MEDITAÇÕES NA MADRUGADA

(Em um inverno do passado)

Madrugada. Uma neblina fina, seguida de borrascas de vento, fazem-me levantar a gola da japona e afundar mais na cabeça o gorro de lã.
Em pé, no alto do paredão que serve de barreira na entrada do porto contemplo, na escuridão da noite, a massa escura das revoltas ondas do oceano, que com estrondo batem logo abaixo de mim. Tudo em volta está deserto.
Um pouco além, os vultos escuros e disformes de grandes navios ancorados. Ao longe, as luzes de algumas bóias de sinalização, indicando o caminho para as embarcações. Absorto em meus pensamentos, parece como se estivesse em outra dimensão de tempo e espaço, e subitamente vem-me à lembrança a imagem formada por minha mente, de outros mares, de outras terras distantes e de um homem que à noite costumava sentar-se em um banco de pedra, na Ilha do Diabo. O capitão Dreyfus, vítima de um dos maiores erros judiciais da história da França.
Neste sentido, aqui neste lugar, sinto-me completamente livre, mas ao mesmo tempo, pergunto-me se isso não será apenas uma ilusão, pois a verdadeira liberdade talvez seja interior, segundo Krishnamurti. Exteriormente, creio que somos todos prisioneiros de alguma coisa. Fico ainda um bom tempo parado ali, depois sigo pelas ruas pouco iluminadas da cidade velha, em direção ao centro. Logo adiante, alguns bares ainda abertos. Algumas mulheres da noite, com as cabeças sonolentas sobre as mesas pensando talvez em seus tristes destinos como marginalizadas da vida. Uns poucos transeuntes noctívagos passam apressados escapando do frio, que depois de alguns dias de calor volta agora com redobrada força. Do outro lado da rua, passa um grupo de marinheiros com rasgos asiáticos bastante eufóricos e cantando alto em idioma estranho.
Passando pelo portal simbólico que divide a cidade velha da nova, atravesso a Plaza Independência para refugiar-me do forte vento junto a uma das colunas do edifício que até há pouco servia como Palácio do Governo. Frente a mim, a estátua de Artigas. Do outro lado da praça, o Victoria Plaza e, à minha direita, o monumental Palácio Salvo, envolto na neblina.
Enquanto espero por algum ônibus, minhas meditações continuam: O australiano Morris West diz em um de seus livros: "Quando se viaja por longe e demoradamente, tornamo-nos como os beduínos, os habitantes da areia, que vivem sem embaraços, amando sem perpetuidade, não construindo nada, porque amanhã a areia sepultá-lo-ia. E passado o tempo, as lembranças que nos prendiam ao torrão natal tornam-se vagas e tênues, como uma canção assobiada por um pastor na encosta; apenas ouvida, longo olvidada."
Estou voltando de uma viagem que já dura cerca de dois anos. Esse gosto por conhecer novas lugares e pessoas, creio ter herdado de meu avô, o qual muito jovem ainda, se lançou além dos mares deixando para sempre sua amada Itália para fincar raízes aqui na América do Sul. Ao pensar nisso, vêm-me à lembrança trechos de um verso que um dia li:
"Deve haver em lugar bem distante, / Outro céu, outra terra, outro mar, / Onde a vida não pára e tudo se transforma, / Onde a paz e o amor se consiga encontrar"
Dostoyevski dizia que: "La vida es vida en todas partes, la vida está en nosotros y no en el mundo que nos rodea. Cerca de mi habrá hombres, y serlo para siempre, sea cuales fueren las circunstâncias, no desfallecer, no caer, en esto consiste la vida, el verdadero sentido de la vida."
Tinha suas razões Dostoyevski ao expressar pensamentos de tal profundidade, depois de ter sofrido anos de penúria como prisioneiro das geladas estepes da Rússia. Seus biógrafos diziam que ele só respirava bem na tempestade. Foi numa habitação exígua e gris, privada de alimento, de luz, quando mendigava algum socorro para regressar a sua pátria, quando se encontrava no último grau de pobreza e solidão, que esse grande escritor escreveu a obra que o tornou célebre, "Crime e Castigo". Já Pablo Neruda tinha outra visão, a do poeta, nem por isso menos provida de valores: "Pienso que el hombre debe vivir em su pátria e creo que el desarraigo de los seres humanos es uma frustración que de alguna y outra manera entorpece la claridad del alma." São pontos de vista diferentes, os quais só podem ser compreendidos por quem leu e conhece a existência de cada um desses personagens.
Interrompo minhas divagações quando finalmente passa um ônibus. No seu interior, apenas dois passageiros, lá no fundo, entretidos em uma acalorada discussão sobre os últimos acontecimentos no Chile. Tento concentrar-me na leitura de um pequeno livro de bolso, "Viaje al Oriente", de Hermann Hesse, mas o frio que entra por uma janela emperrada me faz desistir. Fecho os olhos e deixo o tempo passar enquanto escuto a conversa dos dois companheiros de viagem, que continuam tentando "resolver" entre eles a difícil situação que por estes dias atravessa o país irmão, lá em meio à imensa cordilheira dos Andes. O ônibus segue seu percurso atravessando a madrugada.


Geraldo Mastella