INTERVENÇÃO MÍNIMA DO ESTADO: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA IMPORTÂNCIA E POSSÍVEL INCONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO.

AUTOR: Felipe Brandão de Oliveira Martins

 

1. INTRODUÇÃO:

Em pleno século XXI o indivíduo se encontra cercado de perigos, sendo que os mais diversos fatores podem acabar causando o lesionamento de algum direito seu. Essa constante sensação de paranóia é algo inerente à vida em sociedade, fato que não pode ser simplesmente afastado. Então o que fazer frente a tantas situações que possam causar danos aos direitos dos indivíduos?

O Direito Penal, como principal defensor dos bens jurídicos essenciais para a existência da vida em sociedade, passou, então a tipificar como condutas ilícitas atos que em si mesmos não causaram ainda nenhum dano, mas que possuem potencialidade danosa. Assim, quebra-se o esquema de pensamento no qual as condutas ilícitas estariam tipificadas como crimes e seria necessário provar o dano causado e efetivamente cumprir todos os “requisitos” contidos na norma de caráter penal.

Essa “antecipação de resultado” acaba por criar um “preço” a ser pago pela coletividade, qual seja, se abster de determinadas condutas que sequer iriam causar necessariamente um dano certo e concreto, mas sim trariam somente uma possibilidade de causá-lo. Esse seria o principal argumento daqueles que defendem a inconstitucionalidade desses tipos penais, na medida em que tais dispositivos vão de encontro com o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. 

Condutas tais como dirigir veículo automotor, estando o condutor sob efeito de substâncias entorpecentes ou bebidas alcoólicas ou até mesmo o “absurdo” caso do porte de arma de fogo desmuniciada, trazem à tona as mais diversas discussões sobre a constitucionalidade desses “crimes de perigo abstrato”.

O presente artigo traz como objetivo fazer uma breve análise sobre as principais características desse instituto, assim como trazer posicionamentos doutrinários acerca da constitucionalidade ou não desses tipos, visando proporcionar ao leitor uma melhor visão crítica acerca dessa problemática.

2. O DIREITO PENAL E A SUA FUNÇÃO INIBIDORA:   

Chega quase a ser desnecessário trazer qual seria a função do Direito Penal, mas vamos lá: o mesmo seria responsável a analisar e elencar quais seriam os comportamentos que pudessem ser perniciosos ou que pudessem ser danosos aos valores fundamentais à vida em sociedade.

Assim, caso alguma conduta ou ato seja considerado perigoso à conservação de tais valores, o Direito Penal teria como principal função elencá-lo e estipular uma sanção caso houvesse a “concretização” da conduta prevista.

Em sua obra, Fernando Capez (2011, p. 06) apresenta interessante observação sobre a importância dessa função selecionadora, na medida em que:

Com isso, pode-se afirmar que a norma penal em um Estado Democrático de Direito não é somente aquela que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ele ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contrário, sob pena de colidir com a Constituição, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, somente aqueles que realmente possuam lesividade social.

Assim, podemos perceber que não é qualquer comportamento que poderá ser considerado como “alvo” do direito penal, mas sim aqueles que forem efetivamente lesivos à vida em comunidade. Surge então a indagação que foi posta na parte introdutória do presente artigo: até onde poderá ir o Direito Penal na sua função de elencara os comportamentos perniciosos?

Obviamente, como qualquer ramo do Direito, ele possui uma série de princípios, verdadeiros mandamentos que deverão ser observados na elaboração e aplicação dessas normas.

   Assim, convém trazer alguns princípios penais que terão especial importância no entendimento do tema. São eles os seguintes: A intervenção mínima, A adequação social, o da lesividade e a alteridade ou transcendentalidade.

O princípio da intervenção mínima parte da premissa que toda tipificação de comportamento traz um preço para a sociedade, uma verdadeira abstenção de praticar certos atos. Em outras palavras, o Estado só estaria autorizado a exercer tal função em último caso, ou seja, o mesmo deveria se abster de onerar a sociedade. Assim, o legislador deverá ter um certo cuidado, tipificando somente as condutas que possam ocasionar danos à coletividade.

Em sua obra, Rogério Greco (2008, p. 62/63):

Em um enfoque minimalista, característico do principio da intervenção mínima, a finalidade do direito penal é proteger os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade. Partindo dessa visão, somente os bens de maior relevo é que merecerão a atenção do legislador penal que, a fim de protegê-los, deverá criar os tipos penais incriminadores, proibindo ou determinando a prática de comportamentos, sob a ameaça de uma sanção.   

Assim, podemos perceber tal princípio como sendo verdadeira proteção dada ao indivíduo contra a atuação abusiva do legislador penal. Semelhante a ele é o princípio da adequação penal, na medida em que a conduta deverá ir contra os ideais sociais de justiça. Capez (2011, p. 16) versa sobre tal princípio, na medida em que:

Para essa teoria, o Direito Penal somente tipifica condutas que tenham certa relevância social. O tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais; por conseguinte, as condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa, sob pena de a lai incriminadora padecer de vício de constitucionalidade.    

O princípio da lesividade versa sobre somente haver crime caso a lesividade causada por ação ou omissão atinja a esfera de outrem, tal princípio guarda enorme semelhança com o próximo a ser analisado.

Já a alteridade ou transcendentalidade versa sobre a impossibilidade de se criminalizar uma atitude interna do indivíduo, ou seja, que não saiu da mera concepção do mesmo, não começou a ser executada. Ainda na mesma ótica, não se pode responsabilizar alguém que só causou dano a si mesmo. Assim, o dano deverá efetivamente ocorrer contra direito de outrem.  

Ainda há o princípio da proporcionalidade, segundo o qual deverá haver, na lição de Pouchain (2011):

O requisito da proporcionalidade, por sua vez, restará preenchido mediante análise do relacionamento dialético entre os fins e os meios propostos, e em especial, através de seus três subprincípios: adequação (compatibilidade entre o fim e os meios), necessidade (meio escolhido deve ser o menos oneroso possível) e proporcionalidade em sentido estrito (relação de custo-benefício da medida, constatada através de ponderação de valores).

Percebe-se desde logo uma certa discordância de tais princípios aqui explanados com os crimes de perigo abstrato, na medida em que os mesmos não possuem efetiva lesividade, mas mera possibilidade (anda que alta) de ocorrer o evento realmente danoso.

No próximo capítulo iremos abordar de maneira mais direta a divergência existente acerca de tais crimes frente aos citados princípios, abordando as correntes que defendem ou afastam a inconstitucionalidade desses tipos penais.

3. DISCUSSÕES PRINCIPAIS ACERCA DO TEMA:

 

Conforme já foi dito, tal tema é bastante polêmico, em virtude da incerteza que se tem se a tipificação de tais condutas estaria ou não ferindo ou sendo extremamente “invasiva”, na medida em que se estaria incriminando uma conduta que por si só não causou dano efetivo a alguém, mas que teria altíssimas chances de causá-lo.

Antes de qualquer coisa seria pertinente trazer uma conceituação mais técnica do que seriam os crimes de perigo abstrato. Segundo Romero: (2004) afirma que o “Crime de perigo é, pois, aquele que, sem destruir ou diminuir o bem jurídico tutelado pelo direito penal, representa uma ponderável ameaça ou turbação à existência ou segurança de ditos valores tutelados, uma vez existir relevante probabilidade de dano a estes interesses”.

Já Rogério Greco (2008, p. 109) nos traz que:

Diz-se abstrato o perigo quando o tipo penal incriminador entende como suficiente, para fins de caracterização do perigo, a prática do comportamento – comissivo ou omissivo- por ele previsto. Assim, os crimes de perigo abstrato são reconhecidos como de perigo presumido. A visão, para a conclusão da situação de perigo criada pela prática do comportamento típico, é realizada ex ante, independentemente da comprovação, no caso concreto, de que a conduta do agente produziu, efetivamente ou não, a situação de perigo que o tipo procura evitar.

Tal afirmação corrobora com o que foi explanado anteriormente, mas quais as posições dos que defendem e dos que criticam tais tipos penais?

Para os críticos desses crimes, os mesmos iriam de encontro com os princípios citados em capítulo anterior, especialmente pelo fato de os mesmos não causarem qualquer lesão efetiva à direitos, o que resultaria em uma espécie de abuso por parte do legislador que estaria “onerando” em demasia a sociedade na medida em que estaria tipificando condutas que oferecem apenas uma probabilidade (ainda que alta) causarem dano.

Assim, num estágio atual em que o Estado deve dar maior liberdade aos indivíduos e intervir de maneira extremamente baixa na vida em sociedade (especialmente na esfera penal), tais crimes seriam extremamente atentatórios e até mesmo insconstitucionais.    

Segundo os que defendem a constitucionalidade desses tipos, os mesmos são perfeitamente válidos, na medida em que efetivamente protegem direitos que, ainda que não tenham sido lesionados, devem ser protegidos a todo custo. Assim, nota-se desde logo que, geralmente tais tipos buscam a proteção especialmente à vida, na medida em que geralmente tais crimes possuem enorme potencialidade de causar casualidades.

Mas ressalvas devem ser feitas, na medida em que tais tipos não devem ser criados de qualquer maneira ou com qualquer finalidade, pois feriria diretamente o anteriormente citado princípio penal da intervenção mínima. Assim, os defensores desses tipos concordam que os mesmos devem ser condicionados obrigatoriamente à observância dos princípios penais da proporcionalidade e da lesividade.

4. CONCLUSÃO:

Conforme o que foi observado ao longo do texto, podemos perceber quais os motivos (e como são bem justificados) que causam tanta controvérsia quando se trata desses tipos penais.

Assim, conforme já foi explicado, podemos perceber o caráter extremamente proibitivo e até mesmo intrusivo de tais crimes. Mas podemos observar também a importância dos mesmos na medida do seu caráter protetor e antecipador, visando a proteção aos direitos.

Ressalva deve ser feita contanto com relação aos que defendem tais crimes, na medida em que o mais correto seria a aplicação e interpretação condicionada de seu conteúdo À observância de alguns dos princípios do Direito Penal.

Não há posição definida ou definitiva acerca dessas discussões, de maneira que seria precipitado se afiliar de maneira absoluta com relação à defesa ou não de tais tipos penais.     

REFERÊNCIAS:

 

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. Volume 1. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume 2. 5ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2008. p. 108.

POUCHAIN, Pedro Melo Ribeiro. A constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Online. Acesso: 10/10/2014, 16:01. Endereço: http://jus.com.br/artigos/19537/a-constitucionalidade-dos-crimes-de-perigo-abstrato#ixzz3EfCRxr00.

TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009.