Lei Antidrogas e o Porte de droga para uso pessoal: direitos individuais x direitos da coletividade[1]

 

Luciana Sarney A. de Araújo Costa [2]

Maria do Socorro Almeida de Carvalho ³

Sumário: Introdução; 1 Análise objetiva/subjetiva do artigo 28 da Lei 11.343; 2 Interferência do Direito Penal na esfera individual; 2.1 Princípio da Liberdade Individual x Saúde/Segurança Pública; 3 Modelo internacional e a adequação à realidade brasileira; Conclusão; Referências.

                                     

RESUMO

A questão surge ao analisar a Lei 11.343, de 2006, conhecida como Lei Anti-Drogas, no que tange, principalmente, ao seu artigo 28 e parágrafos. Além de fazer uma reflexão inicial sobre os elementos constituintes deste ilícito penal, com foco para o elemento normativo “pequena quantidade”, o que dá margem para a discricionariedade do juiz, será dada ênfase ao conflito de interesses individuais, direitos que tangem o princípio Constitucional da Liberdade, e interesses coletivos, tal como à segurança pública. Em meio às discussões, nas quais serão apresentadas diversas considerações doutrinárias, visto que a jurisprudência ainda é pouco consolidada, será levantado o debate acerca da interferência estatal (na esfera penal) nas escolhas individuais. Por fim, cabe a reflexão se o modelo de legalização do uso de drogas existentes em países como a Holanda, referência mundial no assunto, adéqua-se à realidade brasileira.

Palavras-chave:Lei antidrogas; princípios constitucionais; interferência estatal.

INTRODUÇÃO

A Lei 11.343 de 23 de Agosto de 2006 (Lei Anti-Drogas), em discussão no trabalho, fora promulgada a fim de atender um clamor social por maior rigorosidade quando da aplicação da legislação repressiva do tráfico de drogas. Tal necessidade fora desencadeada, visto que tal ilícito penal sempre andou associado a outros crimes de elevado potencial ofensivo, como homicídio, sequestro, comércio e porte ilegal de armas, roubos e outros crimes bastante violentos. Fato este que se intensificara ainda mais nos últimos tempos. 

Desde o início do século XX o tráfico e o uso de substâncias entorpecentes têm despertado profunda preocupação em todas as nações civilizadas. A predisposição a estados neuróticos e psicóticos e à criminalidade, a aniquilação da vontade, a desagregação da família, a corrupção dos costumes, o abandono dos princípios éticos de convivência social e a desintegração da unidade nacional, são alguns dos efeitos perniciosos da utilização indevida dessas substâncias. Os malefícios causados ao indivíduo e à coletividade pela difusão do consumo de entorpecentes amplamente analisados pela ciência, exigiram a elaboração de planos nacionais e internacionais de combate ao seu uso, em defesa da saúde, dos bons costumes e do bem comum. (OLIVEIRA E CRUZ,1973,p.13)

Além disso, tal Lei, que fora regulamentada pelo Decreto nº 5.912, de 27.09.06 e entrou em vigência em 08 de Outubro de 2006, revogando a Lei 6.368/76 e a Lei 10.409/02, trouxe diversas inovações a respeito do tráfico e consumo de drogas.

Pretensão de se introduzir no Brasil uma sólida política de prevenção ao uso de drogas, de assistência e de reinserção social do usuário: eliminação da pena de prisão ao usuário (ou seja: em relação a quem tem posse de droga para consumo pessoal); rigor punitivo contra traficante e financiador do tráfico, clara distinção entre o traficante “profissional” e o ocasional; louvável clareza na configuração do rito procedimental; inequívoco intuito de que sejam apreendidos, arrecadados e, quando o caso, leiloados os bens e vantagens obtidos com os delitos de drogas. (GOMES,2007,p.07)

Frisa-se que o mais relevante aspecto da Lei para o desenvolvimento do trabalho será o seu artigo 28 e parágrafos, o qual trata do porte ilegal de drogas para o consumo pessoal. A partir dele será feita uma análise de seus elementos constitutivos, focadano elemento normativo “pequena quantidade”, o que confere certa arbitrariedade ao juiz quando das suas tomadas decisões, visto que a Lei não fora clara quanto a esse aspecto, abrindo margem às discussões. 

Contudo, a ênfase principal do artigo irá girar em torno da discussão a cerca da (in) constitucionalidade da Lei em questão, mais especificamente no que tange à situação disposta pelo artigo 28 da mesma, visto a possibilidade de o Estado está interferindo de forma indevida na esfera de interesse individual, ferindo dessa forma, alguns princípios fundamentais individuais. Para tanto, será discutido acerca do possível conflito existente entre o direito individual à Liberdade e o direito coletivo à Segurança Pública, verificando até que ponto um poderá se sobrepor ao outro de modo a não violá-lo por completo. Aproveitando o ensejo, será debatido acerca da interferência estatal na esfera penal quando se trata de escolhas individuais.

Feito isso, será analisado o modelo de legislação de drogas estabelecido pela Holanda, referência mundial no assunto, e se há possibilidade de adequá-lo à realidade de nosso país.

 

1 Análise objetiva/subjetiva do artigo 28 da Lei 11.343

O artigo 28, inserto no Capítulo III, “Dos crimes e das Penas”, da Lei 11.343 (Lei Antidroga), o qual como visto, tutela o uso pessoal de drogas, merece uma análise mais minuciosa dos seus elementos objetivos e subjetivos para que possa ser melhor compreendido o conteúdo deste trabalho.

Elementos objetivos referem-se ao aspecto material do fato. Existem concretamente no mundo dos fatos e só precisam ser descritos pela norma. São elementos objetivos: o objeto do crime, o lugar, o tempo, os meios empregados, o núcleo do tipo (verbo). Elementos subjetivos (internos) do tipo são os que pertencem ao campo psíquico-espiritual e ao mundo da representação do autor. Encontra-se, antes de tudo, nos denominados ‘delitos de intensão’, em que uma representação especial do resultado ou do fim deve ser acrescentada à ação típica executiva como tendência interna transcendente. (CAPEZ, 2006, p. 194-195)

Primeiramente, para iniciar o estudo da conduta prevista neste artigo é necessário o entendimento do que dispõe o diploma legal. Assim é a redação:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado

           

            Objetivamente falando sobre os núcleos do tipo penal, Capez (2006) esclarece:adquirir (obter mediante troca); guardar(reter a droga à disposição de outra pessoa); ter em depósito (reter a substância à sua disposição); transportar (pressupõe emprego de meio de transporte para levar a droga); trazerconsigo (a droga é levada junto ao agente).Por equiparação, ainda foi inserido nesse rol, com a nova lei, as condutas de semear (lançar sementes no solo para que germinem); cultivar (fertilizar a terra, oferecer condições para o nascimento e desenvolvimento da plantação ecolher (retirar, extrair a planta do solo). Pela pluralidade de verbos, conclui-se ser este crime de ação múltipla misto alternativo.Além disso, destaca-se que é um crime cometido na modalidade comissiva no que se refere a todos os seus núcleos.Como a lei descreve os meios de execução do crime, trata-se ainda de crime de ação vinculada. Pretende-se com a tipificação dessa conduta tutelar apenas um bem jurídico, que é a Saúde Pública, sendo, portanto, um crime simples.

            Vale ressaltar ainda que se trata de um crime de perigo abstrato, ou seja, há presunção de ofensa ou ameaça ao bem jurídico, não sendo exigida a comprovação do efetivo dano á saúde. Em outras palavras, consuma-se no momento em que a conduta típica se realiza, não sendo necessária a ocorrência de nenhum resultado. A ocorrência do resultado configura mero exaurimento do crime.As modalidades “transportar” e “semear” apresentam-se como formas instantâneas de consumação deste crime.Segundo Gomes (2006), de forma fática a tentativa se faz possível (exemplo: tento adquirir droga para consumo próprio), todavia, tal conduta não é abarcada pela Lei, uma vez que ninguém deve ser punido pela intensão ou cogitação, mas sim, pela efetiva previsão legal, caso contrário, ocorreria uma exagerada antecipação da tutela legal. Trata-se, portanto, de um crime unissubsistente (ação é composta por um só ato) e principal, visto que não depende de outra infração penal para que ocorra.

             É também um crime vago (tem como sujeito passivo a coletividade)e comum (praticado por qualquer pessoa, sendo um menor, será adotada medida constante no ECA). Tem por objeto material o termo “droga”, o qual foi estabelecido pela nova Lei em substituição dos termos “substância entorpecente que determine dependência física ou psíquica” e de acordo com o artigo 1º, parágrafo único da Lei consiste em: “(...) substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. Configura aqui a ocorrência de uma norma penal em branco, pois é uma infração que exige complemento normativo, que no caso é a descrição das drogas(lista fornecida pela Anvisa, pertencente ao Ministério da Saúde).

Quanto à expressão “pequena quantidade” presente no paragrafo primeiro do artigo 28 da lei antidrogas, destaca-se a inexistência de previsão legal expressa sobre o quanto, de fato, corresponde a esta. Assim sendo, abre-se espaço para a discricionariedade (juízo de valor) do juiz no momento da análise do caso concreto.Daí, conclui-se ser este um dos elementos normativos do crime, o qual será enfatizado nesse trabalho. É esse ponto que dará ensejo à discussão a cerca da admissibilidade ou não do princípio da insignificância que será analisado posteriormente.

Exaurida a analise quanto aos elementos objetivos do crime em questão, cabe neste momento comentar sobre os aspectos subjetivos do mesmo. As condutas descritas nesse artigo contemplam apenas a forma dolosa. Trata-se de dolo específico, ou seja, vontade livre e consciente de saber e querer ter a posse da droga com a finalidade especial de consumo pessoal. Não é admitida a forma culposa. Assim, o agente que tiver a droga sem saber do que se trata, incorre sobre erro de tipo. Tratando-se de erro invencível, exclui-se o dolo e a culpa; de erro vencível, pune-se apenas a forma culposa, caso, portanto, de atipicidade. Em contrapartida, se o agente sabe que está com a posse da droga, mas não sabe que isso é proibido, incorre aí sobre um erro de proibição.

            Assim, dá-se por finalizada as análises objetiva e subjetiva do tipo estabelecido no artigo em questão, no que toca aos aspectos relevantes ao tema do paper.

2 Interferência do Direito Penal na esfera individual

Sempre que se inicia qualquer discussão que pressuponha a aplicação ou não da norma penal, cabe destacar o caráter subsidiário da mesma. Este é o pilar do entendimento de que o Direito Penal funciona como última ratio.

 Por ser a sanção penal a resposta mais rígida que o Estado oferece aos que lesem a ordem jurídico-social como um todo, uma vez que trata das limitações dos direitos de liberdade e patrimônio, geralmente, dos indivíduos, considera-se este ramo do Direito a última ratio, ou seja, só seve ser considerado na análise dos casos concretos quando os Direitos civil e administrativo já não forem suficientes.

Trazendo o questionamento acima para o assunto tratado neste paper, é relevante confrontar os direitos individuais e os direitos da coletividade, da sociedade, à luz da necessidade de manter o Direito Penal como última hipótese de aplicação em razão do princípio constitucional da Mínima Intervenção Estatal.

2.1 Princípio da Liberdade Individual x Segurança/Saúde Pública

Como citado acima, será provocado o confrontos entre os direitos individuais e os coletivos implícitos na polêmica da legalização ou não do porte de drogas para uso pessoal. Para tanto, se faz necessária uma análise principiológica que englobe tais direitos.

Adentrando ao assunto, é indiscutível que, na plenitude do uso e gozo de seus direitos, qualquer pessoa pode dispor de seu corpo e, conseqüentemente, de sua saúde como quiser, não cabendo a terceiro determinar seu modo de agir. Neste momento, destaca-se o fato de que a periculosidade das drogas diz respeito, pelo menos diretamente, a quem desta utiliza somente, portanto, não haveria justificativa para a intervenção Estatal na pessoa do Direito Penal no tocante a escolha do sujeito usuário.

Conforme Luis Flávio Gomes (p.127, 2006), apesar de existirem doutrinadores que são partidários da corrente que desconsidera a aplicação do principio da insignificância, fundamentado tal posicionamento no artigo 290 do CPM, que classifica este crime como de perigo abstrato, a doutrina majoritária torna essencial para a configuração do crime a existência de determinada quantidade de droga que ofereça o mínimo de lesividade à saúde publica, uma vez que este é o bem jurídico tutelado pelo dispositivo estudado. O mesmo autor classifica tal crime dentro da modalidade de “delito de posse”, que precisa ter constatada a idoneidade ofensiva do objeto material (droga) para a consumação do crime.(CITAÇÃO INDIRETA)

É importante esclarecer que não se pune o consumo em si, mas adquirir, guardar, ter em depósito, transportar, trazer consigo, semear, cultivar colher.

No que convém aos direitos sociais, de maneira introdutória, Vicente Greco Filho faz interessante reflexão.

Esse valor supremo é o valor da pessoa humana, em função do qual todo o direito gravita e que constitui sua própria razão de ser. Mesmo os chamados direitos sociais existem para a proteção do homem como indivíduo, e, ainda que aparentemente, em dado momento histórico, se abdiquem de prerrogativas individuais imediatas, o direito somente será justo se nessa abdicação se encontrar o propósito de preservação de bem jurídico-social mais amplo que venha a repercutir no homem como indivíduo (GRECO FILHO, p. 88, 2000)

Greco, na citação acima, valoriza, como deve ser feito, as liberdades individuais e os direitos dos particulares. Entretanto, ao final, o mesmo autor justifica tal direito até o momento em que não há corrupção dos direitos sociais, da coletividade. Ou seja, as liberdades individuais só são legitimas quando estas não ofenderem os direitos sociais, e é exatamente este o caso tratado aqui.

3 Modelo internacional e a adequação à realidade brasileira

Inevitavelmente a discussão deste paper recairá na legalização ou não do uso de drogas, o que implicará em uma análise previa dos argumentos utilizados por aqueles favoráveis ao uso.

Dente os argumentos recorrentes na fundamentação da corrente favorável à legalização do uso de drogas é a possível redução da violência que decorrerá “organização da compra e venda” das substâncias entorpecentes, já que sendo legalizado o uso, o Estado se fará presente neste processo no papel de fiscalizador.

A Holanda e Portugal sempre são referencias no assunto, já que comprovou-se a redução da criminalidade nestes após a legalização do consumo de substancias atualmente ilícitas.

A comparação das consequências da legalização daqueles países deve ser analisada com muito cuidado para que estes seja vistos como espelhos para a justificativa do uso de drogas ilícitas no Brasil, uma vez que são realidades socioeconômicas absolutamente distintas.

CONCLUSÃO

Levando-se em consideração a literalidade da leitura desse dispositivo, de forma bastante restrita, pode-se erroneamente acreditar que o que se pretende proteger é unicamente a saúde pessoal do indivíduo usuário de drogas. Todavia, de uma forma mais abrangente e objetiva, percebe-se que o bem jurídico que se pretende tutelar efetivamente é a saúde pública, visto o custo demandado do Estado quando da necessidade de cuidados especiais à pessoa dependente química, bem como o perigo que as mesmas oferecem à sociedade como um todo. Assim, tem por escopo a prevenção ao uso indevido de drogas, a repressão à produção não autorizada e ao tráfico.

 

 

REFERÊNCIAS

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 10.ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006, v.1. 

GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas comentada artigo por artigo: Lei 11.343/2006. 2.ed.re.atual. eampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.07.

GOMES, Luiz Flávio (Org.). Nova Lei de Drogas Comentada: Lei 11.343, de 23.08.2006. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

OLIVEIRA E CRUZ, João Claudino de. Tráfico e uso de entorpecentes. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p.13.



[1]Paper apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina de Direito Penal Especial III do curso de Direito da UNDB ministrada pela Professora Socorro Carvalho.

[2]Graduandasdo 6° Período de Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB).

³ Professora Mestre responsável pela disciplina.