JUDICIALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE PÚBLICA: A IMPORTÂNCIA DAS DECISÕES JUDICIAIS NO PROVIMENTO DE FRALDAS DESCARTÁVEIS COMO GARANTIA DO DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE.

 

Priscila L. Cajueiro

 

Sumário: Introdução; 1 A saúde enquanto direito constitucional basilar; 1.1 Sobre o Sistema Único de Saúde; 2 Sobre o papel do Poder Judiciário; 3 O provimento de fraldas descartáveis e as decisões judiciais; Conclusão; Referências.

Resumo

O presente desenvolvimento visa constituir uma análise teórica acerca do texto do art. 196 da Constituição Federal e das Disposições Gerais da Lei 8.080/1990, que dispõem sobre a saúde como direito de todos e dever do Estado, bem como a inclusão do Poder Judiciário como meio garantidor deste direito. Através de uma interpretação constitucional progressiva, a cada dia são apreciadas mais demandas que abrangem não somente o direito a medicamentos, previsto na Lei do Sistema Único de Saúde – SUS, mas também, outros produtos que visam à manutenção da saúde reconhecida na Carta Magna como fundamental. Tais direitos têm sido amplamente pleiteados em juízo, que demonstra análises inconstantes acerca da temática.

Palavras – chaves

Direto fundamental; Saúde; Fraldas descartáveis; Judicialização; Direito de vida.

 

INTRODUÇÃO

Quando surgiram, na década de 40, as fraldas descartáveis foram sinônimo de artigos de luxo, utilizadas somente por crianças, em ocasiões especiais, como viagens e idas ao médico. Somente a partir da década de 90, após muitas evoluções, começou-se a pensar as fraldas com características que proporcionassem não somente conforto, mas também benefícios que pudessem garantir a melhora da higiene e o favorecimento da saúde, através de indicadores de umidade, protetores contra germes e, inclusive, tecnologia de absorção que chega a mais de 95%.[1]

As fraldas deixaram de ser de uso exclusivo dos bebês e começaram a ser fabricados também tamanhos maiores adequados a adolescentes e adultos, proporcionando a utilização por pessoas idosas e portadores de deficiência física e/ou mental que não possuem, portanto, controle de suas necessidades fisiológicas.

Em busca do provimento desse produto, que se trata de artigo de primeira necessidade a esse determinado grupo de pessoas, observa-se que cada vez mais é pleiteado em juízo o direito de recebê-las de forma gratuita, como meio garantidor do direito assegurado na Constituição, visto que também são produtos necessários à adequada terapêutica do paciente, não apenas os medicamentos.

Motivados pelo constante descumprimento do dever de promover o direito a saúde, aqueles que não têm condições para tal, não admitem que suas necessidades de vida sejam barradas por previsões orçamentárias que facultam as obrigações do Governo. De acordo com os entendimentos da Assessora Jurídica da USP, Patrícia Luciane de Carvalho (2009), o foco principal deve ser o paciente:

(...) Não pode o Supremo Tribunal Federal, na condição de guardião da Constituição, ficar à mercê de politização da ordem jurídica, devendo as decisões desta Corte, assim como das demais esferas do Poder Judiciário, acompanhar a interpretação constitucional oferecida pela Ordem Jurídica Nacional e não atender a apelos políticos no sentido de que o orçamento público não suporta a demanda pela acessibilidade.

Depreende-se, portanto, que a judicialização dos serviços de saúde pública é uma constante, em razão da falta de práticas garantidoras de um direito constitucionalmente previsto.

1 A SAÚDE ENQUANTO DIREITO CONSTITUCIONAL BASILAR

Prevista no Título VIII da Constituição Federal, da Ordem Social, que tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, a saúde encontra-se incluída no art. 196, que possui o seguinte texto: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Grifo nosso).

Destarte, evidencia-se a preocupação do legislador não somente com os casos em que a pessoa já esteja enferma, mas sim com a assistência integral da saúde, incluindo-se, deste modo, a prevenção.

Definida na Conferência Internacional sobre cuidados de saúde primários de Alma Ata, em 12 de setembro de 1978, a saúde foi percebida com o significado de “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade (...)”, sendo próximo deste, o conceito moderno apresentado pelo dicionário Michaelis: “Bem-estar físico, econômico, psíquico e social”.

Entende-se, para tanto, que diferente da ideia de que pessoa com saúde é aquela que não está internada em um hospital, ou aquela que não depende de medicamentos para sobreviver, são todas aquelas que dispõem de dignidade, integridade físico-corporal e moral e, especialmente, dispõem do direito à existência. (BRANCO, 2007).

1.1 SOBRE O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Com fins de regulamentar os serviços de saúde pública, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 198, que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único. Decorridos dois anos da nova constituição, em 19 de setembro de 1990, foi sancionada a Lei nº 8.080, amplamente conhecida como Lei do SUS, que passou então a regular “em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado”. (art. 1º da Lei)

De acordo com o Ministério da Saúde, o SUS “abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país (...)”, além de promover “campanhas de vacinação e ações de prevenção e de vigilância sanitária – como fiscalização de alimentos e registro de medicamentos –, atingindo, assim, a vida de cada um dos brasileiros” [2].

Entende-se, por fim, que com a criação do SUS, a saúde que até então não era considerada um direito social, passou a ganhar destaque nas ações do Governo ao incluir um projeto social único, com fins de implementação dos serviços.  O que se pode perceber na prática, porém, é que, uma das mais completas e consistentes propostas de política pública social já implementadas no país, não permite que os direitos sejam assegurados de forma plena. (MACHADO, 2008).

2 SOBRE O PAPEL DO PODER JUDICÁRIO

Com previsão sólida na Constituição Brasileira, que no Capítulo III dedica disposição exclusiva ao Poder Judiciário, o legislador “inscreve, entre os direitos e garantias individuais, o princípio da inafastabilidade da apreciação judiciária, segundo o qual ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’ (art. 5º, inc. XXXV)”. (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2006).

Também prelecionam os professores Antônio Carlos Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2006, p. 172), que:

Os direitos fundamentais, formulados pela Constituição através de normas necessariamente vagas e genéricas, quando violados ou postos em dúvida só podem ser afirmados, positivados e efetivados pelos tribunais. (...) É perante o Poder Judiciário, portanto, que se pode efetivar a correção da imperfeita realização automática do direito: vãs seriam as liberdades do indivíduo se não pudessem ser reivindicadas e defendidas em juízo.

Nessa seara, vislumbra-se a indeclinável tarefa do Poder Judiciário de assegurar um direito previsto pelo Poder Legislativo, mas negligenciado pelo Poder Executivo. Não é função do Judiciário ditar, de acordo com suas vontades, para onde e de que forma devem ser direcionados os orçamentos públicos, mas sim apreciar situações em que a Administração Pública atue de maneira desconforme aos ditames da Constituição – situação cada vez mais frequente na sociedade brasileira.

Isto posto, constata-se que a função jurisdicional vai além do simples julgamento depreendido unicamente da letra da lei; ela “atua sempre diante dos fatos já ocorridos, subsumindo a norma abstrata ao caso concreto” (CÂMARA, 2007, p. 68), ou seja, cada demanda deve ser analisada de maneira particular.

3 O PROVIMENTO DE FRALDAS DESCARTÁVEIS E AS DECISÕES JUDICIAIS

A cada dia são impetradas mais ações na Justiça, pela Defensoria Pública (ações individuais) e pelo Ministério Público (ações coletivas) com fins de pleitear o direito ao recebimento de fraldas descartáveis por pessoas que as tem como necessidade de vida (a exemplo de idoso, deficientes físicos e/ou mentais congênitos) e não possuem condições financeiras para provê-las.

Baseados na garantia constitucional de direito à saúde, as fraldas que não constituem medicamentos propriamente ditos, viabilizam à essas pessoas, a diminuição do risco de contrair doenças como inflamações, infecções e outras complicações resultantes do acúmulo de fezes e urina – que para alguém que já apresenta saúde frágil e debilitada pode ter conseqüências ainda piores. (PRADO, 2009).

O que ocorre na realidade, é que o direito à saúde – atualmente conceituada de forma ampla – previsto na Constituição, por vezes é interpretado de forma a não incluir o produto aqui analisado, impossibilitando a sua plenitude. À luz desse entendimento, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou improcedente a ação:

 

EMENTA: DIREITO À SAÚDE. fraldas descartáveis.

As fraldas descartáveis não figuram nas listas elaboradas pelo Ministério da Saúde ou pela Secretaria de Saúde do Estado, que foram estruturadas para, segundo as disponibilidades orçamentárias, atender à saúde das pessoas necessitadas. Por isso, não é exigível do Poder Público, cujas listas de medicamentos, insumos e procedimentos foram elaboradas pelo SUS, balizadas pelas necessidades e disponibilidades orçamentárias.  O direito social à saúde, a exemplo de todos os direitos (de liberdade ou não) não é absoluto, estando o seu conteúdo vinculado ao bem de todos os membros da comunidade e não apenas do indivíduo isoladamente. Trata-se de direito limitado à regulamentação legal e administrativa diante da escassez de recursos, cuja alocação exige escolhas trágicas pela impossibilidade de atendimento integral a todos, ao mesmo tempo, no mais elevado standard permitido pela ciência e tecnologia médicas. Cabe à lei e à direção do SUS definir seu conteúdo em obediência aos princípios constitucionais.

(...)

4. As fraldas descartáveis não figuram nas listas elaboradas pelo Ministério da Saúde ou pela Secretaria de Saúde do Estado[2] que foram estruturadas para, segundo as disponibilidades orçamentárias, atender à saúde das pessoas necessitadas. Por isso, não pode ser o Agravante compelido a fornecê-las. O fato de se tratar de insumo importante ao conforto do paciente e de seus familiares não ampara a concessão da tutela antecipada.

(Apelação Cível com Reexame necessário nº 70041542705; Rel. Des. ª Maria Isabel de Azevedo Souza; Vigésima Segunda Vara Cível; j. 22.03.11.)

Tal decisão difere de outros julgados de tribunais que realizam uma interpretação progressiva do direito à saúde. “O entendimento jurisprudencial que defere o direito de receber fraldas descartáveis em favor das pessoas carentes que delas necessitem deriva da normatização constitucional do direito à saúde, que foi tratada como um direito fundamental de todo e qualquer ser humano.” (CARVALHO, 2009)

Ciente de toda problemática que envolve o assunto, o Tribunal de Justiça de São Paulo fez valer os preceitos constitucionais, reconhecendo a necessidade do uso de fraldas descartáveis e sua distribuição gratuita em caso de autor acometido de paralisia cerebral:

OBRIGAÇÃO DE FAZER – Autor acometido de paralisia cerebral – Necessidade de fraldas descartáveis – Prescrição médica – Higiene é fator indispensável para a saúde – Obrigação do Estado em fornecê-lo – Acesso universal à saúde constitucionalmente garantido, assim como a preservação da dignidade humana – Estatuto da Criança e do Adolescente que atribui caráter de direito fundamental à saúde e vida digna, com a previsão de prioridade e privilégio nos recursos públicos – Aplicabilidade imediata das normas pertinentes – Possibilidade de apreciação da questão pelo Poder Judiciário – Recursos oficial e voluntário não providos.

(...)

4. No caso específico dos autos, o fornecimento de fraldas descartáveis é item indispensável à vida digna e saudável da criança com paralisia cerebral. Sabidamente, a higiene é fator imprescindível para manutenção da saúde, de forma que o pedido inicial recebe amparo legal e constitucional, estando devidamente comprovada a necessidade de fraldas descartáveis por declaração de médico da Associação de Assistência às Crianças Deficientes.

(Apelação Cível com Revisão nº 552.554.5/7-00; Rel. Des. Henrique Nelson Calandra; Segunda Câmara de Direito Público; j. 16.01.07.) (PRADO, 2009)

Depreende-se de tal decisão o efetivo exercício jurisdicional congruente à análise do caso concreto à luz da interpretação do direito fundamental à saúde.

CONCLUSÃO

 

Pode-se perceber, com este desenvolvimento, que o direito à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988, é tema cada vez mais levado à apreciação do Poder Judiciário devido à amplitude do seu conceito. A judicialização dos serviços públicos de saúde, no caso específico do provimento de fraldas descartáveis à pessoas idosas, portadoras de deficiências físicas e/ou mentais irreversíveis, que não possuem condições financeira para provê-las, tem se tornado uma constante em tribunais brasileiros, como uma forma de efetivar a tutela almejada.

Depreende-se que não há uma linha única de decisões aos casos pleiteados, mas sim, uma análise judicial ao caso concreto, avaliado em suas particularidades, com fins de promover o efetivo exercício do direito constitucionalmente previsto pelo legislador.

REFERÊNCIAS

 

BRANCO, Luciana Temer Castelo. Abrangência do direito à saúde: fornecimento de medicamentos especiais é dever do Estado? Disponível em: http://www.cepam.sp.gov.br/arquivos/artigos/lt_saude.pdf>. Acesso em: 23 de maio de 2011.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 16 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v. I.

CARVALHO, Patrícia Luciane de. Acessibilidade a medicamentos pela via judicial. Consulex. Ano XIII, nº 296, maio. 2009.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

Diário da Justiça Eletrônico – RS. Disponível em: <http://www3.tjrs.jus.br/servicos/diario_justica/dj_principal.php?tp=5&ed=4551&pag=50&ult=85&va=9.0>. Acesso em: 23 de maio de 2011.

MACHADO, Felipe Rangel de Souza. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rdisan/v9n2/06.pdf>. Acesso em: 23 de maio de 2011.

 

Portal de Saúde Pública. Declaração de Alma Ata. Disponível em: <http://www.saudepublica.web.pt/05-promocaosaude/Dec_Alma-Ata.htm>. Acesso em: 23 de maio de 2011.

PRADO, João Carlos Navarro de Almeida. Acesso a produtos de saúde: em busca de uma interpretação constitucional progressiva. Consulex. Ano XIII, nº 292, mar. 2009.

 

 



[1]  Informações obtidas no site Fralda de pano. Disponível em: <http://fraldadepano.wordpress.com/2008/01/03/a-historia-da-fralda-descartavel/>. Acesso em: 22 de maio de 2011.

[2] Informações retiradas do site do Ministério da Saúde. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1395>. Acesso em 23 de maio de 2011.