial é impositiva. Isso posto, defiro o pedido feito para o fim de suprir o consentimento de Janete Zanella, autorizando a utilização de todos os meios necessários à manutenção da vida, inclusive a transfusão sanguínea (hemoderivados), em último caso, caso se mostre necessária a medida [...].

Nesse direcionamento, Gagliano e Pamplona Filho (2008, p. 218) ainda reiteram:

[...] o parâmetro a ser tomado é sempre a existência ou não de iminente perigo de vida. No caso de pacientes maiores e capazes, no momento da concessão do consentimento, entendemos que, ausente o perigo de perda da vida, mas, só e somente só, a recomendação do tratamento, o médico não deve ministrá-lo, sob pena de estar constrangendo ilegalmente o paciente. Assim, caso não observe essa determinação, o médico corre o risco de ser responsabilizado civilmente.

[...] Mesmo no caso de pacientes que estejam, temporária ou permanentemente, impossibilitados de manifestar sua vontade, no que se incluem os pacientes menores, por isso incapazes, o médico também tem a obrigação de ministrar o tratamento, até mesmo porque nem sempre é possível obter a anuência do responsável legal.

Por fim notamos que além do iminente perigo de vida, mesmo aqueles pacientes que não podem, momentaneamente, manifestarem sua vontade, o médico tem o dever de intervir, sem, no entanto, levar em consideração o fenômeno religioso.

4.2 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL AXIOLÓGICA

No âmbito jurídico contemporâneo, mais precisamente no campo do Direito Privado, destacam-se os métodos sistemático e teleológico de interpretação da legislação, com o objetivo de aplicar as normas de maneira mais adequada aos casos concretos, observando sempre sua interpretação e finalidade.

Com efeito, mais precisamente em um conflito entre direitos fundamentais, referidos métodos tornam-se insuficientes para aplicação, tendo em vista que a finalidade de um direito fundamental só se completa no caso concreto. É o que entende Bonavides (1998, p. 557):

Com efeito, os métodos tradicionais, embora aplicáveis satisfatoriamente às leis no campo do Direito Privado, são, porém, de todo inadequados e insuficientes para captar o sentido das cláusulas não raro principiais de uma Constituição ou o alcance normativo pluridimensional de um direito fundamental. A Constituição, de natureza, se apresenta, tanto quanto aquele, aberta e indeterminada, contendo cláusulas gerais e principiais, cujo conteúdo só se completa no ato concreto de aplicação em face do problema.

Ocorre que, o método sistemático consiste na forma de interpretação que busca a correlação dos dispositivos normativos de todo um diploma legal, conforme o contexto, devendo-se interpretar referido diploma como um todo. O método teleológico busca atingir a finalidade para qual a norma foi elaborada, superando a literalidade da norma avaliada.

Portanto, os referidos métodos tornam-se inadequados para aplicação no que tange ao conflito entre direitos fundamentais, tendo em vista que, pela natureza hierárquica semelhante, ao aplicar-se os métodos supra aludidos, as normas chegariam à mesma conclusão e o caso não se resolveria.

Diante deste problema, vislumbra-se a necessidade de interpretação em que se meçam os valores dos direitos fundamentais em conflito, de forma a aplicar prioritariamente aquele que melhor satisfaça a finalidade dos sujeitos em questão no caso concreto.

Ressalte-se, aqui, que os direitos fundamentais encontram-se dispostos no mesmo plano hierárquico não se sobrepondo uns aos outros automaticamente, devendo ser respeitado o limite de aplicação de cada um, ainda mais em um conflito que envolva mais de um direito fundamental como embasamento para obtenção de um direito.

Com isso, desenvolveu-se o método hermenêutico de ponderação axiológica de direitos fundamentais, o qual busca sopesar os valores dentro de um caso concreto, buscando o enriquecimento da argumentação jurídica e concretizando a finalidade em que se pauta o direito fundamental sobreposto, de modo a considerar a natureza do problema discutido.

No caso vertente, é perfeitamente aplicável a interpretação axiológica de ponderação de valores, pois constituída a situação proposta, onde há o embate entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, a Testemunha de Jeová almeja a manutenção de sua vida, de forma a manter sua dignidade religiosa de acordo com seus princípios e costumes.


5 CONCLUSÃO 

O que se busca, em derradeira análise, é a interpretação conforme a Constituição da disciplina legal dada à liberdade da Testemunha de Jeová em optar pelo tratamento a que se submeterá e sua repercussão na seara penal infraconstitucional, explicitando que a conduta médica pautada no respeito à liberdade de crença religiosa não tipifica conduta criminosa, em respeito aos preceitos fundamentais, notadamente a dignidade da pessoa humana, excluindo-se assim a ilicitude do ato.

A doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal têm construído o entendimento de que a verificação da subsidiariedade, em cada caso, depende da eficácia de outro meio referido na lei, isto é, de espécie de solução que as outras medidas possíveis na hipótese sejam capazes de produzir.

Como já mencionado alhures, o Poder Judiciário tem dado entendimentos diversos aos casos concretos, o que prejudica a segurança jurídica, vez que médicos e pacientes não têm certeza sobre que posição podem ou devem tomar. Portanto, demanda-se que, no âmbito judicial, seja dada a correta interpretação constitucional para as hipóteses, dirimindo assim a controvérsia, que tem gerado desconforto e insegurança no Poder Judiciário.

Com isso, conclui-se que, na ocasião do maior absolutamente capaz, em gozo de suas faculdades, lúcido e apto a manifestar sua vontade, recomenda-se que sua liberdade de escolha por tratamento médico que não avance sobre sua liberdade de crença religiosa deve ser respeitada, ainda que o tratamento rejeitado seja o único capaz de assegurar-lhe a vida.

Nesta hipótese – mediante livre e expressa manifestação de vontade do paciente maior, capaz e lúcido – o médico deverá respeitar sua liberdade, e não privar-lhe do direito de escolha de tratamento, vez que a contaminação sanguínea lhe fere a liberdade de crença e, por conseguinte, sua dignidade, fundamento maior da República.

Ressalte-se aqui que o médico em momento algum deverá se esquivar de prestar assistência, pois, se assim o fizer, incorrerá em tipos penais, mas deverá tão somente rejeitar o tratamento que usurpe a liberdade religiosa do paciente. Todos os demais meios ao seu alcance deverão ser total e plenamente empregados para salvar-lhe a vida ou assegurar-lhe a saúde.

Note-se que eventualmente o paciente poderá ter sofrido acidente e ter tido sua plena consciência afetada. O médico deverá, antes de rejeitar qualquer tratamento, efetuar o maior número de testes e exames possíveis que possam atestar a lucidez e capacidade do paciente, e dentro de um intervalo de tempo em que ambos os tratamentos ainda se façam plenamente eficazes.

Argumenta-se ainda que, para efeitos de segurança penal e jurídica, e para evitar a hipótese em que o médico tenha interesse na morte do paciente e deixe de lhe aplicar tratamento, alegando sua manifestação de vontade religiosa; o procedimento de rejeição de tratamento somente deverá ocorrer mediante a presença de duas testemunhas que, em termo discorre sobre a situação de fato e, sempre que possível, também deverá se colher a assinatura do paciente, atestando que rejeita determinado tratamento.

Portanto, abordando as hipóteses inicialmente propostas, conclui-se que na ocasião do maior absolutamente capaz, consciente de suas faculdades, lúcido e apto a manifestar sua vontade, recomenda-se que sua liberdade de escolha por tratamento médico que não avance sobre sua liberdade de crença religiosa, a qual deve ser respeitada, ainda que o tratamento rejeitado seja o único capaz de assegurar-lhe a vida.

Nesta hipótese, mediante livre e expressa manifestação de vontade do paciente maior, capaz e lúcido, o médico deverá respeitar sua liberdade e não privar-lhe do direito de escolha de tratamento, vez que a contaminação sanguínea lhe fere a liberdade de crença e, por conseguinte, sua dignidade, fundamento maior da República.

No caso do incapaz, seja ele relativo, absoluto ou por razão temporária, por qualquer dos motivos elencados no Código Civil Brasileiro, não se vislumbra referida proteção à liberdade religiosa. Não possuindo as condições jurídicas de decidir sobre sua vida civil, não incorre sobre ele a responsabilidade da decisão tomada. Com isso, independente do grau de incapacidade do paciente, do tempo e da razão, permanece o entendimento de que a vida é, neste caso, o bem maior a ser protegido, em detrimento da liberdade religiosa.

A liberdade exercida pelo incapaz é limitada, podendo ser ainda maculada, viciada, influenciada, deturpada e completamente absurda. Em verdade, o Estado tem o dever de proteção do incapaz contra ele mesmo, justamente pela ausência total ou parcial de suas faculdades, o que pode torná-lo lesivo para si. Nestes casos, e em virtude justamente dessa ausência de plenitude de consciência, o médico deverá sempre empregar todos os meios possíveis para salvar-lhe a vida ou assegura-lhe a saúde, ainda que isso importe em violação da liberdade religiosa do paciente.

Defendendo-se, portanto, aguerridamente que o incapaz relativo, absoluto ou temporário não tem o discernimento para avaliar e sopesar que a rejeição de determinado tratamento pode resultar em sua morte.


REFERÊNCIAS

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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1991.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

______. A crítica da razão pura. Trad. J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

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MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

 ______. Os 10 anos da Constituição Federal. São Paulo: Atlas, 1999

 NERY JÚNIOR, Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová – como exercício harmônico de direitos fundamentais. 2009 (Parecer Jurídico).

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 5.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

SORIANO, Aldair Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS. Comarca de Ijuí, RS. Processo nº 016/1.11.0005702-0. Ijuí, RS: Vara Adjunta da Direção do Foro 1/1, 2011. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 30 maio 2011.