LEGITIMIDADE NO USO DA VIOLÊNCIA POLICIAL: PERSPECTIVA DOS POLICIAIS

Fábio Barbosa Pereira[1]

Fábio Ferro Fontes

 

Sumário: Introdução; 1. Violência e Legitimidade; 2. Situação do Brasil e especificidades do caso maranhense; 3. Perspectiva do agente policial em relação ao uso da violência; Conclusão; Referências.

 

RESUMO

Objetiva-se nesse trabalho analisar a função (tanto latente quanto declarada) da polícia.  E através de análises empíricas, formular um entendimento sobre a instituição. Ressaltando a legitimidade da coerção estatal evidenciando o caráter histórico e o descaso do poder publica perante a segurança de seus cidadãos.

 

PALAVRAS-CHAVE:

Ação Policial, Violência, Legitimidade, Coerção,

INTRODUÇÂO

O entendimento do papel institucional da polícia passa pela compreensão da dinâmica factual, ou seja, das práticas reais, usadas no cotidiano do agente de segurança e o discurso institucional, bem como a visão que o próprio policial tem do uso da coerção como forma de fazer com que a lei seja cumprida.

Na atividade policial está um dos pontos sensíveis, críticos para a realização do regime democrático. A forma como a corporação policial vê a si mesma e sua relação com a população, ao mesmo tempo influi e é produto do modus operandi de dado regime em contexto social. A legitimidade destes fica seriamente comprometida por não terem êxito em fazer cumprir suas próprias leis. O resultado é que esses governos têm dificuldades em mobilizar apoio popular para suas reformas.

A polícia é o mecanismo da garantia da manutenção de uma ordem social que atua tanto preventiva, como repressivamente, combatendo práticas que escapam aos padrões aceitos pela sociedade e/ou pelos grupos dominantes. Trabalha no sentido da redução, pelo menos aparente, dos antagonismos e em manter, para o Estado (ou quem o domina),

O monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social, o nomos como princípio universal de visão e de divisão [...], portanto, de distribuição legítima[2]

Ao observarmos o comportamento da corporação policial e as percepções dos seus agentes. Percebemos o reflexo distorcido de uma noção de defesa da sociedade e da ordem, num regime em que o estado chega à parte da população somente pela mão da policia.

A organização policial se vê espremida entre a preservação dos interesses dominantes e a necessidade de responder às demandas sociais que vão surgindo e se acumulando à medida que não são respondias. Esse quadro acaba por geram uma situação de confrontamento, que quase sempre acaba por dar margem ao uso da força coativa de forma legal e ilegal.

  1. 1.      VIOLÊNCIA E LEGITIMIDADE

O estudo da questão da legitimidade ganha sua forma mais acabada na sociologia Weberiana, bem como a definição do papel da polícia como instância última na manutenção da dominação racionalizada, expressa pelo domínio da lei. Daí, podemos partir para analise de como através da relação, discurso oficial e atuação factual da polícia.

 "[...] uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu com êxito monopolizar a coação física legítima como meio da denominação e reuniu para este fim, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização."[3]

Como indica Bandeira de Mello, só é possível pensar o poder legítimo no Estado contemporâneo se este for tomado como “algo instrumental e indispensável para tornar viável o cumprimento do dever de atingir a finalidade que a Lei lhe prescreve”[4]. Ou seja, a polícia atua, junto à atividade executiva e a atividade jurisdicional, como meio de efetivar as condutas “socialmente aceitas”. Embora haja uma dimensão administrativa no trabalho da polícia, é perceptível que sua função é cumprida basicamente por sua função restritiva, ou negativa, requerendo uma abstenção do cidadão, do administrado.

Sobretudo nesta função restritiva, e direta, é necessário que nos atenhamos com mais precisão, pois ela é um ponto critico da gestão pública. E dela depende uma boa parte da força da legitimação legal. Quando se ocupa dessa função, a polícia trabalha dentro de um limite estreito, e perigoso, de vinculação normativa determinada de seus atos e de discricionariedade.

“por discricionária compreende-se a prerrogativa que determinada autoridade tem de exercer o juízo de oportunidade e conveniência sobre a positivação de determinado ato, e se no âmbito do conceito de poder de polícia a atividade legislativa está presente, então se pode aceitar o caráter discricionário deste poder”.[5]

O discurso oficial afirma que, mesmo nos limites de discricionariedade, a policia deve se pautar por garantias e procedimentos que visem proteger essas garantias constitucionais e também, princípios da legalidade e do controle jurisdicional.

O exercício do poder de polícia vem a exorbitar dos limites estatuídos ou dos parâmetros essenciais da composição dos direitos, configura-se o desvio, abuso ou excesso de poder. Nestes casos, entra em cena o princípio do controle jurisdicional, materializado na tutela auferida dosjuízes e tribunais (bandeira de Mello)[6]

Mas ao observarmos o aspecto político, impressiona a forma como as polícias, civil e militar, vivem, ou sobrevivem, numa debilidade institucional imensa, em que o modus operandi obedece ainda à lógica do Estado autoritário, pautado na ótica Estado versus Sociedade, afrontando muitas vezes a própria legalidade, e tendendo a proteger o primeiro em detrimento do todo social[7]

Entretanto, é necessário ponderar a cerca da efetividade dessa “realidade” delineada pelo discurso jurídico oficial e a forma como a população e os agentes de polícia enxergam tal situação. ”Os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal foram reconhecidos, e a tortura e a discriminação racial são considerados crimes. Mas, o que percebemos é um abismo entre os ditames legais e o cotidiano brasileiro. Sobretudo nas áreas mais pobres.

Ao mesmo tempo em que foram eliminadas as violações mais fortes contra os direitos humanos cometidos pelos regimes militares, os governos civis recém-eleitos não tiveram êxito em proteger os direitos fundamentais de todos os cidadãos[8].

Pinheiro mostra que no Brasil, mesmo em tempos mais democráticos, permaneceram enraizadas práticas autoritárias. O resultado das democracias de instituições um tanto frágeis como a brasileira, é não conseguirem controlar a polícia, o que faz com que persistam as práticas abusivas, a violência física e simbólica, contra a população pobre, e de forma mais grave contra suspeitos ou prisioneiros.

A existência do “Império da lei”, condição para a dominação legal, é vista como um obstáculo e não como uma garantia de controle social. Está difundido no senso comum que o papel da polícia é o de proteger a sociedade de qualquer “elemento marginal” usando qualquer meio.  

 

  1. 2.      SITUAÇÂO DO BRASIL E ESPECIFICIDADES DO CASO MARANHENSE

A História da instituição policial no Brasil está vinculada ao clientelismo e ao mandonismo.

A própria lógica de funcionamento da corporação se moldou ao trabalho na “semi-legalidade”, servindo ao mesmo tempo o interesse estatal e os interesses políticos individualizados. O uso da violência contra o lavrador, contra o favelado e a defesa do grande proprietário de terra e das elites urbanas se tornou algo costumeiro e, embora tenha sido dada muita importância a violência de fundo político na época do regime militar, a corporação policial, sobretudo militar, continua impregnada destas práticas, como afirma Mesquita:

Com o declínio do uso político da violência policial, o problema da violência policial se tornou mais visível, ou melhor, emergiu como um problema diferente e independente do problema da violência política, afetando não apenas os oponentes[9] do governo ou do regime político, mas também, e principalmente, a população pobre e marginalizada.

Essa prática é tão usual que mesmo sua qualificação legal é problemática. Muitos casos de violência policial são qualificados como meros excessos, definidos como atos de ”abuso de força” e não de violência. Os usos irregulares, anormais, escandalosos ou chocantes da força física por policiais contra outras pessoas não são inclusos como fuga da estrita legalidade. Soma-se a isso, o fato de que a profissão de policial tem padrões de competência e de responsabilidade pouco desenvolvidos se comparados aos estabelecidos pelas profissões mais tradicionais. Em conseqüência, o comportamento dos policiais tende a ser mais regulado por padrões definidos segundo critérios não-profissionais ou antiprofissionais.

Aliados a baixos salários, cultura de autoritarismo, situação de marginalidade em relação a outros operadores do direito, esses fatores agem de forma a criar uma cultura corporativista e hermética, em que o policial é visto como um “combatente” da violência, situação bem diferente das qualificações e critérios definidos pela Constituição Federal no art. 144, que o caracteriza muito mais como um gestor da segurança pública. Isso quando sua atuação não tende a se direcionar a atividades absolutamente ilegais e contrárias a propósito de sua função, caso do envolvimento dos policiais em esquadrões da morte, cobrança de propinas. Situações geradas pelo quadro de precariedade material e psicológica, a que os policiais são expostos.

No Maranhão isso se agrava pelo histórico do mandonismo local, concentração fundiária, ambos ainda presentes. A polícia se vê a mercê dos grupos políticos e de velhas práticas de tortura e amedrontamento da população vista por muitos policiais como necessárias para a realização da sua “missão”. A atuação da policia brasileira está repleto de casos de tortura física e psicológica, no nosso estado são comuns denuncias de torturas contra presos, e mesmo contra acusados, com afirma o Relatório Anual da ONG Human Rights Watch[10], citando inclusive dados da CPI do sistema carcerário. No entanto, a própria divulgação desses dados por instituições oficiais é prejudicada pela lógica de supressão de informações adotadas pelas policias, com o objetivo de preservar a imagem da corporação

  1. 3.      PERSPECTIVA DO AGENTE POLICIAL EM RELAÇÃO AO USO DA VIOLÊNCIA

Com toda essa explanação teórica, é chegada a hora da pesquisa de campo, com uma perspectiva empírica a respeito do tema. Em entrevista anônima concedida por um agente da polícia militar do Maranhão, mais precisamente um praça – a polícia é dividida entre praças e oficiais – podemos perceber a verdadeira situação factual dessa instituição.

ANEXO:

Entrevista concedida por um Cabo da polícia militar a Fabio Sabino e Fábio Ferro no dia 09 de Novembro de 2009.

O que você pensa ser a função social do policial?

Proteger a população, né? A sociedade...

Você acha a atuação policial violenta?

Olha, no começo eu até achava, mas depois a gente acostuma, depois que vê tanta coisa, a gente num acha mais nada violento.

Você se sente preparado para atuar em campo? A instituição prepara o agente para exercer sua função?

Não. De jeito nenhum. Pra entrar pra polícia a gente faz um curso, o meu teve duração de oito meses, pra te ter noção, eu não dei um tiro nesse tempo todo. Falta tudo na polícia, até arma, se o comandante der uma arma pra gente treinar, vai faltar em algum setor da cidade, em algum ponto a cidade vai ficar em arma. Só depois que eu já tava trabalhando na rua é que eu fui dar meu primeiro tiro.

No exercício de sua profissão, já se viu obrigado a utilizar meios ilegais para ter sucesso em uma missão?

Já sim, várias vezes. Se for levar ao pé da letra mesmo, a gente nem consegue fazer o trabalho se for tudo certinho. Já aconteceu da gente entrar na casa sem permissão... Até bater em vagabundo eu já bati... O cara veio me desrespeitar, eu só peguei o cassetete e dei nas costelas dele...

Você acha a atuação policial discriminadora? Porque?

Às vezes, a gente vai no cara que aparenta ser bandido... o policial já até sabe, depois de tanto tempo trabalho, a gente já sabe quando o cara ta escondendo alguma coisa.

Como o policial vê projetos como o “policia cidadã”? Funciona? Aproxima a sociedade/comunidade da instituição?

Olha, isso é política, só política... depende muito do coronel, toda vez que muda o coronel os projetos mudam também. Num vou te mentir que uns até funcionam, a gente se aproxima da comunidade, mas o problema maior, (dessa aproximação) é que a imagem da polícia tá muito ruim... tem muita gente, e num é só bandido não... que não gosta de policia. Aí fica difícil a gente se aproximar.

           

Conclusão

Podemos concluir que há uma diferença/distanciamento muito grande em relação ao discurso e a prática policial. Podemos envolver ainda as funções latentes e as funções declaradas.

A função declara da polícia é que é uma instituição que visa a segurança pública, no combate à criminalidade, utilizado de princípios constitucionais e oferecendo segurança (inclusive jurídica) aos cidadãos e potenciais “clientes”. Entretanto, podemos concluir que a função latente dessa instituição é somente a manutenção do status quo através de favorecimento às elites pela forma – já supracitada – de clientelismo e troca de favores políticos entre coronéis (oficiais de comando), políticos, e a classe dominante.

 

 

Referências

 

SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. Ed 4ª. Editora Revista dos Tribunais. 2008

 

Relatório Anual da ONG Human Rights Watch, Violações dos direitos humanos em 2008

NETO, Paula Mesquita. Violência policial no Brasil: abordagens teóricas e práticas de controle. Paper apresentado no seminário internacional Justiça e Cidadania, Fundação Getulio Vargas (CPDOC FGV)

ZAVERUCHA, Jorge. Polícia Civil de Pernambuco: O Desafio de Reforma. Recife,

Editora Universitária da UFPE, 2003. 1ª edição

.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência, crime e sistemas policiais em países de novas democracias. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo. 1997.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2007

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. ed UnB.  Brasília 2004.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed.

São Paulo: Malheiros, 2008



[1] Acadêmicos do terceiro período de Direito do Ensino Superior Dom Bosco (UNDB).

([email protected]) e ([email protected])

[2] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2007

[3] WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. ed UnB.  Brasília 2004.

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed.

São Paulo: Malheiros, 2008

[5] Idem

[6]  Idem.

[7] ZAVERUCHA, Jorge. Polícia Civil de Pernambuco: O Desafio de Reforma. Recife,

Editora Universitária da UFPE, 2003. 1ª edição.

[8] PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência, crime e sistemas policiais em países de novas democracias. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,1997.

[9] NETO, Paula Mesquita. Violência policial no Brasil: abordagens teóricas e práticas de controle. Paper apresentado no seminário internacional Justiça e Cidadania, Fundação Getulio Vargas (CPDOC FGV)

[10] Relatório Anual da ONG Human Rights Watch, Violações dos direitos humanos em 2008